E se as histórias da tela de cinema e dos livros fossem contadas a partir do ponto de vista negro?
Para responder essa pergunta, o Brasil de Fato conversou com o escritor Ale Santos, uma das principais vozes do afrofuturismo no Brasil. A essência do movimento, segundo ele, é romper com a narrativa branca dominante nas publicações ao redor do mundo.
"O afrofuturismo é assim, ele é esse movimento social e político e estético que para quem está se deparando com filmes como Pantera Negra e clipes como os da Beyoncé, ele vai aparecer um subgênero da ficção científica. Ele tem esse poder de falar sobre tecnologia, falar sobre utopias, falar sobre realidades ainda não vividas e utilizando a ancestralidade negra brasileira, negra de diáspora, negra africana."
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E completa: “É esse movimento de colocar a experiência de vida negra, colocar a religiosidade, colocar a cultura nessa conversa de ficção científica que sempre foi embranquecida”, explica o publicitário, que tem 32 anos.
Santos começou a escrever nos anos 1990, quando ainda era criança. Na época, ele não se reconhecia nos personagens que via na televisão. O jeito, portanto, foi criar suas próprias histórias. As influências para ressignificar as narrativas são muitas, e vão de ícones do rap ao samba.
"Os primeiros heróis que me empoderaram, que me ajudaram a me entender na sociedade, foram os rappers. A gente tinha poucos personagens negros virtuosos e na televisão. E depois que você passa a se envolver com o Rap, o Rap naturalmente fala de muita coisa. Questões históricas e sociais, como o Emicida fala de Mandume, como o D2 fala de sambistas brasileiros. Aí você começa a se envolver. O samba também tem muito disso, Martinho da Vila tem isso, o Candeia tem isso”, aponta.
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Partindo da sua própria identidade, como jovem negro, trabalhando no mercado elitista da publicidade, Santos também foi redescobrir as histórias afro-brasileiras e utilizou o Twitter como principal ferramenta de divulgação de seu trabalho.
Por meio de postagens em série – as threads – sobre personagens negros deixados de fora pela história oficial, ele ganhou mais de 74 mil seguidores na rede social.
Entre os heróis e heroínas trazidos pelo escritor estão Chico Rei, o monarca negro de Ouro Preto; Zacimba Gaba, princesa africana de Angola que foi escravizada no Brasil, envenenou seu senhor e se tornou líder quilombola; Tereza de Benguela, conhecida como a rainha dos quilombos de Mato Grosso; Benedito Meia-Légua, quilombola que convenceu os senhores de engenho escravocratas de que era imortal como estratégia de libertação de escravizados.
Além de reinterpretações da história contada pelos colonizadores, como Leopoldo 2º (1835-1909), rei da Bélgica, que patrocinou um genocídio com número estimado entre 8 e 10 milhões de pessoas no Congo, na virada do século 19 para o 20.
Lançamentos
No último 20 de novembro, dia da Consciência Negra, o escritor lançou a série Ficções Selvagens, em parceria com a Orelo Áudio, que discute os problemas sociais no Brasil a partir da ficção cientifica.
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"A realidade brasileira, que é essa segregação tecnológica, com 40 milhões de brasileiros que nunca acessaram a internet, a gente parece que está vivendo um país que é uma ficção científica, uma distopia, e tem um estado inteiro há mais de 10 dias sem eletricidade. Todas estas questões sociais podem ser traduzidas através da ficção científica, através da fantasia, que é o que eu sempre acreditei desde que eu era um molequinho, escrevendo e sonhando."
Na literatura, o autor já publicou a obra Rastros de Resistência: Histórias de luta e liberdade do povo negro e vem sem dedicando agora ao livro O Último Ancestral, previsto para ir às livrarias em 2021.
"A gente tem um mundo onde tem pessoas que ainda herdaram comportamentos e imagens racistas. Pessoas que acham que negros trabalham menos, ou que negros não são tão inteligentes, ou que não servem para serem médicos. E esse comportamento vem por conta do entretenimento. As pessoas não aprenderam isso abertamente na escola, elas foram reproduzindo através dos padrões de televisão, dos padrões da indústria da moda. E eu quero ser um desses tijolos de reconstrução do imaginário social brasileiro. É um papel que a gente não vai fazer sozinho, e que eu tenho me esforçado muito para de alguma maneira ajudar a trazer novas figuras para dentro da nossa sociedade", finaliza.
Edição: Marina Duarte de Souza