análise

Artigo | Eventual derrota de Trump pode impor choque de realidade à direita britânica

Se presidente dos EUA não for reeleito, Boris Johnson precisará mais do que superlativos e cara dura para governar país

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A derrota de Trump fará diferença: ele é avalista do comportamento de vários outros líderes, inclusive de Boris Johnson - Casa Branca

Já existem muitas análises sobre qual seria o impacto da vitória de Joe Biden na política externa norte-americana. Para nós, latino-americanos, é difícil crer que o democrata trará muito alento. É só lembrar dos Golpes dos últimos anos e que a presidenta Dilma Rousseff foi espionada durante a gestão de Barack Obama.

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Porém, é importante pensar que para além de suas políticas externas, Donald Trump exerce uma influência de outras maneiras. Ele surge como o símbolo mor do conservadorismo de extrema direita, que se une ao total desrespeito pela democracia, pelo Estado de Direito, pelos protocolos e, poderíamos dizer também, pela ética e pela verdade. Por isso, a derrota de Trump fará diferença: ele é avalista do comportamento de vários outros líderes, inclusive de Boris Johnson, aqui no Reino Unido.

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Trump, como Bolsonaro, foi em parte eleito pelas fake news, utilizando-se de táticas ocultas nas redes sociais, passando informação falsa somente àqueles que testes psicológicos e outros meios mostraram ser mais suscetíveis a certas mensagens. Isso, junto como o crescimento e apoio das igrejas evangélicas mais conservadoras que têm como principal conceito a "teologia da prosperidade" e o individualismo, a conivência, maior ou menor dependendo do país, da mídia e seus financiadores, que chamam qualquer forma de socialdemocracia – seja quão leve for – de o mais profundo comunismo, levaram à eleição do Trump e outros representantes da extrema direita.

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No Reino Unido, táticas similares ajudaram o país a votar pela saída da União Europeia e, mais tarde, eleger Boris Johnson. É neste sentido que a eleição de Biden tem uma importância simbólica muito grande. Os que bolaram o Brexit o veem como um sucesso tremendo. Porém, depois de quase quatro anos de disputas e polarização, só agora o país está prestes a implementá-lo. Em outras palavras, o Brexit ainda não teve efeitos concretos na economia, na vida cultural e na sociedade britânica. E mais: dada a pandemia, ninguém está prestando muita atenção nos acordos (ou falta de) e suas consequências. Continua sendo bastante provável que o Reino Unido saia da União Europeia sem acordo e sem ter que arcar com suas regulamentações. Afinal, o grande motivo do Brexit seria a flexibilização de todos os tipos de regras e normas, uma maneira de se "passar a boiada", digamos.

Por isso mesmo que as eleições no que é ainda a maior potência planetária tomam importância maior do que normalmente teriam. Trump ganhou em 2016, mas depois teve que demonstrar sua capacidade de governar. E se é bem verdade que a sociedade norte-americana está mais polarizada, e que Trump tem uma base de eleitores extremamente leais, as pesquisas mostram que há uma grande porcentagem de norte-americanos, muito provavelmente a maioria, que não estão satisfeitos com ele.

Mesmo vivendo em um mundo semi-virtual, onde também já não podemos crer completamente na grande mídia, num mundo complexo, onde poucos têm contato com outras realidades que as suas vivências pessoais, a vitória de Biden teria dois significados importantes: primeiro que, sim, a política faz diferença na vida das pessoas. Se existe algo positivo que emerge destes tempos sombrios é que podemos, finalmente, descartar aquela balela de que não há diferença entre os campos políticos. E parece que parte da população norte-americana já está se dando conta disso. Os ataques de Trump, principalmente à população negra, que se manteve passiva durante a campanha de Hillary Clinton, estão fazendo com que estas comunidades saiam em massa para derrotá-lo.

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A segunda consequência de uma possível derrota do Trump seria exatamente a demonstração de que a vida virtual tem seus limites – a realidade, de alguma maneira ou outra, mais cedo ou mais tarde, prevalece.

A derrota de Trump certamente terá consequências para a política britânica. Dada as devidas diferenças, a campanha eleitoral de Johnson seguiu as mesmas linhas. Se utilizou de fake news e não se intimidou em arriscar sua reputação, massacrou o estado de direito e não se importou com regras, protocolos ou processos parlamentares. Se valeu da grande mídia e seus ataques a Jeremy Corbyn como o portador do comunismo que levaria o Reino Unido à falência.

No poder, Johnson também parece não se importar com regras democráticas, soberania parlamentar, democracia ou transparência. Dá a impressão de gostar de conflitos, mente para se defender e vive de ataques à oposição. No momento atual, está em conflito com vários prefeitos de grandes cidades e áreas metropolitanas, no geral administradas pelo Partido Trabalhista, que vêm sofrendo mais fortemente com a covid-19 e os impactos na economia. Johnson parece apertar o cinto quando o assunto é ajudar os mais pobres e gasta quantias imensas em consultores do setor privado, contratados sem licitações e transparência, que tampouco têm experiência na área da saúde pública. Seu governo vem atacando os mais vulneráveis, refugiados e advogados de direitos humanos, a quem chama de "ativistas de esquerda". Sem esquecer, é claro, dos conflitos já bem conhecidos com a União Europeia e a possível violação do direito internacional, se vier a descumprir os acordos que assinou em relação à Irlanda do Norte.

Fica claro, portanto, que do seu modo mais sutil e britânico, Johnson e seus assessores têm se espelhado na administração de Trump.
Mas o que acontecerá se o republicano for derrotado? Não creio, como muitos da grande mídia, que poderíamos voltar ao "business as usual": retomar o velho caminho pré-Trump e viver felizes para sempre em direção à maior globalização capitalista. Mesmo porque o mundo já não pode mais ser o mesmo. Além da pandemia, temos o problema urgente do meio ambiente e as grandes sequelas econômicas que a covid-19 irá deixar.

Porém, estou preparada a apostar que figuras como Boris Johnson, um oportunista e não ideólogo, começarão a questionar os métodos das novas direitas. Porque a derrota de Trump é um sinal de que tais métodos tem vida curta. O que adianta seguir Trump, se ele não consegue se manter no governo por mais de um mandato? Já há relatos de que Johnson vai esperar o resultado das eleições norte-americanas antes de decidir sair da União Europeia sem acordos. Nas últimas eleições, Johnson fez muitos desafetos em seu próprio partido para conseguir união em torno do Brexit. Porém, apesar de ter forçado a saída de muitos conservadores, seu partido continua dividido. Ele ainda é a casa de muitos neoliberais, mas também de novos parlamentares que ganharam em distritos eleitorais pobres, eleitos por um público politicamente desamparado há muito tempo.

Se os mitos criados não conseguem esconder a realidade, como fazer para trilhar a cartilha neoliberal e ao mesmo tempo manter os votos em distritos que necessitam de muito investimento? Como cortar gastos e sustentar as crianças que vão à escola com fome por causa das políticas implementadas pelo seu próprio partido? Seus novos eleitores já estão demonstrando falta de paciência.

Boris chegou ao poder com a ajuda de mitos e mentiras: o mito de um Brexit exitoso e um Reino Unido forte e soberano, a mentira do comunismo rondando o país na figura dos "socialistas" trabalhistas, o mito de que o novo surgiria de um partido no poder há mais de dez anos.

A derrota de Trump pode vir a demonstrar que Boris precisará mais do que superlativos e cara dura para governar o país, que os mitos e as mentiras em algum momento darão lugar a realidade nua e crua. A ver.