Rio de Janeiro

Análise

Artigo | Para derrotar o bolsonarismo é preciso ir além do bolsonarismo 

A questão passa a ser como a esquerda precisa reagir a esta afinidade profunda entre o fascismo e o neoliberalismo

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
O resultado eleitoral - afirmando ainda mais o projeto neoliberal com o avanço da direita - aponta que é preciso mais do que "Fora Bolsonaro" - J Gonçalves | Fotos Públicas

"Vou aproveitar esse momento: o presidente é do Rio, vice-presidente do Rio, ministro da Economia do Rio. Todo mundo é do Rio naquele governo", afirmou o prefeito eleito do Rio de Janeiro com 64,07% (1.629.319 votos), Eduardo Paes (DEM), em entrevista ao jornal O Globo no dia seguinte à sua eleição.

Para além deste aceno explícito, seu alinhamento ao bolsonarismo pode ser visto nos comentários sobre as medidas de combate à pandemia a serem adotadas pelo futuro governo que, antes de começar, já se coloca contra o lockdown, ainda que uma nova onda de casos da covid-19 já seja uma trágica realidade na cidade. Assim como a presidência da República, o candidato eleito considera a medida “extrema e desnecessária”.

Neste segundo turno das eleições municipais, Eduardo Paes foi alçado ao posto de salvador do Rio de Janeiro e se beneficiou pela “unidade na rejeição” de Crivella, classificado por muitos como o pior prefeito da história da cidade. No entanto, vale observar que o número de abstenções foi de 1.720.154, que somado aos votos nulos e brancos chegam a 2.308.868, mais que o dobro de votos recebidos pela chapa Paes-Caldeira (DEM/PL).

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Portanto, tivemos novamente uma maioria política que não validou o processo eleitoral e que está em disputa. Ainda que a pandemia seja um fator a ser aqui considerado, este fenômeno não é uma novidade e indica a permanência de um sentimento de negação da política passível de ser capturado por aqueles que forem capazes de dialogar com essa posição, como ocorreu, em partes, com o discurso bolsonarista em 2018.

Mesmo durante as campanhas do primeiro turno, Bolsonaro, mesmo declarando apoio a Crivella, classificou Paes como “bom gestor”, e isso para não mencionar as relações mais do que amistosas entre o ex-futuro prefeito e os filhos de Bolsonaro.

A questão aqui passa a ser como a esquerda precisa reagir a esta afinidade profunda entre o fascismo e o neoliberalismo privatista que a coloca diante de uma espécie de hidra ideológica em meio a uma série de tensões internas.

Justamente desde a derrota eleitoral de 2018 para a extrema-direita, estabeleceu-se amplo debate em âmbito nacional acerca da necessidade de reformulação do campo progressista que nas eleições de 2020 apostaram no eixo “contra o bolsonarismo” como seu elemento mínimo de aglutinação.

No entanto, o resultado eleitoral - afirmando ainda mais o projeto neoliberal com o avanço da direita - aponta que é preciso mais do que isso. Ou melhor, é urgente pensar, questionar e formular com que políticas e através de quais alianças o bolsonarismo poderá ser arrancado da vida política brasileira pela raiz.

Em recente artigo publicado na Ponte Jornalismo, a deputada estadual, Erica Malunguinho (PSOL-SP) questiona o chavão do "Fora Bolsonaro". De acordo com a parlamentar, “derrotar Bolsonaro não deve ser um fim em si, uma vez que nos interessa efetivamente o que vamos colocar no lugar, até porque na grande aba anti-bolsonarismo, há um centro sedento e uma direita autointitulada séria com discursos razoavelmente polidos e digeríveis. Entretanto, todes pragmaticamente comprometidas com agendas economicamente similares”.

Afinal, agora a direita neoliberal, o ultraliberalismo e até a extrema-direita tentam se disfarçar de “centrão”.

E podemos observar como os veículos de comunicação não fazem críticas tão contundentes às políticas de Paulo Guedes e Rodrigo Maia, por exemplo, quanto aquelas direcionadas ao clã da presidência, o que favorece a retomada da barbárie neoliberal com ares de festa da democracia. Essa tendência parece ter sido o equivalente político da terrível expressão "o novo normal". Um "novo normal" que não tem nada de novo e nada de normal, como podemos destacar na sequência.

Em 7 de janeiro de 2010, a prefeitura de Paes anunciava na mídia uma lista de remoção de 119 favelas. Ao todo, foram 77 mil pessoas removidas de suas casas em um processo violento, de danos materiais, físicos e emocionais irreparáveis na memória e na vida dessas famílias. O mesmo “bom gestor” foi quem implantou na cidade o “Choque de Ordem”, um processo de criminalização de trabalhadores informais e pessoas em situação de rua na cidade.

