Autodeterminação

Saara Ocidental: o que está em jogo na guerra que recomeça após 30 anos na África

Ataque marroquino no último dia 13 motivou reações do povo saarauí, que luta há décadas por autodeterminação

Brasil de Fato | Florianópolis (SC) |

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Marrocos rompeu acordo de cessar-fogo assinado em 1991 - FAROUK BATICHE / AFP

"Essa guerra pode durar mais 10, 20 anos. Só termina com o referendo e a libertação completa dos territórios sob ocupação marroquina." 

O prognóstico do ativista de direitos humanos Jamaa Baih reflete a desconfiança de quem acompanha há anos as tentativas de pacificação do conflito entre Marrocos e a Frente Polisário – movimento que defende a independência do Saara Ocidental e a autodeterminação de seus cidadãos, os saaráuis.

O referendo mencionado pelo ativista é justamente uma consulta à população sobre a independência do território, prometida há 29 anos. “A Frente Polisário não confia mais nas Nações Unidas e não vai encerrar a guerra até que suas demandas sejam realizadas”, completa Baih, que integra o Coletivo de Defensores dos Direitos Humanos Saarauís (Codesa).

Independente da Espanha desde 1975, o Saara Ocidental fica no Norte da África, voltado para o Oceano Atlântico, e faz fronteira com Marrocos ao norte, com Argélia a leste e com a Mauritânia ao sul. Desde 1960, integra a lista das Nações Unidas de territórios não autônomos.

Um ataque marroquino à região da chamada "fenda de Guerguerat", porção sul do Saara Ocidental, na última sexta-feira (13), rompeu o acordo de cessar-fogo assinado entre a Frente Polisário e o Marrocos em 1991. Como não houve reação da Organização das Nações Unidas (ONU) ao ataque, os saaráuis declararam “estado de guerra” e regresso à luta armada após quase 30 anos.

No momento das agressões, civis saaráuis acampados protestavam contra a ocupação marroquina na região da "fenda", considerada pelos movimentos independentistas como "um corredor ilegal para saquear riquezas." Diante da inércia da ONU, o Exército de Libertação do Povo Saarauí (SPLA) revidou imediatamente as agressões e também bombardeou bases marroquinas. Os números de mortos e feridos são incertos até o momento.

“O ataque a Guerguerat é estratégico para Marrocos. Assegurar a ocupação para sempre e impô-la como ‘uma realidade’ pode ser uma das intenções”, analisa Mahjoub Hussein Mleiha, que integra o comitê administrativo do Codesa. “A análise também não pode ignorar a geopolítica do entorno. O Saara Ocidental é uma chave para a estabilidade na região e é mais uma fronteira da Argélia a ser transformada em zona de guerra, depois do Mali e da Líbia”, completa.

Nos últimos cinco dias, confrontos, agressões e sequestros vêm sendo registrados ao longo do chamado Muro da Vergonha, que tem 2,7 mil km, foi construído com assessoria de Israel e é vigiado por mais de 150 mil soldados marroquinos. Uma criança de 12 anos foi torturada pela polícia do Marrocos.

“As pessoas estão com medo e querem uma solução pacífica. No fim das contas, as maiores vítimas são os civis”, lamenta Baih. “São pessoas desarmadas, em uma área de ocupação marroquina, que hoje saem às ruas pacificamente com bandeiras da República Árabe Saarauí Democrática e da Frente Polisário porque não querem que seus filhos continuem vivendo em meio a tanta violência.”

“O único que o povo saarauí deseja é uma oportunidade de viver em suas terras, em paz. É necessário que se respeite o Direito Internacional e que as Nações Unidas e a Cruz Vermelha protejam os civis saaráuis nos territórios ocupados”, acrescenta o ativista. Baih ressalta a importância estratégica da região, que “vem sendo usada por Espanha e Marrocos para pesca e exploração de fosfato.”

Somando os saaráuis que vivem em áreas sob ocupação marroquina, em zonas “livres” e em acampamentos de refugiados, ao Sudeste da Argélia, a população se aproxima dos 600 mil.

Histórico

Para Jamaa Baih, a Espanha é a principal responsável pela ocupação marroquina e pelo atual conflito. Em 1975, por meio do Acordo de Madri, o país europeu entregou ao Marrocos e à Mauritânia a administração do Saara Ocidental. O acordo contrariou um parecer da Corte Internacional de Justiça da ONU.

Imediatamente, a Frente Polisário declarou guerra contra os vizinhos. Foram 16 anos e mais de 10 mil mortos até o cessar-fogo, em 6 de setembro de 1991.

