Eu não estou me preparando para a Câmara, já estou preparada; quem precisa se preparar são eles
Com mais de 50 mil votos nestas eleições municipais, Erika Hilton (PSOL) é a primeira mulher trans eleita para a Câmara Municipal de São Paulo e a parlamentar mulher mais votada do Brasil neste ano. "Eu fiquei completamente emocionada e feliz por ser a mulher mais votada do Brasil, num Brasil profundamente transfóbico, profundamente racista e classista. Isso mostra que o trabalho de base que eu, as minhas e os meus estão fazendo, cada qual nos seus territórios e à sua maneira, está surtindo efeito", afirma a vereadora eleita.
Nascida em Itu, no interior de São Paulo, o despertar para o ativismo e a militância ocorreu ao mesmo tempo em que vivia a batalha da família para sobreviver, na periferia da cidade. A partir do trabalho da avó, da mãe e das tias de "vender o almoço para comprar a janta", ela viveu na pele a realidade da maioria da população brasileira.
Mesmo com a ligação com a família, acabou sendo expulsa de casa na adolescência ao assumir sua transexualidade e, aos 14 anos, se prostituía nas ruas. O duro cotidiano do "corpo de uma mulher, travesti, negra" nas ruas impulsionou a sua ânsia por "ocupar" seu lugar no mundo.
Hoje, com 27 anos, a ativista, que foi a primeira da sua família a se formar em uma universidade pública – no curso de pedagogia – fala ao BdF Entrevista sobre sua trajetória, a importância da representatividade, a violência contra a população negra, o caso do assassinato pela polícia do homem negro João Alberto, em Porto Alegre (RS), sobre o movimento negro e o cenário político para 2022.
Sobre a política nacional, a vereadora eleita sentencia: "Eu acho que em 2020 nós teremos surpresas agradáveis, sem sombra de dúvidas. Bolsonaro já está derrotado e é um câncer político extinguido que nós estamos combatendo com todas as nossas forças."
Confira os principais momentos:
Brasil de Fato: Como você vê a sua eleição e das demais mulheres negras e trans nestas eleições municipais, depois que o último pleito foi marcado pela extrema direita?
Erika Hilton: É uma resposta a essa onda moralista, conservadora e fascista. Nós não voltaremos para os armários, para as cozinhas, para as senzalas, para nenhum desses lugares que nós, em 2018, nos vimos ameaçadas a voltar. Nós mostramos poder a partir das urnas e da nossa organização coesa e estruturada, de colocarmos dentro dos espaços políticos pessoas que representem a pauta e a luta dos direitos humanos e das populações mais vulneráveis. Acho que é isso que representa a minha eleição expressiva. Acho que é esse o sentimento que eu tenho. É um pouco de um sentimento de vingança também. Estamos vingadas dessa onda de ódio.
Acho que isso representa uma mudança nas chavinhas mentais e sociais das pessoas, começando a compreender a urgência e a necessidade de nós mudarmos e nos colocarmos dentro do debate político, para que a gente faça, de fato, o enfrentamento ao racismo, à misoginia, à transfobia institucional que impera no nosso país.
Em 2018, quando Jair Bolsonaro se elege presidente da República com aquele projeto político que ele representa – de aniquilação, de destruição dos corpos negros, dos corpos LGBTQIA+, dos corpos das mulheres e dos corpos periféricos –, nós nos sentimos muito acuadas, amedrontadas. Eu me lembro como foi o resultado. Achávamos que seríamos metralhadas nas ruas nos dias seguintes. Acho que todo esse medo e pânico social gerado pelo bolsonarismo, auxiliou que nós articulássemos e organizássemos melhor e mais rápido as nossas lutas para garantir que nos próximos períodos eleitorais houvesse mais representantes das nossas causas.
São as causas das mulheres, as causas dos povos indígenas, da periferia. É a causa de toda essa gama de pessoas que se viu ameaçada e que continua se vendo, já que não é porque nós chegamos lá que as ameaças cessaram. Mas nossa chegada a esse lugar significa uma resposta a tudo isso, que, mesmo diante dessa necropolítica, desse projeto político avassalador de destruição que Bolsonaro apresentou no Brasil, nós estamos de pé, nós estamos propositivas e organizadas. Nós somos muitas e temos poder de transformação dos espaços sociais e dos espaços políticos institucionais.
Você acredita ou já sente que a sua eleição pode ser representativa para que outras mulheres negras e trans, para que busquem ocupar a política institucional?
