Roraima não tem nenhum centro de tratamento de câncer infantojuvenil e, por isso, atualmente é o estado que mais envia crianças e adolescentes para o Hospital de Amor, antigo Hospital do Câncer de Barretos (SP), segundo dados da Associação Helena Piccardi de Andrade Silva (AHPAS), instituição sem fim lucrativos que atua desde 1999 no apoio a crianças com a doença.
O Hospital do Amor não é o único que recebe pacientes de outros estados. Maristella Bergamo Francisco dos Reis, médica assistente da oncologia pediátrica do Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto, explica que a situação mais crítica está nas regiões Norte e Nordeste, especialmente fora dos grandes centros urbanos. No caso da capital Boa Vista (RO), muitos pacientes chegam do interior com o tumor em estágio avançado de progressão.
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“Eu vejo no país a situação do câncer infantojuvenil muito discrepante porque a gente tem os grandes polos, principalmente na região Sul e Sudeste, de um lado, e de outro as regiões Nordeste e Norte com uma carência muito grande de serviços. A gente recebe aqui em São Paulo, por exemplo, muitas crianças vindas dessas regiões, principalmente, e há diferença na taxa de mortalidade. A gente vê mais mortes nas regiões Norte e Nordeste do que na Sudeste”, explica.
Um estudo revelou que em 2014 ocorreram no país 2.724 óbitos por câncer em crianças e adolescentes (de 0 a 19 anos).
Sobre o caso específico de Roraima, Reis conta que há uma jovem em tratamento em sua unidade. “Ela tem 18 anos e é mãe de um bebê. Uma oncologista ótima a acompanha lá [em Roraima] e faz todo esforço necessário para ajudá-la. Mas ainda assim para algumas coisas ela precisa vir a São Paulo”, completa.
A gente vê mais mortes (por câncer infantojuvenil) nas regiões Norte e Nordeste do que na Sudeste
Segundo o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA), há uma tendência de que o câncer em crianças e adolescentes apresente menores períodos de latência, pois costuma crescer rapidamente e tornar-se bastante invasivo, porém responde melhor à quimioterapia.
De acordo com o diretor-médico do Hospital de Amor Infantojuvenil, Dr. Luiz Fernando Lopes, a unidade infantojuvenil do HA tem todas as condições de tratar as crianças com a mesma qualidade dos países com altos níveis de desenvolvimento (especialistas experientes, medicamentos adequados e uma excelente estrutura), mas nada disso impacta na vida das crianças se elas não chegarem precocemente para o tratamento. Ele explica que no Brasil o número de centros de transplantes de medula óssea (TMO) especializados na população pediátrica é pequeno.
“Desde 2012, a nossa unidade infantojuvenil é a sede do Grupo Cooperativo Brasileiro de Síndromes Mielodisplásicas em Pediatria. Por conta disso, crianças e adolescentes de todo o país com suspeita de síndromes mielodisplásicas (SMD) – grupos raros de doenças pré-malignas, com risco de transformação para leucemia – ou leucemia mielomonocítica juvenil (LMMJ) – também uma doença rara, são encaminhadas para o Hospital de Amor para a realização do diagnóstico e tratamento, que inclui o transplante de medula óssea”, relata.
Muitas dessas crianças chegam com apoio de programas governamentais, como o TFD (Tratamento Fora de Domicílio), que assegura os custos com a despesa do paciente e acompanhante, por meio de liberação de ajuda de custo e passagem.
Para Reis, realizar o tratamento longe de casa traz um sofrimento grande tanto para o paciente, quanto para sua família: “Se a criança está com câncer lá em Roraima, ela não fica indo e voltando de lá, ela se muda pra cá. A criança fica subsidiada (pelo TFD, programa de governo), a família usa esse dinheiro, então elas não ficam indo e vindo. O TFD é só pra criança e mais um acompanhante, então ela fica muito isolada, longe dos irmãos, longe do pai muitas vezes, dos avós. Para eles é muito triste, tanto pra criança quanto pra mãe, ou para quem acompanha”.
Fórum debaterá questões do tratamento ao câncer infantojuvenil
Segundo o INCA, O câncer em crianças e adolescentes (de 0 a 19 anos) é considerado raro quando comparado com o câncer em adultos, correspondendo entre 2% e 3% de todos os tumores malignos registrados no Brasil. Portanto, deve ser estudado separadamente por apresentar diferente comportamento clínico e origens histológicas. O assunto será tema, no próximo dia 23 de novembro, do II Fórum AHPAS pela integralidade do tratamento de crianças e adolescentes com câncer, online, organizado pela AHPAS.