Uma das condições da trégua com o Marrocos, intermediada pelas Nações Unidas, era a convocação, no ano seguinte, de um referendo – que jamais ocorreu.


Frente Polisário não deve recuar até conquistar a libertação dos territórios ocupados pelos marroquinos / AFP / ROYAL MOROCCAN ARMY FACEBOOK PAGE

Violações

Os quase 30 anos de cessar-fogo não significaram a interrupção das violações dos direitos do povo saarauí. “Os atropelos são inúmeros”, afirma Isabel Lourenço, que representa famílias de presos políticos junto às Nações Unidas. “Pessoas são detidas arbitrariamente e levadas a prisões dentro do Marrocos, o que é uma violação claríssima do Direito Internacional e da Convenção de Genebra.”

“Nos territórios ocupados, há uma situação muito parecida com a do apartheid, com o empobrecimento forçado da população saarauí”, compara. “Há segregação nas escolas. As crianças saauáris não estão em escolas diferentes, como na África do Sul, mas não têm direito a fazer perguntas. São chamados de burros, de inferiores, ouvem que suas mães são prostitutas e seus país são assassinos.”

O número de presos “fixos”, segundo Lourenço, gira em torno de 40, mas varia constantemente. “Os que têm as condenações mais longas pertenciam a um acampamento destruído brutalmente em 2010, em que reivindicavam seus direitos sociais, econômicos e políticos, emprego e habitação.”

“Houve centenas de detenções, torturas. Algumas ficaram três anos sem qualquer tipo de julgamento, e estes foram condenados em um tribunal militar, de 20 anos a prisão perpétua, acusados de atacar autoridades marroquinas, sem qualquer evidência, provas forenses, nada disso.”

Lourenço é a única observadora que esteve nos dois julgamentos dos presos políticos, em 2013 e 2017. “Tanto em um como no outro, via-se as marcas de torturas dos acusados. Um deles, mesmo durante o julgamento, continuava sangrando, e tinha a roupa toda manchada de sangue”, lembra.

Jamaa Baih, integrante do Codesa, explica por que a mídia tem dificuldade em cobrir os conflitos no Saara Ocidental: “As forças militares da ocupação estão no aeroporto da capital [El Aiune]. No território ocupado, não deixam as organizações internacionais de direitos humanos entrar, não deixam jornais estrangeiros observar a situação”, denuncia.

No Brasil

O Itamaraty se posicionou nesta quarta-feira (18) sobre os confrontos recentes no Saara Ocidental. A nota não cita os ataques marroquinos do dia 13, mas pede respeito ao cessar-fogo de 1991.

“No interesse da paz e da prosperidade da região, o Brasil espera que sejam assegurados, de maneira desimpedida, o tráfego e os fluxos comerciais no passo de Guerguerat. Ao reiterar o seu apoio ao processo em curso no âmbito das Nações Unidas com vistas a uma solução justa e mutuamente aceitável para a determinação do status final do território do Saara Ocidental, o Governo brasileiro rejeita o recurso à violência e apela a que seja respeitado o cessar-fogo em vigor desde 1991”, diz o texto.

Fundada há dois anos, a Associação de Solidariedade e Pela Autodeterminação do Saara Ocidental (ASAHARA) planeja fazer manifestações em frente à Embaixada do Marrocos nos próximos dias. “Vamos promover atos públicos, manifestações de solidariedade, para quebrar o desconhecimento que se tem em relação ao assunto”, explica a ex-deputada Maria José Conceição, presidenta da Associação.

Conceição se reuniu na noite de terça (17) com o embaixador da Frente Polisário para o Brasil, Emboirik Ahmed, e tem recebido informações em tempo real sobre os conflitos. A ex-deputada elogia as manifestações públicas de autoridades da Namíbia, do Zimbábue e da Argélia, em apoio à causa saauári, e lembra que já há movimentações de tropas argelinas, aliadas da Frente Polisário na região.

“A Frente Polisário não vai recuar da sua posição”, completa.

Mahjoub Hussein Mleiha ressalta que a resolução dos conflitos não depende só do povo saauarí. “A realização de um referendo livre e justo que permita ao povo saauarí exercer o seu direito à autodeterminação é a única ponte pacífica para uma descolonização pacífica no Saara Ocidental”, reafirma.

“A comunidade internacional deve agir para ver isso implementado. A ONU, a União Africana e a União Europeia são todas as partes interessadas que precisam de agir imediatamente para fim à ocupação marroquina”, finaliza a ativista.

Edição: Rodrigo Chagas