Coluna

De Castro Alves a João Alberto: um Navio Negreiro que atravessa os séculos

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O Navio Negreiro não é uma imagem longínqua, desaparecida na linha do tempo, confinada em 1870. Continua a deslizar por outros mares. - Guilherme Gonçalves / Fotos Publicas
O Rio Grande do Sul foi o navio mais africano que aportou nos noticiários que ocuparam as páginas

Por Marilia Lomanto Veloso*

Mas que vejo eu aí... Que quadro d'amarguras!

É canto funeral! ... Que tétricas figuras!

Que cena infame e vil... Meu Deus! Meu Deus! Que horror!

(Castro Alves - O Navio Negreiro)

'Stamos em pleno mar...?” “Doudo no espaço brinca o luar?

A escravidão sobrevive ao tempo. O racismo permanece dominando as mentes. Vivemos ainda a mesma realidade perversa que Castro Alves tanto denunciou há quase três séculos. Do alto de sua juventude tão intensamente vivida, O Poeta dos Escravos soube legar às gerações futuras, em linguagem poética, uma narrativa de dor e de sofrimento de um povo arrancado de sua terra e obrigado a navegar por águas hostis, para servir ao capitalismo vil e infamante dos donos do poder, os escravocratas.

O Navio Negreiro não é uma imagem longínqua, desaparecida na linha do tempo, confinada em 1870. Continua a deslizar por outros mares. Agora, não é o céu azul, nem o mar profundo que escutam os “gritos, ais, maldições e preces”, mas é a amplitude das redes sociais que escancaram a brutalidade, a barbárie da “branquitude” sobre a negritude. A morte suga um corpo negro em qualquer chão imundo de qualquer espaço onde esse corpo ouse se misturar a corpos brancos. Não “'Stamos em pleno mar... Abrindo as velas, ao quente arfar das virações marinhas”, nem corre o veleiro “à flor dos mares, como roçam na vaga as andorinhas”. Estamos no Século XXI, a sofisticação tecnológica pinta de vermelho a tela que exibe a violência contra os corpos que insistem em permanecer de pé, quando deveriam se recolher à escuridão que sua “cor de pele” impõe.

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O abolicionismo de Castro Alves marcou um lugar relevante de crítica social para dar visibilidade poética à situação degradante e à desumanização sofrida pelos africanos, submetidos a condições indignas e à traficância, à venda infame de seus corpos, como escravos, vergonhosa mácula na história do Brasil, último país a ceder à libertação. A supremacia de uma raça sobre a outra recrudesce no horizonte infinito, se manifesta com animalidade ainda mais covarde do que a ordem do capitão que bradava: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar!..."

Castro Alves era um liberal, com inspiração iluminista e nas poesias de Victor Hugo que traçaram seu rumo para a defesa das questões sociais, combatendo a escravidão. De acordo com Rebeca Fuks, Doutora em Estudos da Cultura, alinhava à repulsa ao tráfico de escravos, um patriotismo que abria espaços para a crítica. Desse modo, “A sua visão do Brasil como um lugar de liberdade e do futuro é incompatível com a escravidão”. No Brasil de agora, Seu Jorge ecoou na voz de Elza Soares o grito que quantifica o valor que a sociedade atribui à carne negra, a carne mais barata do mercado “Que vai de graça pro presídio, e para debaixo do plástico, que vai de graça pro subemprego, e pros hospitais psiquiátricos”.

O Rio Grande do Sul foi o Navio mais africano que aportou nos noticiários que ocuparam as páginas da informação nos últimos dias. E é por esse mar de comunicação que navegamos com os fatos que causaram horror e tornaram o Brasil um Parque de Diversões para a truculência que o poder confere à sua dominação. E foi João Alberto Silveira Freitas a representação dos corpos negros que dançavam ao som do chicote nos Navios Negreiros. João Alberto é uma carne negra destituída de sua condição humana, vilipendiada em sua dignidade de pessoa, surrado até a morte por dois homens brancos, em um ritual de barbaridade que faria doce o primitivismo mais recuado. A plateia embrutecia o espancamento, extasiada diante do espetáculo bestial que sangrava à sua frente, o som do “castigo mortal” soando musicalidade aos ouvidos de quem assistia.