Eu não me sinto uma representatividade só agora que fui eleita. Eu sou uma representatividade desde o momento em que eu reconheço a minha identidade, que eu reconheço o meu território, minha origem, minha raça. A partir desses reconhecimentos, eu passo a formular política e a empoderar outras pessoas, homens e mulheres, pessoas não-binárias, pessoas transvestigêneres a se enxergarem e a fazerem dos seus lugares e das suas histórias um referencial de ocupação dos espaços, sejam esses espaços quais forem.
Seja a academia, seja o parlamento, seja o teatro, o cinema, a televisão, enfim, qualquer lugar que nosso corpo ocupe de forma consciente, sabendo o que nós estamos fazendo e falando naquele lugar. Isso é um gesto político de empoderamento. E eu já me vejo enquanto uma representante desde a minha militância, desde o meu ativismo junto ao movimento estudantil, a briga pelo reconhecimento do meu nome com a empresa de transporte de ônibus na cidade de Itu [interior paulista], eu já sou um referencial.
Acho que agora eu ganho uma visibilidade maior que possibilita que mais pessoas acessem a minha trajetória, acessem aquilo que eu falo, e possam, a partir do meu corpo e das minhas bagagens, se enxergarem para além dos lugares de sentenças sociais. Para além das esquinas, para além do cárcere, para além da prostituição, da drogadição, dos manicômios, da rejeição familiar. Acho que sim, sou uma representatividade para que elas se enxerguem parlamentares, doutoras, para que se enxerguem trabalhadoras informais como cabeleireiras, manicures, porque também não é só sobre isso. É as pessoas terem autonomia e escolherem ser o que elas querem, mas de forma digna, de forma que seja uma escolha.
Então, eu acho que, a partir da minha visibilidade, eu consigo alcançar mais espaços para que a gente vá criar referenciais positivos, limpando a mentalidade da sociedade para que a sociedade enxergue o corpo negro, o corpo LGBT, o corpo da mulher em outros lugares além daqueles lugares estigmatizados. Sem sombra de dúvida, sou uma referência, me farei ser uma referência. Estou nesse lugar para poder abrir portas, chutar portas para que outras e outros possam passar também. E eu espero não mais ser a primeira, não mais ser a única, não mais. Que haja, cada vez mais, de nós nos espaços, que nós deixemos de ser uma novidade. Esse lugar de ser a primeira, de ser a única nunca me foi confortável.
Porque, em 2020, aos 27 anos, quando eu sou a primeira, o que significa é que todas, todos e todes que vieram antes de mim foram mortos ou viveram no anonimato, ou viveram na abjeção. E isso, para mim, é revoltante. Isso, para mim, é sinônimo do quanto nós temos que escancarar as portas das políticas e dos espaços para que haja sempre corpos demarcados como dissidentes, ocupando os lugares e conduzindo as narrativas a partir das nossas próprias perspectivas.
E quais foram as suas referências? Como se deu seu envolvimento com a política?
Meu despertar se dá de crescer em um lar de trabalhadoras doméstica, uma família matriarcal de mulheres empoderadas que sempre lutaram para garantir o sustento, para pagar as contas, que sempre tivemos uma vida muito dura. Eu cresci na periferia e a minha vida, em especial em relação às minhas primas e minhas colegas, era destoante, porque minha mãe trabalhou muito duro para que eu tivesse uma infância muito privilegiada. Mas eu via o quanto as minhas tias e avó batalhavam o tempo inteiro, vendiam o almoço para garantir a janta. Crescer na periferia diante da pobreza faz com que a gente tenha uma percepção de que as coisas precisa ser mudadas.
Depois, quando eu sou expulsa de casa e passo a ir viver da prostituição, durmo nas calçadas, conheço realidades tão cruéis ou ainda mais cruéis do que as minhas, percebo o quanto existe um processo de desumanização, precarização, abjeção do corpo negro, favelado, trans, travesti, eu começo a buscar em mim alguma motivação para transformar e mudar essa realidade.
Esta não é uma realidade orgânica, é uma realidade que faz parte de um processo político que se organiza o tempo inteiro para precarizar a vida dos mais pobres. E eu sou uma mulher pobre vinda da periferia, neta de uma nordestina, sobrinha de empregadas doméstica, que viveu na prostituição, que dormiu nas calçadas, que sabe o que é sentir fome e não ter abrigo.
