O debate acerca das modalidade de tratamento do uso problemático de álcool e outras drogas é antigo, abstinência e uso de grupos auto organizados como Narcóticos Anônimos, a conversão religiosa a determinado segmento de fé, uso de medicações, redução de danos, enfim, um debate extremamente acalorado muitas vezes perpassando por concepções espirituais individuais ou interesses de grandes corporações capitalistas ignorando a ciência.
A Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) tem no seu corpo de projetos de lei em tramitação o PL nº 676/2019 que tem por objetivo instituir uma política estadual de drogas. Uma audiência popular para discutir o projeto acontece nesta quarta-feira (4), a partir das 18h, com transmissão online. O evento é organizado pela Iniciativa Direito à memória e Justiça Racial (IDMJR), Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas e a Rede de Comunidades e Movimento contra à Violência do Estado.
É sabido que a Constituição Federal em sua repartição de competências estabelece que matéria de Direito Penal é competência exclusiva da União.
Então, sobre o que uma política estadual de drogas pode falar? A resposta é saúde.
E esse tópico é o mais complexo. A competência legislativa dos estados prevê a possibilidade de legislar sobre matéria da saúde em caráter complementar a legislação Federal. A recente alteração da Lei de Drogas (Lei 11.343/2006) prevê, dentre outras possibilidades, internação involuntária a pedido de familiar, responsável legal ou servidor público da área da saúde, assistência e da Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD). Logo, o Estado do Rio pode partir desses parâmetros para formular suas intervenções a usuários problemáticos ou como usualmente denomina “dependentes”.
Importante destacar que o Rio de Janeiro tem diversas legislações aprovadas sobre a temática, leis inclusive absolutamente conflitantes que estão em vigor, visto que não houve declaração de inconstitucionalidade.
Neste link apontamos esta longa listagem, um pouco curiosa, que nos faz refletir sobre o tema. Existem um dia estadual de prevenção e combate ao uso de drogas, existem também um programa estadual de prevenção e consumo de crack e diversas iniciativas que podem ser entendidas como uma política ampla sobre drogas.
O projeto de lei que motivou este artigo está alinhado, em grande parte, ao debate nacional sobre drogas deste governo. Em diversos momentos nos artigos propostos, o deputado Márcio Pacheco (PSC) optou pela transcrição literal das previsões nacionais e a defesa da abstinência como principal opção política para o atendimento de usuários problemáticos de álcool e outras drogas.
O projeto inova no âmbito estadual direcionando ações repressivas ao tráfico de drogas e direcionando potencialmente dotação orçamentária para ações ligadas a guerra as drogas, além de normatizar matéria de direito penitenciário sobre “alas exclusivas para conhecedores de técnicas de refino”.
Comunidades terapêuticas
Apesar disso, nos chama a atenção a previsão tímida da possibilidade da adoção da redução de danos como abordagem a ser utilizada com estes usuários, obviamente, a concepção defendida pelo projeto no geral corrobora a abstenção como método prioritário, visto que se fala explicitamente em Comunidades Terapêuticas (CTs).
As CTs são espaços com forte conexão com orientações religiosas, sendo inclusive mantidos por igrejas e centros espíritas que apresentam como abordagem aos usuários de drogas a concepção de abstinência total ao uso de drogas. Elas foram incluídas na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), criada em 2011, e podem receber financiamento do Governo Federal desde 2012, conforme portaria do Ministério da Saúde.
O Brasil tinha, desde 2001, a estratégia de redução de danos em seu rol orientador de políticas públicas para usuários problemáticos de drogas.
Observamos com o passar dos anos o subfinanciamento da RAPS, em especial o estrangulamento orçamento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em prol do financiamento das Comunidades Terapêuticas. Apesar da proposta apresentada pelo deputado Marcio Pacheco conter a expressão tímida de redução de danos, não é suficiente se não for levada a cabo a garantia orçamentária dos equipamentos de saúde.
Além disso, o projeto não reproduz a vedação prevista na própria lei de drogas sobre internação de adultos em comunidades terapêuticas, que seriam espaços transitório e somente de desintoxicação. Também as Comunidade Terapêuticas estão inseridas nas normas de vigilância sanitária, que exigem que esses espaços cumpram requisitos para recebimento destes indivíduos.
Ingerência do tratamento
O prazo de 72 horas previsto para comunicação as instituições do sistema de justiça das internações nestes espaços são efetivadas? Quantas CT’s habilitadas existem no Rio? Quais fiscalizações estão sendo realizadas ou serão para garantia do direito dos usuários?
Um grande debate de fundo da questão relacionada ao uso problemático de drogas é a possibilidade de ingerência no próprio tratamento, por isso é tão importante compreender que existe legislação no Brasil que garante direitos aos portadores de transtornos mentais que é a Lei 10.216/2001 que prevê expressamente: “Art. 2º (…) V – ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessidade ou não de sua hospitalização involuntária”.
Logo, os usuários ou dependentes podem escolher estar ou não nos espaços de tratamento e, principalmente, se opor ao seu tratamento. Essa questão se torna ainda mais séria após a resolução recente do Conselho Nacional de Poíticas sobre Drogas (CONAD) autorizando internação “voluntária” de adolescentes usuários de drogas.
Colocamos voluntária entre aspas visto que a autorização é dos responsáveis legais e o direito a convivência familiar e comunitária é direito dessa pessoa em desenvolvimento.
O projeto de lei, apesar de alinhado com política nacional, aponta um retrocesso histórico no debate da área da saúde e na garantia aos direitos humanos dos usuários de drogas e portadores de transtornos mentais.
*Natália SantAnna é pesquisadora, advogada e mestre em Direito.
Edição: Mariana Pitasse