A associação sem fins lucrativos, criada em 1999, realiza o transporte especializado de crianças e adolescentes durante todo o período de tratamento na cidade de São Paulo. A capital paulista tem a maioria de seus centros de tratamento na região central, ou seja, distantes das residências dos pacientes, localizadas nas periferias da cidade.
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O transporte especializado garante qualidade de vida, acesso regular aos hospitais e aumento das chances de cura, já que o paciente é poupado das dificuldades do transporte público e chega ao hospital muito mais disposto e aderente ao tratamento. O retorno à casa também se faz com tranquilidade, minimizando o desconforto causado por um dia de químio e radioterapia.
Tatiana Piccardi é professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo e co-fundadora e voluntária da organização. “A AHPAS surgiu após a morte da minha filha Helena, com apenas cinco aninhos, resultado de um tumor cerebral muito grave. Luiz Maurício, o pai, e eu resolvemos transformar nossa dor em construção solidária e fundamos a AHPAS. O nome da Associação é uma homenagem a nossa Helena, o anjo lindo que até hoje guia os passos de todos os que se envolvem na construção da rede solidária que se iniciou a partir da fundação da AHPAS”, explica.
Os relatos das famílias atendidas descrevem a mudança na disposição, não só da criança em atendimento, mas de toda a família
Ela diz que observou uma mudança significativa na vida dos pacientes atendidos pela associação. “Todos os relatos das famílias atendidas descrevem a mudança na disposição, não só da criança ou adolescente em atendimento, mas de toda a família, que se sente acolhida e respeitada, poupada e cuidada. Além do transporte, serviços complementares foram sendo oferecidos no decorrer dos anos, sempre pensando que o cuidado integral é necessário à plena recuperação. Assim temos hoje o Programa Educação em Movimento (projeto de educação, lazer e cultura a bordo dos veículos), o Roda de Conversa (encontros mensais com pais, mães e cuidadores a fim de encontrar soluções e obter apoio mútuo nesse período difícil), além do Núcleo de Apoio a Pais Enlutados, para famílias que infelizmente perderam seus filhos para o câncer”, relata.
“Entendemos que a morte da criança não pode ser o fim do atendimento, pois a família continua precisando de cuidado. Finalmente, ressalto o Serviço Social da AHPAS, que acompanha caso-a-caso e ajuda a compor o quadro de ações necessárias ao equilíbrio de cada família atendida”, completa.
A cura do câncer infantojuvenil ainda não é obtida em muitos casos, em especial por falta de diagnóstico precoce
A ideia é que a AHPAS seja uma instituição cada vez mais voltada ao cuidado integral da criança, do adolescente e da saúde. A instituição hoje desenvolve ações que envolvem educação, cultura e assistência social de modo a prover o cuidado integral.
“Sabemos que a cura do câncer infantojuvenil ainda não é obtida em muitos casos, em especial por falta de diagnóstico precoce e, por meio do Grupo de Estudos Saudar, idealizador do II Fórum AHPAS, procuramos nos envolver cada vez mais com ações em prol do diagnóstico precoce. Nessa direção, já produzimos materiais elucidativos e, principalmente, o projeto 'A experiência de ter câncer na adolescência - conversa com jovens em tratamento´, palestra interativa ministrada em escolas, com a participação de jovens em tratamento ou curados. Trata-se de encontro inspirador, que orienta sobre sintomas e que também impulsiona os jovens a aprofundarem o sentido da vida”, conta a fundadora da associação.
Hoje a AHPAS conta com uma rede de solidariedade composta por empresas e pessoas físicas, que doam serviços e/ou valores diversos, integrados ou não a projetos específicos. Voluntários conduzem um bazar beneficente e um grupo de captação de recursos. “Graças a essa criatividade, engajamento e agilidade na tomada de decisões de nossa Diretoria (também voluntária), a AHPAS está conseguindo sobreviver à maior crise por que todos nós já passamos, ou seja, a crise desencadeada pelo Covid-19”, explica Piccardi.
Ao fim da entrevista ao Brasil de Fato, um pedido cheio de esperança: “Gostaria de incentivar a todas as pessoas de nosso país, e mesmo do exterior, a participar do nosso Fórum online, no próximo dia 23 de novembro, que é o Dia Nacional de Combate ao Câncer Infantojuvenil. Falar sobre o câncer na infância e na adolescência é de vital importância. Precisamos conhecer mais as realidades locais para que nossa ação seja coerente com as necessidades de nossa população. Só conversas em fóruns desse tipo permitem essa troca colaborativa em prol da causa da criança e do adolescente com câncer. E dessa troca todos devem fazer parte: sociedade civil, terceiro setor, empresas e governo”, finaliza a co-fundadora da AHPAS.
Edição: Rogério Jordão