A partir dessas percepções, quando eu me descubro negra, pobre, periférica, travesti e puta, é aí que eu começo a perceber que meu corpo precisa ter um trabalho funcional na sociedade e que, a partir dos lugares que me constituem enquanto indivídua, eu preciso utilizar essas ferramentas para propor um modelo diferente de sociedade, e que eu não estou fazendo isso sozinha. Existem outras milhares de pessoas iguais a mim que também compreendem a urgência de modificarmos as estruturas sociais. É assim que desperta minha ânsia de transformação do mundo, dos espaços por onde eu passo.
Eu estava até agora tentando ruir o sistema de fora para dentro, agora eu hackeei o sistema e vou tentar destruí-lo de dentro para fora, a partir de todos os demarcadores que eu trago carregado no meu corpo e no corpo da minha mãe, da minha avó, minhas tias, minhas amigas e toda essa gama de gente, que não é a minoria, que sofre por causa da sua condição humana. É isso que desperta a luta e me convoca a ancestralidade também, as mulheres e homens que vieram antes de mim para que eu pudesse passar e pudesse estar aqui hoje.
Eu percebo o compromisso que eu tenha sendo negra, mulher, travesti, de dar continuidade à luta de mulheres como Lélia Gonzalez, Xica Manicongo, Chica da Silva, Marielle Franco, Beatriz Nascimento, Benedita da Silva, entre tantos outros nomes que eu poderia citar aqui, que foram pioneiros da luta de resgate da nossa humanidade. Esse estopim que me leva à construção de uma agenda pública, política e militante, pela dignidade da nossa identidade e pelo resgate da nossa humanidade que todos os dias tentam roubar de nós.
Apesar da sua vitória, a Câmara Municipal de São Paulo continua sendo majoritariamente composta de homens, brancos, heterossexuais, que têm uma visão conservadora da política e da cidade. Como estão os preparativos para esse enfrentamento?
Eu não estou me preparando para encarar a branquitude, cisgênero, heteronormativa, fascista da Câmara Municipal, eu já estou preparada. A branquitude, cis, hetera da Câmara é a mesma das esquinas, dos supermercados, do banco.
A Câmara não é uma bolha à parte do que é a sociedade, mas sim um reflexo daquilo que é a sociedade. Até eu chegar aqui, eu precisei driblar e enfrentar a branquitude, cisgêneridade, o patriarcado, o machismo, e todas as ferramentas que eu me utilizei para sobreviver, porque sou uma sobrevivente para chegar até ali, e serão as ferramentas que eu utilizarei para lidar com eles.
Os que não estão acostumados com meu corpo são eles, eu já estou acostumada com o corpo deles, pequenez branca, e com o fascismo que o tempo todo olha para o meu corpo como inimigo que precisa ser morto e tombado. A minha trajetória inteira é marcada pelo ódio e pela exclusão deles.
Eu não estou me preparando, eu já estou preparada; quem precisa se preparar são eles, porque não contavam que a maquete política de destruição deles sobre o meu corpo iria falhar e que eu iria passar viva sob esse projeto de morte e chegaria não sozinha, mas muito bem ornamentada para fazer transformação e revolução. Estou pronta.
O último 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, foi marcado, mais uma vez, pelo assassinato de um homem negro em um supermercado. O que o crime contra João Alberto representa ou deveria representar?
O Brasil é um país que a cada 23 minutos mata um jovem negro por conta da cor da sua pele, não há nada novo no que nós vimos. Aquilo é só a exemplificação e a forma escrachada do que acontece todos os dias nas periferias do país, o que a polícia faz com as pessoas, o Estado contra o corpo negro. Aquilo é escrachar e estampar nas manchetes o que é o racismo estrutural e institucional, o que é a violência contra o nosso corpo por conta da nossa raça.
O que aconteceu na sexta-feira [20 de novembro] é a demonstração para que não haja dúvida de que não há democracia racial no Brasil, e que nós somos vítimas de uma herança escravagista e colonial, e que precisamos urgentemente discutir isso em todos os espaços que precisamos dar protagonismo à luta negra, que precisamos reconhecer que o Brasil é um país racista, que o que aconteceu no Carrefour não é nenhuma novidade, é uma consequência do racismo diário e cotidiano da população brasileira.