Em nome da especulação imobiliária e do favorecimento aos megaeventos e aos empresários, o projeto de militarização do Rio de Janeiro foi aprofundado.

Quando falamos em militarização, compreendemos o conjunto das criminalizações do trabalho da população pobre; o aumento da violência contra a mulher diante das políticas de insegurança pública; ampliação de racismo e LGBTIfobia; falta de moradia e comida; operações policiais que executam jovens e promovem arrombamentos de casa, saques, tomada de mercadorias pelo Estado. Uma pandemia de violações de direitos humanos. Este é o "bom gestor" que retorna à Prefeitura do Rio de Janeiro num cenário em que a fome bate ainda mais à porta diante da crise social que vivemos.

Se a esquerda quiser começar a virar esse jogo, precisa evidenciar incisivamente o fato de que o autoritarismo do clã Bolsonaro tem como seu pressuposto irredutível e mais forte aliado o totalitarismo neoliberal. Desconsiderar isso é um erro grave que pode nos levar a situações tão ou mais dramáticas do que esta em que nos encontramos, ainda que talvez com um pouco mais de pompa.

As peças andam, o tabuleiro, contudo, continua o mesmo. 

Para além dos discursos, precisamos fortalecer e construir as lutas populares e as redes de solidariedade nas favelas e periferias e também enfrentar as hegemonias de pensamento dentro do campo progressista que apontam para o diálogo e a construção com o liberalismo por meio de frentes amplas ou pelo esvaziamento político das lutas. As transformações sociais não surgirão de um chavão “contra o bolsonarismo”, mas a partir de outro projeto político. A começar de agora, em nossos próprios bairros e cidades.

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Não podemos naturalizar o discurso do menos pior, sob o risco de fortalecer tudo que sustenta o atual governo - as bases coloniais, racistas, patriarcais e LGBTfóbicas que nunca foram devidamente enfrentadas em nosso processo de formação histórica. E é por aí que combateremos o bolsonarismo e projetos políticos como o de Eduardo Paes, Luciano Huck, Sergio Moro, Dória e o pacote “da volta dos que não foram”, a direita disfarçada de “centrão”.

Porque são eles que há décadas fazem faltar o feijão, a mistura e o gás de cozinha, disparar o preço do arroz, fazem o transporte público inseguro e caro, promovem o desmatamento e o saque dos biomas brasileiros, reforçam a violência policial cotidiana, impedem a implementação de uma educação pública e gratuita para todos e todas, são eles que têm alimentado a violência no campo e dificultado acesso à saúde pública. Esses são os mesmos que agora voltam parecendo sensatos perto dos desvarios fascistas do clã Bolsonaro.

Eles têm em suas mãos o fazer da morte.

São eles que conduzem a agenda da tradição escravocrata e personalista que tem tido muito sucesso na tarefa de substituir os brasis que pulsam pelo Brasil que chora e sangra sem parar.

A nossa aposta deve ser por uma agenda de vida. Por um Rio de Janeiro e por um Brasil com justiça social, não com uma democracia que se defenda a qualquer custo ou que se considere plena mesmo estando à sombra do massacre de corpos das populações negras, faveladas, periféricas, indígenas, das mulheres e de pessoas LGBTIs. Uma democracia que anuncia aos quatro cantos que essas são questões que devem ser deixadas "para depois” não deve nos interessar daqui para frente. Afinal, quando é que chega esse depois?

Nenhuma alternativa eleitoral ao bolsonarismo poderá se consolidar sem a solidariedade, o afeto, a coletividade, o diálogo e a afirmação da política de esquerda comprometida com as grandes agendas do século, essa que se torna a cada dia mais feminista, preta, periférica, favelada, ecossocialista, anticapitalista. Como diz o poema da amiga, sapatão e artista fazedora de sonhos, Lidi de Oliveira “não tem volta. Nosso nome é revolta”.

Qualquer “unidade de centro-esquerda” que se apresente como alternativa ao bolsonarismo em 2022 que tenha sido decidida em cafés-da-manhã à beira-mar ou à mesa de um restaurante caro, ocupada por homens brancos cis-heterossexuais e ricos deve ser recebida por nós com imensa desconfiança.

E isso não significa deixar de compor os movimentos que possam derrotar nas urnas o fascismo que saiu vitorioso das eleições de 2018, mas ir além. Trata-se de concentrar nossa energia em reconhecer todos os operadores do fascismo, quer eles vistam fardas ou ternos de grife pagos com a verba do auxílio paletó.

*Camila Marins é jornalista, editora da Revista Brejeiras e colunista do Coletivo Pretaria.

*Roberta Cassiano é professora mestra em filosofia, editora da Revista Brejeiras, servidora pública federal e coordenadora do Núcleo de Gênero e Diversidade Sexual do IFRJ-Nilópolis.

Edição: Mariana Pitasse