Debate racial é uma das grandes questões da política contemporânea. Isso a gente não pode descartar
A eleição nos Estados Unidos movimentou a semana de noticiários mundo à fora. Não apenas pela demorada contagem dos votos ou a relutância de Donald Trump em aceitar a derrota nas urnas, mas também pela eleição da primeira mulher e da primeira mulher negra para vice-presidência da Casa Branca.
Os questionamentos sobre a posição moderada de Kamala Harris (Democratas) e sua dura atuação como promotora de Justiça no estado da Califórnia levantaram debates sobre o que representará sua gestão nos próximos quatro anos na Casa Branca.
Para Rosane Borges, escritora e doutora em ciências da comunicação, quando falamos “sobre economia, política, educação e cultura, a gente não tem como prescindir da questão racial e por isso a eleição de Kamala Harris é importante”.
Entrevistada desta semana no programa BDF Entrevista, publicado pelo Brasil de Fato e também com exibição todas às sextas-feiras na Rede TVT, às 20h, Rosane Borges também fala sobre a representatividade negra na política estadunidense, a partir do ponto de vista da gestão do democrata Barack Obama, da posição ética e moral adotada pela mídia estadunidense durante um discurso de Donald Trump e as eleições no Brasil.
Para Borges, a política institucional brasileira tem uma “deformação de base”. “Um partido se constrói para intervir no espaço público, para legislar, para executar programas e atividades que, nas cidades, nos estados e na federação, exista uma garantia mínima de direitos. Se ele não toma a questão racial como fundamental, significa dizer que ele está fracassando naquele que é o principal objetivo”.
A ideia de que as candidaturas negras são identitárias, segundo Borges, também esbarra em questões distorcidas para reforçar um “racismo estrutural”.
“O [Karl] Marx já dizia: 'Trabalhadores do mundo, uni-vos', se isso não for uma identidade de classe, eu não sei o que é isso. E a identidade é fundamental em uma sociedade hierarquizada, você tem que saber qual é o seu lugar nesse mundo e isso se dá a partir da identidade”.
Confira os principais trechos da entrevista:
Brasil de Fato: O que representa a eleição de Kamala Harris como vice-presidente dos Estados Unidos? Os estadunidenses estavam nas ruas em uma onda de protestos que diziam que vidas negras importam, e agora há uma representação na Casa Branca. É possível depositar esperanças na vice-presidente, mesmo com as complexidades de sua trajetória?
Rosane Borges: Eu acho que é uma vitória, a gente não pode desconsiderar isso, principalmente no ano em que os Estados Unidos e o mundo presenciaram a morte de George Floyd. Não porque aquela morte seja algo inusual, de novidade, no Brasil a gente tem, a cada 23 minutos, um George Floyd.
Mas acho que George Floyd marca um ponto de inflexão sobre o racismo policial, o racismo institucional e o mundo todo assistiu de maneira entre constrangedora, vergonhosa e raivosa, a morte de alguém que durante oito minutos dizia que não estava conseguindo respirar, com um coturno de um policial que era puro ódio. Ele sabia que estava matando.
O supremacismo branco, a tentativa da morte do outro, sempre tem um fundamento racial
Por isso, é importante ter uma mulher negra na vice presidência da potência que são os Estados Unidos, a despeito de não ser mais a grande potência. O debate racial é uma das grandes questões da política contemporânea. Isso a gente não pode descartar.
O que a gente chama de alterofobia, o supremacismo branco, a tentativa da morte do outro, sempre tem um fundamento racial. Ele pode até não ser um racial negro em alguns lugares do mundo, mas em geral, é uma questão racial negra.
Então [a eleição da Kamala Harris] ganha uma importância nesse sentido. Para a gente falar de economia, de política, de educação e cultura, a gente não tem como prescindir da questão racial.
