Por Eugênio Miguel Mancini Scheleder*
A História mostra que a maioria dos países industrializados promoveu o seu desenvolvimento sem dispor de reservas de petróleo em seu território. Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Alemanha, França, Itália, Suécia e outros países europeus estão nessa condição, enquanto Estados Unidos e China, embora detentores de reservas importantes, sempre foram grandes importadores líquidos de petróleo. A maior geração de riqueza não está, portanto, na produção da matéria-prima, mas, sim, na incorporação de tecnologias que permitam agregar valor ao óleo e ao gás natural, transformando-os em combustíveis, eletricidade, petroquímicos, fertilizantes, fármacos e outros produtos derivados.
O Brasil seguiu o caminho desses países, contrariando nossa vocação secular de produzir e exportar “commodities” e manufaturas com reduzido valor agregado. Quando a Petrobras foi criada, o País produzia 2.700 bpd, enquanto o consumo nacional de derivados atingia 137.000 bpd, condição que mantinha o Brasil em uma desconfortável dependência da importação de produtos refinados. A missão da Petrobras sempre esteve referida à busca da autossuficiência em petróleo e à garantia de abastecimento do nosso mercado interno. A produção de óleo, no início, ficou limitada pela insuficiência das reservas exploradas em campos terrestres, mas, as descobertas em águas profundas e no Pré-Sal viabilizaram a produção atual da Petrobras, de 2,8 milhões de boe por dia.
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A opção pela implantação de um parque de refino no País foi modelada para atender o nosso mercado interno pelo menor custo total e para reduzir a remessa de divisas para o exterior. A partir dos processos convencionais de destilação, as instalações de refino incorporaram, ao longo do tempo, unidades cada vez mais complexas, como FCC, HDT, HCC, TC, além da produção de lubrificantes, petroquímicos e fertilizantes. As características da demanda brasileira, a necessidade de processar petróleos de diversas origens e a introdução de biocombustíveis e gás natural no mercado exigiram a implantação de novas unidades industriais com tecnologia avançada, capazes de especificar combustíveis atendendo requisitos ambientais e dotadas de elevados índices de agregação de valor. Na esteira da construção do parque de refino brasileiro, floresceu uma indústria nacional que, em apenas duas décadas, tornou-se capaz de fornecer 80% dos bens e serviços requeridos pelos investimentos da Petrobras no “downstream”.
Este breve histórico tem o objetivo de resgatar dois fatos muito importantes. O primeiro deles é que o parque de refino brasileiro é constituído por instalações modernas, atualizadas tecnologicamente, complexas e flexíveis, comparáveis, em seu conjunto, ao que há de melhor em todo o mundo. Podendo processar 2,4 milhões de bpd, está preparado para atender o sétimo maior mercado consumidor do planeta. O segundo fato relevante é que a Petrobras, desde a sua criação, orientou o seu crescimento de forma integrada - do poço ao posto, como era costume dizer - e buscou adicionar valor ao petróleo mediante a produção de derivados, lubrificantes, petroquímicos e fertilizantes. Nos últimos 20 anos, investiu fortemente nos setores de gás natural e biocombustíveis e promoveu a diversificação de seus negócios no setor de energia, com usinas termétricas, eólicas e PCH. Alcançou, já em 2015, um posicionamento estratégico de causar inveja às suas congêneres multinacionais, então abaladas pela queda dos preços do petróleo.
Sabemos, hoje, que a crise iniciada em 2014 teve origem na disputa por “market-share” entre os países da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo), liderados pela Arábia Saudita, e os produtores de óleo de xisto norte-americanos. Muitos analistas acreditavam que essa disputa permaneceria no curto e médio prazos, o que vem, de fato, acontecendo, inibindo uma recuperação mais consistente e sustentada dos preços do petróleo. No futuro mais distante, o crescimento da demanda mundial será limitada por pressões ambientais, pela competição com energias limpas e gás natural e pela introdução do veículo elétrico no mercado. Neste cenário, caracterizado por preços mais baixos, as grandes petroleiras terão que se posicionar em modelos de negócios que permitam integrar as suas operações, agregar maior valor ao petróleo e ao gás, defender o seu “market-share” e diversificar as suas atividades. No nível estratégico, as palavras de ordem serão “integração” e “diversificação”.
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O posicionamento estratégico da Petrobras conferiu a ela uma importante vantagem comparativa com relação às petroleiras internacionais. De acordo com uma análise feita pelo economista Claudio da Costa Oliveira, a Petrobras supera amplamente as duas maiores empresas de petróleo norte-americanas, ExxonMobil e Chevron, nos indicadores de geração operacional de caixa, liquidez corrente e saldo de caixa ao final do exercício. A Petrobras sofreu menos com a queda do preço do petróleo, uma vez que as suas receitas, em sua maioria provenientes do refino, não estavam vinculadas a preços internacionais. Manteve, desde 2012, uma geração de caixa da ordem de US$26 bilhões, enquanto Exxon e Chevron caíram, em 2016, para US$22 bilhões e US$13 bilhões, respectivamente.
A liquidez corrente, que significa a capacidade das empresas de cumprirem os seus compromissos financeiros de curto prazo (um ano), mostra, desde 2012, uma situação muito mais confortável para a Petrobras. Em 2016, a estatal dispunha de US$ 1,8 para cada US$1 que tinha a pagar no curto prazo, enquanto suas congêneres norte-americanas dispunham de apenas US$0,9.
A direção da Petrobras não valorizou este posicionamento favorável da companhia no mercado. Desde 2016, os gestores da empresa vêm se empenhando na venda dos ativos estruturantes das principais fontes de receita da empresa, como se fosse a única solução para a administração da dívida. Sem deficiência de caixa, como foi visto, nada justifica a alienação de unidades lucrativas. Foram vendidos ativos que rendem mais de 12% ao ano – NTS, Liquigás, BR, Gaspetro – para pagar parcelas de uma dívida cujo custo de alongamento tem se mantido entre 5% e 7%. A alienação de metade do parque de refino brasileiro, prevista no programa de desinvestimento da Petrobras e ora em andamento acelerado, afetará a integração das atividades da empresa e resultará em perda de “market-share” e diminuição de receita.
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O desmantelamento do “downstream” da nossa indústria de petróleo está ocorrendo de forma precipitada, a toque de caixa, sem um planejamento que considere os interesses do Brasil e dos brasileiros. Afastados do mercado, os grandes grupos empresariais nacionais estão impedidos de participar dos processos de venda de ativos promovidos pelo governo. As oportunidades de negócios estão restritas a uma Babel de interesses de grupos estrangeiros, oriundos de todo o planeta, sem a obrigação de manter um mínimo de compromisso com o desenvolvimento nacional. No futuro, como de praxe, devolverão aos seus países de origem, no menor prazo possível, os investimentos aqui feitos. Trata-se, portanto, de um processo de desnacionalização da indústria brasileira de petróleo e gás, sob o pretexto de supostas e não comprovadas dificuldades financeiras da nossa maior empresa.
O programa de desinvestimento promete transformar a Petrobras em uma empresa sem significado. Se nada for feito para impedir esse desastre, o Brasil iniciará, sob aplausos do mercado especulativo, a sua marcha batida rumo ao passado.
*Eugênio Miguel Mancini Scheleder é engenheiro aposentado da Petrobras. Também ocupou cargos de direção nos ministérios de Minas e Energia e do Planejamento, de 1991 a 2005.
Edição: Rogério Jordão