Uma cena aviltante, que faz descer à condição de animal não apenas os autores da execução, como também as pessoas que se pensam humanas ao redor do corpo indefeso, filmando a crueldade, partilhada nas redes sociais, exibindo a naturalização monstruosa do “morrer negro” de João Alberto. Nenhum movimento de comiseração, nenhum impulso de intervenção no ato pusilânime e brutal que se praticava contra a vítima. Durante cinco minutos, mantiveram João Alberto imobilizado, asfixiado, até a letalidade.

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“João Beto” era “Um cara de boa", segundo os amigos. Tinha 40 anos, trabalhador, pai de quatro filhos, morador na comunidade Farrapos, área precarizada, carente, na Zona Norte de Porto Alegre. Morreu como um “bicho” na véspera do Dia da Consciência Negra. A morte comoveu a opinião pública, provocou as corriqueiras notas, manifestações, repúdios, marchas, que são notoriamente identificadas como mobilizações coletivas que significam solidariedade e repúdio, mas permanecem estancadas nos espaços de disputa de falas.

A judicialização do fato é sequência natural em nosso ordenamento jurídico. Nada disso consegue mudar a trajetória racista, nem traz de volta os corpos brutalizados com a morte, nem faz recuar o racismo. Esses atos importam, mas não para fazerem valer o grito indignado que o mundo vibra de que “Vidas Negras Importam”. Não ludibriam o processo histórico de ódio ao povo negro, de desrespeito a sua ancestralidade, de irreverência a suas crenças e seus rituais, de deboche a sua cultura, a seu modo de vestir, de se pentear, de ser pessoa.

Os discursos das “autoridades” em torno da morte de João Alberto, são réplicas em fatos dessa natureza. Ainda que expressem solidariedade e promessa de investigação, chegam a ser um insulto pela forma como traduzem essas tragédias. Para Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, houve “excesso de violência”, evidenciando que admite a violência como “método de intervenção” desde que “dentro dos limites”, ou seja, a brutalidade é aceita, mas sem excesso. O minuto de silêncio de Luiz Fux significa o sistema de justiça branco e seletivo que preside. Queda-se no silêncio da cumplicidade diante das práticas racistas.

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O que dizer do discurso do militar de gravata na vice presidência, da República, Hamilton Mourão? "Lamentável, né? Lamentável isso aí. Isso é lamentável. [...] Para mim, no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar aqui para o Brasil”. Para além de um linguajar bisonho e de uma “fábula”, chega a ser afrontosa a declaração de quem ocupa um lugar de sub-comando na Ordem institucional. Com essa afirmação enganosa, o vice-presidente não só revelou ignorância sobre o racismo estrutural que pauta as agendas da militância do povo negro/não branco e de brancos/brancas que se negam a dar sustentação aos discursos e práticas racistas, como revela obtusidade e cegueira institucional no trato com a humanidade sobre a qual seu aloprado e imprudente governo tripudia.

O apagamento do secular extermínio da população negra no Brasil não consegue ocultar o universo de argumentos do pensamento europeu para garantir a exploração africana para servir ao Brasil. Rosenverk Estrela Santos faz referência à definição do negro como “inferior, bárbaro, selvagem”, destituído da dimensão humana de sua imagem e da repressão para que fosse mantido “no seu lugar” e contido quando se rebelasse contra essa imposição estigmatizante de surrupiar sua liberdade de ser pessoa.

Silvio Almeida, advogado, filósofo, professor e negro, confere a esse episódio a natureza de trivialidade que acompanha o cortejo histórico do racismo que arrasta milhões de pés que não conseguem partir os grilhões presos a Navios Negreiros espalhados pelas ruas, pelas Universidades, pelos campos, pelas instâncias de poder, por expressiva parcela do universo branco que vocifera discursos de democracia racial e espia o “morrer negro” como espetáculo a leiloar a dignidade e a vida do povo negro.

Silvio Almeida não cede ao embuste dos discursos que negam o racismo e dispara: "Afinal, é normal que homens negros sejam espancados e/ou estrangulados nas dependências de um supermercado, não? Não há ironia aqui. É normal mesmo”.

Um imaginário diálogo entre Castro Alves e o professor, o poeta declamaria:

Existe um povo que a bandeira empresta,

P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...

E deixa-a transformar-se nessa festa

Em manto impuro de bacante fria!...

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,

Que impudente na gávea tripudia?

Silêncio. Musa... chora, e chora tanto

Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...

Essa bandeira é a do Brasil. E nós, os que tripudiamos sobre o pranto que a Musa chora. Até quando?

*Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal, Professora aposentada da UEFS. Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos, membro do CDH da OAB/BA, da AATR, da RENAP e da ABJD.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rogério Jordão