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Direito é direito | A epopeia de Zumbi e o território livre quilombola

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Os direitos territoriais quilombolas são reconhecidos hoje pelo STF, mas esse grupo sofre os efeitos da omissão deliberada do governo federal - Foto: Agência Brasil
A luta quilombola é o 'brado da vida contra a morte' no 'primeiro estado livre do Brasil'

“E de repente, era um, eram dez, eram milhares. Sob as asas azuis da liberdade, nascia o Estado de Palmares”. Os primeiros versos da canção “Epopeia de Zumbi”, de Nei Lopes, mostram o sonho e a esperança que marcam a história de Palmares e de Zumbi.

A luta quilombola é o “brado da vida contra a morte” no “primeiro estado livre do Brasil” que, perseguida durante mais de 100 anos, tem em Zumbi um grande líder. Ciente de que nenhum negro ia ser rei enquanto houvesse uma senzala, esse grande líder caiu no dia 20 de novembro por preferir conquistar a liberdade a recebê-la. Foi morto para que sua história e seu brado forte fossem lembrados em todos os céus desse Brasil.

Esse é o espírito do dia da consciência negra.

Em Valença, no interior do estado do Rio de Janeiro, terra de Clementina de Jesus, o sonho de liberdade embala há mais de 150 anos o Quilombo São José da Serra. Durante mais de 20 anos, parte do território quilombola permaneceu nas mãos de particulares, que insistiam em dizer que a área pertencia ao patriarca da família e que os quilombolas eram empregados com os quais mantinham tão somente relações de afeto e amizade. Os quilombolas, porém, sequer podiam entrar na área para deslocar-se de um ponto a outro do território.

Essa história mudou em 30 de abril de 2015. Naquele dia, após decisão judicial, o quilombo São José se reunificou. Acompanhados do oficial de justiça, eles caminharam até a cerca de entrada da “fazenda”, onde havia uma placa com os seguintes dizeres: “Não entre sem autorização”.

Por costume, eles inicialmente pararam. Afinal, durante anos aquela cerca impedira o acesso à área e dificultara o deslocamento entre duas partes do território que já haviam sido reconhecidas pelos órgãos oficiais. Por conta disso, idosos do quilombo precisavam andar quilômetros para desviar daquela propriedade e chegar a outra parte do quilombo para ver familiares.

O líder da comunidade, Toninho Canecão, logo pediu a palavra. E lembrou as agruras da comunidade até a chegada daquele dia. “Ninguém do quilombo podia passar aqui. Aqueles que têm 20 anos de idade não conhecem essa área. Eu fui criado aqui, comendo jabuticaba, jamelão”. Relatou as dificuldades de uma senhora do quilombo, com o nome Joana D'Arc, que era idosa e tinha dificuldade de locomoção.

"Essa senhora aqui… ela mora atrás daquela mata… E para ir até aquela casa que está situada a 500 metros, ela tinha que dar uma grande volta" disse.

Destacou a concretização do sonho: “Ao atravessar essa porteira, o povo do São  José vai encontrar a grande liberdade que sempre sonhou”. Em seguida, postou-se em frente à placa que impedia a entrada de outras pessoas na propriedade e afirmou: 

A partir de agora, esta placa não existe mais. Aqui é área livre, é área de quilombo.

Em seguida, quebrou a placa, para delírio dos presentes, e derrubou a cerca, permitindo que todos pudessem seguir em frente.

A placa quebrada tornou-se um símbolo do quilombo São José e da liberdade. Em pouco tempo, a unificação do território permitiu a rápida expansão de áreas de cultivo e a utilização da grande casa da propriedade para acolher visitantes e realizar eventos. O quilombo São José, que já era uma referência de resistência no Rio de Janeiro e no Brasil, pôde enfim ter paz em seu território e se fortaleceu na defesa de tradições como o jongo, tão cantado por ali.

Para Tio Mané, de 95 anos, trata-se de uma conquista para as novas gerações: “a terra aqui representa muita coisa né. Pra mim já tô de idade, mas tenho satisfação porque tenho neto, tenho filho, bisneto, tatarento. Já serve pra eles, pra trabalhar, né?”. 

Eu pude testemunhar aquele momento e sentir a força da ancestralidade e o peso da luta por justiça. Inverter a lógica das reintegrações e imissões de posse foi muito especial. Acostumado a situações em que a defesa de direitos territoriais e do direito à moradia é preterida por uma defesa vazia e abstrata da propriedade privada, naquele dia eu pude ver justiça, história e igualdade em um mesmo pacote.

Graças à fala de Toninho, pude perceber o tamanho daquela conquista e um final feliz na epopeia do quilombo São José, que derrubou cercas para construir um novo futuro para os seus filhos e netos. Foi possível, ainda que por um dia, ver a justiça transformar pra sempre a vida de uma comunidade.

A luta antirracista passa por superar desigualdades em todos os campos, e o acesso à terra é um dos principais.

Outras epopeias estão por vir. O direito dos quilombolas a seus territórios está garantido na Constituição e o procedimento de regularização da terra foi estabelecido pelo Decreto nº 4.887/2003. Durante muito tempo, questionou-se a constitucionalidade do decreto, e apenas em 2018 o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, na ADI 3427, que o direito territorial quilombola se funda no compromisso com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária.

O tribunal afirmou, com todas as letras, que esse direito consiste na convergência da luta pelo reconhecimento, baseada na distintividade étnico-cultural própria desses grupos – com a demanda por justiça socioeconômica, de caráter redistributivo – fruto da demarcação das terras.

Persiste, no entanto, um descompasso entre a quantidade de comunidades quilombolas cujo autorreconhecimento foi certificado pela Fundação Palmares e o número de titulações já realizadas pelo Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A falta de demarcação dos territórios gera intranquilidade e conflitos. Interesses militares, empresariais e de grileiros muitas vezes são sobrepostos aos direitos fundamentais das comunidades, sem qualquer justificativa legal ou constitucional.

Na pandemia, a vulnerabilidade quilombola aumentou. Em setembro, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) e cinco partidos pediram diretamente ao Supremo pedir o reconhecimento da omissão do governo federal quanto ao atendimento dessa população no combate à covid-19.

A ADPF 742, conhecida como "ADPF quilombola", destaca o impacto desproporcional da pandemia sobre esses povos e a necessidade de adoção de certas medidas, como a elaboração de um plano nacional de atendimento, a distribuição de cestas básicas, acesso regular a leitos, fortalecimento de programas de saúde da família, testagem regular, entre outras, e a criação de grupo interdisciplinar para cuidar do tema. 

A ação traz pedidos urgentes, porém estes não foram apreciados até agora. Outros temas urgentes são apreciados com extrema rapidez, mas para os quilombolas o caminho é árduo. E assim prosseguimos remando contra a maré. A luta antirracista tem pressa e não pode ser combatida apenas com belas palavras. É urgente garantir a defesa dos territórios e dignidade a essas comunidades. E, como na música, de repente será um, serão dez, serão milhares.

Edição: Mariana Pitasse