Aquilo não nós choca, aquilo nos revolta, entristece e nos convoca a uma organização mais radical, assim como acontece no exterior, para que a gente avance contra essa herança escravagista, colonizadora, que impera com força no nosso país e, a cada passo que a gente dá, se intimida e nos ataca cada vez mais. Mas esse é o Brasil, país calcado no ódio, racismo e construído em cima do sangue do povo negro desde a invasão das Américas e da África, é assim que eu avalio.
E como você lê a reação de parte do movimento negro nas unidades do Carrefour? A resposta vai em direção ao que ocorreu nos Estados Unidos?
Agora com relação a como reagiu o movimento negro, eu não posso fazer uma apologia à depredação dos espaços, mas também não posso dizer que não achei maravilhoso. O que me indigna é que a impressa brasileira, que ainda é racista apesar de tentar se passar por descolada, é que um corpo estirado no chão sem vida choca muito menos do que um supermercado riquíssimo, que cresceu muito nos últimos meses, pegando fogo.
Eu acho que nós temos, sim, uma organização para avançarmos contra o racismo, mas todos os dias tombam o nosso corpo. Se não querer nos ouvir de forma didática, pedagógica, sentar e conversar e abrir mão do privilégio branco, eu acho que temos que avançar contra eles e mostrar nossa revolta. Elaborar nosso ódio e indignação de forma responsável, pensada e arquitetada para contra-atacar.
Como você analisa o quanto o resultado das eleições municipais podem representar para os pleitos presidencial e estaduais em 2022? Qual o peso do bolsonarismo e da esquerda?
Eu acho que a consciência é algo que não volta mais. Acredito que essas mais de 50 mil pessoas que votaram em mim, votaram sabendo o projeto que elas estavam votando e qual é a visão de mundo que nós temos que disputar daqui em diante, porque não é só a eleição de um corpo, mas de muitas vozes e lutas.
É uma disputa para uma narrativa, nós estamos disputado a sociedade com o conservadorismo, fascismo. E eu acho que, cada vez mais, mais pessoas vão se conscientizar para que essa disputa vá ganhando nossos agentes nesse grupo e a gente vá avançando sempre, nas eleições estaduais, federais e municipais.
Falar de presidência da Republica é muito complexo, porque nós estamos falando de Brasil, que é um país da miscigenação, paradoxo e que movimenta muitas mentes. Mas eu acho que em 2020 nós teremos surpresas agradáveis, sem sombra de dúvidas. Bolsonaro já está derrotado e é um câncer político extinguido que nós estamos combatendo com todas as nossas forças.
Até os setores mais ligados ao bolsonarismo, nós vimos nas eleições municipais o quanto perderam força. Aqui em São Paulo, o Russomano sequer chegou ao segundo turno.
Bolsonaro não é mais a figura que foi em 2018, nem para aqueles que ainda continuam apoiando sua figura. Ele já é um perdedor, o que virá depois dele, eu não tenho como dizer, mas eu espero que até lá nós possamos, enquanto ativistas, fazer um trabalho via internet, veículos de mídia, plenário das câmaras e assembleias, em que a sociedade vá se sentindo pertencente à política, porque a política é muito distante das pessoas, por isso elas não participam e não conseguem compreender, a partir dessa "pedagogização" da política institucional e da proximidade da sociedade ao que é a política, nós podemos garantir um cenário muito melhor do que foi em 2018.
E a esquerda?
Com relação à esquerda, eu acho que o bolsonarismo deu uma acordada na esquerda, que ainda tem muito a acordar, aprender, a mudar e muitas autocríticas a serem feitas. Mas eu avalio que muitas já começaram a ser feitas, inclusive, com a referência de como tem sido a união para o segundo turno com Boulos. Eu acho que, em 2022, nós vamos ter uma esquerda egoica, porque isso faz parte da humanidade, mas que brigue menos entre si e enxergue o inimigo do outro lado.
Bolsonaro representou aquilo que há de pior e mais perigoso para todos os setores da sociedade, e a esquerda percebeu que se não houver, em alguma medida, uma unificação e um comprometimento com a pauta racial, LGBT, mulheres e um protagonismo dessas pautas, todos nós vamos para o buraco. Porque o bolsonarismo não jogou só indígenas, negros e LGBTs no buraco, mas o país inteiro.
Nossa meta é destruir o fascismo, o obscurantismo, o negacionismo e retomar o país com a pauta dos direitos humanos, moradia, ascensão econômica, intelectual e política dos mais vulneráveis.
Edição: Vivian Fernandes