ALTERNATIVA

Cuidar da terra: escola pública ensina agroecologia a jovens na Venezuela

Projeto "El Arañero" envolve anualmente cerca de 150 estudantes de um instituto técnico na zona periférica da capital

Brasil de Fato | Caracas (Venezuela) |

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Ana Díaz é uma das fundadoras do projeto El Arañero, na escola Técnica Industrial Rafael Vegas, em Caracas - Michele de Mello / Brasil de Fato

Desde a produção da semente até o prato de comida, o Projeto El Arañero ensina os estudantes da Escola Técnica Industrial Rafael Vegas, na capital venezuealana, conceitos básicos de agricultura, trabalho em equipe e agroecologia

A escola oferece o ensino integrado dos últimos anos do fundamental e médio, com disciplinas voltadas à mecânica industrial. Ao todo, 850 crianças e adolescentes aprendem a soldar, moldar, criar peças como torneiros mecânicos e também a cultivar plantas nativas do seu país.

Criado em 2017, o projeto reúne anualmente entre 120 e 150 estudantes e, em 2019, chegou a contar com 280 jovens. As atividades são optativas e, através de oficinas, também se relacionam com a comunidade e com outras instituições. Em três anos, crianças de 25 escolas visitaram o espaço para intercambiar conhecimento.

Por conta da pandemia, as ações estão suspensas, mas a horta segue viva com os cuidados das professoras que coordenam o grupo.

Entre elas, Ana Díaz. Assim como o presidente Hugo Chávez, conhecido como "El Arañero de Sabaneta"  em português seria o vendedor de doce de mamão verde (araña) da cidade de Sabaneta, localizada no estado de Barinas –, ela veio do interior de Barinas para transmitir aos jovens a importância do cuidado da terra.

Por conta da crise de abastecimento que o país atravessava em 2016, o presidente Nicolás Maduro criou o ministério de Agricultura Urbana, com o objetivo de incentivar o cultivo de alimentos nas cidades. Ana atendeu o chamado e terminou trabalhando no bairro de Cátia, zona oeste de Caracas.

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"Uma das coisas que sonhamos aqui é que possamos formar engenheiros agrônomos. Jovens que saibam como construir uma máquina e como poderiam desenvolver, por exemplo, um moinho, toda a maquinaria necessária para poder superar essa monoprodução venezuelana, para transformá-la em uma produção integral", afirma a técnica agrônoma.


Hortaliças, sementes de árvores frutíferas e plantas medicinais são algumas das produções dos estudantes do projeto El Arañero. / Michele de Mello / Brasil de Fato

Além das orientadoras, outros 14 estudantes fazem parte da Brigada El Arañero e são responsáveis por realizar as oficinas, atender visitantes. Todas às sextas-feiras os jovens organizam o dia "criando uma cultura", no qual preparam uma refeição coletiva com o alimento que plantaram

O que é cultivado também abastece para o refeitório. A brigada já forneceu milho, feijão, abóbora, cenoura, beterraba, tomate e hortaliças. Os estudantes também começaram a cultivar sementes de árvores frutíferas para que a escola também se torne um jardim produtivo. 

"Quando tudo começou, nós que somos técnicos, pensamos: o que temos a ver com agricultura? E de lá pra cá aprendemos muito. Acredito que numa instituição de ensino, os primeiros que devem ser transformados são os estudantes", comenta a diretora da Escola, Mayrelis García.


Os alimentos produzidos pelos estudantes também abastecem o refeitório da Escola Técnica Rafael Vegas, numa zona periférica de Caracas. / Michele de Mello / Brasil de Fato

A proposta é que o lugar seja um ponto de referência para a comunidade e impulsione uma mudança nos hábitos alimentares dos venezuelanos. Com o trabalho de cultivo de sementes crioulas, a brigada recuperou a Nona ou Fruta do Conde, quase extinta no território venezuelano. 

"Lamentavelmente a alimentação da Venezuela é uma alimentação de porto [importada]. Nossa cultura alimentar está totalmente desvinculada. Então vemos que se existe um programa de alimentação do Estado que oferece macarrão e arroz, mas não envia os temperos, esse alimento se come puro. Quando temos amaranto, beldroega, quando podemos aproveitar até a casca da melancia para comer. Aqui nós já demonstramos isso", comenta Ana Díaz. 

A Venezuela importa cerca de 80% de tudo que consome e a agricultura no país é predominantemente monocultora. A técnica agrônoma defende que a agricultura urbana seja introduzida nas escolas para gerar uma nova rotina alimentar e produtiva. 

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Para Ana, a questão é central para gerar uma nova cultura em todo o país e pode, inclusive, combater o bloqueio econômico. "Estou convencida de que a agricultura do futuro é a agricultura familiar comunitária. Essa é a única forma de enfrentar a violência capitalista que está apenas começando", assegura.
 

Edição: Marina Duarte de Souza