A gente também não pode apostar todas as fichas no Biden e na Kamala Harris. Essas eleições, assim como no Brasil, em 2018, elas tiveram caráter plebiscitário, ou seja: você não foi votar no candidato e na sua proposta política, as pessoas votaram em um paradigma. A trajetória política da Kamala Harris também precisa da nossa atenção. Não vamos colocar ela como a salvação.
Eles não mudarão, por exemplo, a relação dos EUA com a América Latina, isso os democratas jamais farão, mas voltarão a adotar um critério de razoabilidade nas relações internacionais.
A análise da eleição da Kamala Harris pode cair nos mesmos critérios utilizados, por exemplo, para analisar Barack Obama, como presidente dos Estados Unidos? Internamente, no contexto estadunidense e para o movimento negro foi uma conquista sem tamanhos, mas externamente há controvérsias sobre a sua atuação política, certo?
Os Estados Unidos estão fora de alguns quadrantes de análise. Quando as pessoas criticavam o Barack Obama aqui, eu costumava explicar que a nossa análise se dá primeiro a partir do parâmetro esquerda e direita, como se isso tivesse algum eco entre democratas e republicanos e aí, uma análise como essa cai mais no tradicionalismo da política europeia, do que na política dos EUA.
Mesmo com as críticas que nós temos, brasileiros, pessoas afro-brasileiras, em relação à política estadunidense, nós precisamos colocar em perspectiva como a política se dá nesse país, o que são os republicanos, os democratas e outros partidos menores, que acabam influenciando, apesar de sumirem nas disputas presidenciais.
Ângela Davis fez um vídeo recente falando sobre a Kamala Harris, sua não posição contra a pena de morte, a omissão no encarceramento de homens negros, enfim. É uma trajetória que têm contradições, mas que no contexto estadunidense e eu diria que até em outros contextos, não é algo que tensione e que deslegitime a presença dela como uma pessoa capaz de pensar política e trazer alento para os Estados Unidos.
Costumo dizer para os amigos brasileiros, que não podemos cair nas armadilhas do racismo. Porque quando um presidente negro ou uma mulher negra são eleitos, a gente quer que eles sejam o mais esquerdista possível e isso é muito cruel, por que não é a trajetória dos democratas.
Nós exigimos algo do Obama que não estava dentro do enquadre dele e do partido e ainda assim, com todas as críticas que eu tenho à sua política belicista, acho que ele [Obama] foi uma experiência extraordinária.
As interrupções do discurso de Donald Trump por TVs estadunidenses foram comemoradas por muitos, justamente pela razoabilidade, ao evitar a propagação de fake news. Mas ela abre precedentes perigosos para o jornalismo, não?
Esse é um dos pontos altos dessa eleição, ou baixos na verdade. Eu vibrei, gostei, achava que esse cara devia ser parado. Mas do ponto de vista ético, a pergunta é: era essa a saída?
Se por um lado ela é moralmente justa, do ponto de vista ético ela abre um precedente que é complicado para o jornalismo. O certo seria que eles deixassem Trump falar e ao final da fala, apontar as mentiras, o que não se verifica a partir dos dados, dos argumentos. Mas eles não permitiram.
Isso nos leva também a analisar dois cenários: um sobre o que será a cobertura jornalística a partir dessa intervenção ao vivo e um outro sobre o jornalismo permissivo. Se aquelas emissoras tiveram que fazer aquilo, é porque elas já tinham permitido que ele chegasse até aquele momento.
Essas emissoras são responsáveis e eu diria mais, elas são culpadas daquele cara permanecer fazendo e falando o que faz e ir para a televisão se achando no direito de mentir. A permissividade foi tão grande que o jornalismo chegou em um momento em que o jornalismo não tinha mais recurso ético, só tinha uma postura moral, porque o próprio jornalismo esgotou, abriu a guarda e permitiu.
E agora, como essas emissoras vão se portar? Se houver outro debate político e o jornalista achar ou mesmo tiver provas de que um candidato está mentindo, a intervenção da fala, em um jogo político, ela é terrível. Você não desautoriza alguém.
