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Por que o capital avança sobre os bens naturais na América Latina

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Todo esse processo deixou o Brasil ainda mais dependente e subordinado aos interesses estrangeiros e à lógica do mercado - Alex Ribeiro / Fotos Públicas
A disputa global por bens naturais estratégicos é uma questão de Segurança Nacional do imperialismo

Por Matheus Gringo* e Olívia Carolino**

Em uma de nossas últimas Cartas Semanais, Vijay Prashad, coordenador do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, ressalta a ideia de que a fome nos matará antes do vírus. O argumento de Prashad tem como base o relatório da Rede Global Contra a Crise Alimentar, que afirmou que a pandemia poderá causar o maior nível de insegurança alimentar desde 2017. Em abril de 2020, um mês depois da Organização Mundial da Saúde (OMS) declarar a pandemia, o Programa Alimentar Mundial (PAM) da Organização das Nações Unidas (ONU) alertou que o número de pessoas que vive com fome aguda no mundo poderia dobrar por conta da Covid-19 até o fim de 2020, caso nenhuma medida fosse tomada.

No mês de outubro, mais especificamente no dia 16, celebra-se o Dia Mundial da Alimentação. Trata-se de uma agenda de luta histórica dos movimentos populares ligados à Via Campesina, mas que esse ano toma uma proporção mais dramática sob este cenário mundial, sobretudo com o fato do Brasil, em particular, estar se aproximando do mapa da fome. Para aproveitar esta data, organizações populares realizaram diversas ações sob o marco da política de solidariedade, como a entrega de alimentos da reforma agrária, marmitaços de comida saudável, distribuição de livros e atendimento médico e jurídico popular.

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Em paralelo, também estão sendo realizados cursos sobre esta temática. Um deles é organizado pelo próprio Instituto Tricontinental em parceria com a Associação Brasileira de Reforma Agrária (ABRA), o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a editora Expressão Popular. Desde a semana passada, inciamos o Seminário “Regularização fundiária e a destruição ambiental”, com o objetivo de debater a questão ambiental em meio à pandemia, o processo de grilagem de terras públicas, a militarização da Amazônia e a financeirização dos alimentos e dos bens naturais.

Um dos motes deste curso ajuda a compreender o enorme interesse do capital sobre os bens naturais e o que os transforma, portanto, em um elemento estratégico para a acumulação capitalista. Uma das primeiras respostas vem do fato da água, da biodiversidade, do petróleo, dos minérios, por exemplo, serem recursos não renováveis, sendo que a qualidade de escassez nestes casos compromete a viabilidade da vida no planeta e a lógica da produção industrial. Historicamente, a ampliação sistemática da demanda de recursos estratégicos da natureza ocorreu a partir de cada novo padrão tecnológico correspondente a um determinado modelo industrial. O carvão, por exemplo, constituiu a fonte de energia primária para a expansão da primeira fase do capital industrial, por meio da indústria têxtil. Naquele período, o carvão era o bem natural mais valioso em questão. Assim como o petróleo se tornou o recurso mais precioso no momento posterior, com o avanço da indústria automotiva. O Lítio e o Nióbio, por sua vez, estão prestes a se tornarem a bola da vez com a disputa tecnológica, com a tecnologia 5G e a produção de carros elétricos, por exemplo.

A disputa global por bens naturais estratégicos é uma questão de Segurança Nacional do imperialismo. A chamada guerra contra o terrorismo foi uma das estratégias principais dos EUA avançarem no processo de militarização dos territórios impulsionada pelos interesses de privatização e financeirização da natureza. Enquanto isso, a China emerge como demandante de matéria-prima, contribuindo para o processo de primarização da pauta exportadora dos países dependentes.

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Ou seja, tanto na visão estratégica dos EUA - diante da sua vulnerabilidade em relação a minérios estratégicos - quanto da perspectiva da Nova Rota da Seda por parte da China, a América Latina tem centralidade como fonte de matérias-primas, com destaque para o Lítio, cujas principais reservas estão na Bolívia (55,9%) e quase a totalidade na América do Sul (83,6%), o Nióbio, presente em grande parte no Brasil (95%), o petróleo, com a maior reserva do mundo se concentrando no território venezuelano (17,5%), e as reservas de água doce do planeta, já que 28,1% deste bem está no continente sul-americano.

Portanto, o papel estratégico da América Latina para a reprodução do capital coloca a região sob constante ataque do imperialismo; e se preciso for, não exitarão em promover golpes de Estado em governos populares que buscam maior autonomia na gestão de seus recursos. No primeiro módulo do nosso Seminário, a professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Mônica Bruckmann, destacou justamente este elemento logo após a vitória eleitoral de Luiz Arce na Bolívia. “Evo Morales nacionalizou as reservas de Lítio quando elas revelaram seu potencial para a indústria de ponta. Quando esse país avança na gestão soberana desse minério e cria condições para os primeiros passos para a industrialização do Lítio sofre uma agressão do Império”, destaca Bruckmann em relação ao golpe de 2019 sobre Evo Morales.

