No calor do Rio de Janeiro ou do sertão, se estivermos aglomerados, o vírus vai estar circulando
Na mesma semana em que o Brasil interrompeu a trajetória de queda que vinha sendo observada nos casos da covid-19 há um mês, países europeus começaram a anunciar lockdown para conter a segunda onda e os Estados Unidos chegaram a um registro diário de infetctados superior a 90 mil. Embora autoridades alertem para riscos maiores de agravamento da doença no inverno, o cenário global de descontrole em nações com climas tão diferentes mostra que, em momento de pandemia, não é possível relacionar a propagação à sazonalidade.
Em participação no podcast A Covid-19 na Semana, o médico de família Aristóteles Cardona, da Rede Nacional de Médicas e Médicos Populares, afirma que o surto global coloca as aglomerações como fator mais relevante.
"A gente pode estar falando do calor do Rio de Janeiro ou do sertão, se estivermos aglomerados, se estivermos muitos próximos e com muita gente, o vírus vai estar circulando. Isso já ficou bem evidente. Pode ser que, no futuro, a gente possa creditar mais ou menos à questão relacionada ao clima. Hoje, o clima é importante, mas ele não é determinante."
No caso nacional, os números de novos pacientes não são mais tão altos quanto os registrados no meses mais frios do ano, mas ainda seguem entre os mais expressivos do mundo. No continente europeu, que está entrando nas estações de temperaturas mais baixas, o primeiro surto ocorreu no início da primavera e a segunda onda surge em meio ao outono. Mas muitos especialistas apontam que ela é fruto do baixo isolamento durante o verão. Já os Estados Unidos vêm registrando recordes há meses, que não parecem estar ligados às condições climáticas.
Para Cardona, depois da pandemia, a covid pode passar a ser uma doença mais relacionada às estações do ano. "Ela pode até no futuro vir a se tornar uma doença sazonal, mas desde que tudo isso começou a gente ainda tem uma população suscetível à doença. O foco de atuação dessa doença é tão grande, que por mais que ela possa vir no futuro a ter uma relação maior com períodos frios, isso fez pouca diferença."
Ao longo dos últimos dias, o avanço da pandemia no mundo trouxe mais exemplos dessa diversidade e, consequentemente, da importância do isolamento. Os dados consolidados do Brasil para a semana que se encerrou em 24/10, por exemplo, indicam que o país não conseguiu sustentar a queda de novos casos dos períodos anteriores. Mesmo essa tendência de velocidade menor na propagação da doença ainda vinha sendo observada em patamares muito altos de casos e mortes. Tanto no inverno, quanto na primavera, os número brasileiros são altíssimos.
Europa em crise
Na segunda onda europeia, os dados também são alarmantes. Na terça-feira (27), Reino Unido e Itália tiveram os números mais expressivos de casos desde maio. Em Portugal, a soma de um dia foi a segunda pior desde o primeiro registro do coronavírus no país, com 3.299 infectados. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS) a região da Europa respondeu por quase metade dos casos globais confirmados na semana anterior.
O início de movimentos de lockdown entre nações do bloco começou na quarta-feira (28). França e Alemanha anunciaram medidas de isolamento restrito, com fechamento de comércios e recomendação para que os cidadãos fiquem longe das ruas. Na sexta-feira (30), foi a vez da Bélgica aderir à quarentena mais rígida. No mesmo dia, os Estados Unidos registraram recorde de casos de covid-19 em 24 horas, com total superior a 90 mil infectados em 24 horas.
Aristóteles Cardona afirma que, em meio à pandemia, as ações de controle influenciam mais que aspectos relacionados às estações do ano. Na opinião dele, o Brasil deveria, inclusive, usar o exemplo da chamada segunda onda na Europa e se preparar.
"Até semana passada a gente falava que os números estavam crescendo na Europa, mas a gente não falava em número significativo de internações e mortes. Agora, a exceção de Portugal, grande parte dos países estão em plena curva de crescimento de internações hospitalares."
O médico complementa: "O que me dá mais medo no final das contas, é que aqui a covid chegou depois da Europa. A gente teve algumas semanas e o governo federal poderia ter se preparado melhor. Agora, parece que a gente está assistindo tudo de novo. A gente tem uma oportunidade de se preparar e preparar o país para quer a gente minimize os impactos do que tem uma forte tendência de vir nas próximas semanas e parece que isso não vai acontecer."
Foi também na sexta-feira que a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) divulgou dados que mostram tendência de alta nos casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) em dez estados brasileiros. São projeções para as próximas seis semanas, que indicam probabilidade de aumento da SRAG entre 75% e 95% em Aracaju (SE), Florianópolis (SC), Fortaleza (CE), João Pessoa (PB), Macapá (AP), Maceió (AL) e Salvador (BA), Belém (PA), São Luís (MA) e São Paulo (SP). Cidades que estarão às vésperas do verão, mas ainda longe do controle do coronavírus.
Edição: Rodrigo Chagas