A gente desautoriza na mesa de bar, um colega que está mentindo, interrompe. Mas quando a gente está falando de jornalismo, a gente está falando de circulação da palavra na esfera pública. E aí sim, uma vez que ela circular, a gente tem mecanismos éticos para dizer: isso não pode, isso não deve. Por isso existe a lei.
Você acha que essa eleição nos EUA também pode influenciar as eleições municipais? Como vê a questão das candidaturas negras no Brasil? Não conseguimos cumprir a distribuição de cotas para negros dentro dos partidos de forma efetiva ainda.
Se o racismo é estrutural como vem dizendo o movimento negro brasileiro desde a década de 1970 e que foi reafirmado por Silvio de Almeida em seu último livro, isso significa dizer que pensar política na institucionalidade é pensar como a gente enfrenta o racismo.
O que faz o Brasil ser o Brasil é dinamizado pelo racismo. O nível de exclusão que a gente tem é por conta do racismo, a desigualdade, a pobreza, é porque nós temos racismo no Brasil.
Nosso IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) fica entre o 79 e 82 lugar, mas quando você considera só a população branca, ele melhora, vai para 42º lugar. Quando considera só a população negra, ele piora e vamos para o 114º lugar.
E porque estou dizendo isso? Um partido se constrói para intervir no espaço público, para legislar, para executar programas e atividades que, nas cidades, nos estados e na federação, exista uma garantia mínima de direitos. Se ele não toma a questão racial como fundamental, significa dizer que ele está fracassando naquele que é o principal objetivo dele. A gente já começa com uma deformação de base.
Nessas eleições, como a gente viu essa deformação de base? Mesmo com a obrigatoriedade, os partidos não distribuíram os recursos para candidatos e candidatas negras e saiu uma pesquisa recente, que é fundamental, sobre desigualdades no Brasil em relação a pessoas negras e brancas en duas áreas foram consideradas sensíveis: o mercado de trabalho e a questão partidária. São duas esferas que você vê a não presença ou a presença subjugada de pessoas negras.
Esse é um problema que a gente tem que resolver, porque a ideia de representatividade ela atinge o coração da dinâmica contemporânea dos nossos partidos políticos. A representatividade nos diz, primeiro, o que é hegemônico no mundo.
Se você só vê homens brancos na posição de mando, a gente faz uma correlação direta com a realidade, que as imagens de poder vão estar circunscritas a esse grupo.
Então a presença de pessoas negras responde a essa representatividade, por um lado, e é importante porque a política deve ser pensada em um caráter universalizante, que parte de determinadas categorias para entendermos o que a gente chama de todos, de todes, do que a gente chama de sujeito, de estrutura.
As candidaturas de mulheres negras que se colocam nessas eleições são ainda mais fundamentais, porque é a quebra dessa hegemonia branca, hétero, cis, mas elas são candidaturas de pessoas que habitam as bordas do mundo.
E tem pensador que diz o seguinte: "Os habitantes da borda veem coisas inimagináveis, veem coisas que as pessoas do centro não veem, as tragédias que começam corroendo a borda”. Significa dizer que uma mulher negra que tem uma plataforma política para pensar a cidade dela, é importante considerar sua trajetória e expertise, porque ela sabe o que é exclusão.
O que a gente percebe é que isso se tornou uma discussão identitarista. Mas tudo é identitário. O [Karl] Marx já dizia: “Trabalhadores do mundo, uni-vos”. Se isso não for uma identidade de classe, eu não sei o que é isso. E a identidade é fundamental em uma sociedade hierarquizada, você tem que saber qual é o seu lugar nesse mundo e isso se dá a partir da identidade.
Os verdadeiros identitários, na verdade são o Donaldo Trump, o presidente que está hoje no Brasil, foi o Hitler, porque eles têm uma identidade como finalidade da política.
Edição: Leandro Melito