Especulação sobre commodities e terras agrícolas

A mesma lógica do avanço do grande capital sobre os recursos minerais na América Latina vale para o mercado de commodities e terras agrícolas. Desde os anos de 1990, cada vez mais o Estado foi deixando de cumprir o papel de financiador e regulador da agricultura, abrindo espaço para os grandes “complexos industriais”, como bancos, produtores, processadores e trandings.

Esses grupos, que assumem a concessão de créditos, operam um mercado financeiro vinculado à produção. Esse processo gerou complexos instrumentos de financiamento da produção agropecuária, como são os casos das Cédulas do Produtor Rural (CPR). As CPRs nada mais são do que ativos financeiros emitidos por produtores ou cooperativas para as tranding, que, por sua vez, indicam o armazém que deve ser entregue a produção futura e os fornecedores de insumos que o produtor deve adquirir. De posse da CPR, as empresas se financiam junto ao Banco do Brasil, tendo o título do produtor ou da cooperativa como garantia da operação. Ao final do ciclo, o produtor ou a cooperativa entrega a produção para a tranding que faz a comercialização do produto.

Como explicou a professora Yamila Goldfarb, vice-presidente da ABRA, em nosso segundo módulo do seminário, o chamado mercado de derivativos, que opera essa lógica da compra antecipada, transformou o mercado de financiamento da produção agrícola em instrumento de especulação, na lógica de “compra-se o que não quer e vende-se o que não tem”. O interesse real sobre estes papéis não está no produto em si, mas na sua capacidade de se valorizar no mercado financeiro. Para se ter uma ideia deste processo, em 2002 – período em que esse mecanismo se intensifica com o boom das commodities no mercado internacional - o valor da CPR de liquidação financeira já era 3 vezes maior que a CPR física. Ou seja, enquanto o produtor estava produzindo mil sacas de soja, por exemplo, negociava-se um valor correspondente a 3 mil sacas. Isso ilustra que há um descolamento entre o que está sendo produzido e o que está sendo negociado nas bolsas de valores.

A crise financeira de 2008 intensificou ainda mais esse processo. Logo após o estouro da bolha, por exemplo, cerca de 68% do comércio mundial de matéria-prima foi para as mãos de especuladores. Aquele capital fictício precisava criar lastros reais para não se desvalorizar, e acaba migrando para o mercado de commodities e terras agrícolas.

Com isso, grandes fundos de investimentos passam a investir diretamente na produção agrícola, e a terra também acaba virando um ativo financeiro. Toda essa engrenagem faz avançar a fronteira agrícola no Brasil, como é o caso da região do Matopiba, composta pelos estados do Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, que entre 2000 e 2014 contou com um aumento de 253% e 379% da área plantada com soja e cana-de-açúcar, respectivamente. Toda essa engrenagem ajuda a compreender o atual cenário de queimadas e grilagem de terras públicas e devolutas, bem como uma série de Projetos de Leis que desregulam a legislação ambiental para que o capital tenha segurança jurídica para avançar sobre novas áreas. Portanto, é importante compreender que no caso da agricultura o deslocamento do capital financeiro é relativo, já que gera impacto concreto no preço dos alimentos, nas comunidades e nos territórios.

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Todo esse processo deixou o Brasil ainda mais dependente e subordinado aos interesses estrangeiros e à lógica do mercado. A privatização do processo de financiamento e regulação dos alimentos levou ao enfraquecimento das políticas de segurança alimentar, com o fechamento ou privatização de armazéns públicos, por exemplo. Uma das consequências deste processo é o enfraquecimento das políticas de garantia de preços acessíveis dos alimentos à população em momentos de flutuações nos preços, como o que estamos vivenciando com o aumento dos preços de diversos produtos da cesta básica.

As reflexões no Seminário “Regularização fundiária e a destruição ambiental” levam à indagação sobre a viabilidade e o papel do financiamento público em relação às atividades agrícolas numa lógica distinta ao financiamento de bancos privados e fundos de investimentos. Esse debate vai além de uma questão orçamentária; está relacionado a um projeto de país. Nesse sentido, destaca-se a importância da luta por reforma agrária e soberania alimentar nesse momento em que a comida que chega às periferias urbanas para enfrentar a fome e o vírus - e manter o povo vivo - é produto da luta e das conquistas de décadas do movimento camponês no Brasil.

Ademais, nesse momento de alinhamento aos EUA por meio de governos neoliberais e conservadores, com a tendência à reprimarização da pauta exportadora - acompanhada de um processo de desindustrialização - reafirma-se a dependência dos países da América Latina na relação de meros exportadores de produtos primários de baixo valor agregado. Diante deste quadro, provocamos a reflexão de como conceber Projetos de Integração Regional e Cadeias Regionais de Valor voltadas ao mercado interno e a agregar valor às exportações. Para partilhar essas e outras reflexões, acompanhe nosso Seminário nas redes sociais!

*Matheus Gringo é militante do MST e pesquisador do Observatório da Questão Agrária do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

**Olívia Carolino é pesquisadora do Observatório da Financeirização do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.

***Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rogério Jordão