Por Henrique Medeiros*
Quase oito meses após o turbilhão político provocado pela convergência das crises econômica, sanitária e política propiciada pela pandemia da covid-19, a aprovação do governo Bolsonaro não apenas recuperou os níveis anteriores como atingiu o melhor patamar até aqui. Independente dos números em si, essa tendência deveria acender um alerta para as forças democrático-populares sobre a dimensão e a profundidade do que está em curso.
Frente aos previsíveis desgastes que a pandemia traria, Bolsonaro apostou numa tática ousada, fundada no negacionismo da ciência, na falsa dicotomia entre as medidas de distanciamento social e medidas de proteção da economia, e na já famigerada difusão de fake news. A aposta na radicalização política tinha um claro objetivo: construir um cenário de anomia social que justificasse o uso da força e o fechamento do regime político. Apoiado em guerra cultural incessante, mobilizando contingentes violentos oriundos de setores médios, contando com sólida presença nas Polícias Militares e na organização de grupos paramilitares, nunca foi tão claro o caráter neofascista do bolsonarismo.
O movimento de conquistar setores estratégicos dentro do aparelho do Estado teve vitórias significativas, especialmente o controle da Polícia Federal. Derrubar dois ministros da saúde em plena pandemia e o ministro da Justiça Sérgio Moro, importante fiador dos setores lavajatistas dentro do poder judiciário e das classes médias, foi uma demonstração de força. É verdade, no entanto, que a ousadia de tais manobras teve custos políticos, como o deslocamento parcial de sua base nesses setores médios. Tal prejuízo foi decisivo para uma situação de equilíbrio de forças em meados de maio quando, em rota de colisão com o Supremo Tribunal Federal (STF), o Congresso Nacional, governadores e grandes veículos da mídia comercial (Globo, Folha de São Paulo e outros), o bolsonarismo se viu isolado e precisou recuar.
Na cena política, o que se observou foi uma manobra tática para atrair o chamado Centrão e, operando na lógica do fisiologismo e da distribuição de cargos, recompor uma base de apoio no Congresso, eliminando qualquer possibilidade de impeachment. Além disso, um movimento de distensão com o STF, bem como uma menor exposição midiática, associados à manutenção da disputa cultural nas redes sociais e da instrumentalização das igrejas neopentecostais, viabilizaram um reposicionamento de forças. Os setores da oposição de direita (PSDB, DEM, etc.), por sua vez, acreditando poder domesticar o bolsonarismo, viabilizaram uma solução de compromisso na medida em que o programa econômico neoliberal é um ponto de convergência entre eles e o governo.
Na dimensão mais profunda das relações de classes, o que se constatou, desde então, foi uma mudança na base de sustentação do bolsonarismo, provocada pela capitalização política do auxílio emergencial por parte do governo, atraindo setores da classe trabalhadora com renda até dois salários mínimos. O que alguns denominam subproletariado (para outros, massa trabalhadora marginal) foi ganho pela narrativa oficial da suposta defesa da economia. Frente às pressões cotidianas pela sobrevivência, eles passaram a identificar a responsabilidade pela crise econômica nos prefeitos e governadores, uma vez que, tendo o governo federal boicotado as ações de combate à pandemia, foram os governos estaduais e municipais que tiveram de arcar com o ônus das medidas de distanciamento social. O resultado disso, por exemplo, é que, segundo pesquisa Ibope realizada entre 3 e 4 de outubro, o prefeito de João Pessoa, Luciano Cartaxo (PV), e o governador da Paraíba, João Azevedo (Cidadania), aparecem com taxas de aprovação (30% e 38%, respectivamente) menores do que a de Jair Bolsonaro (43%).
Ponderando todos os riscos de comparações históricas, a conjuntura atual guarda muitas semelhanças com aquela na Itália após o assassinato do deputado socialista Giácomo Matteotti, em 10 de junho de 1924, por um comando fascista. Na ocasião, era evidente a todos o envolvimento de Mussolini. O parlamento, apesar da vitória eleitoral dos fascistas em abril, tinha, então, as condições para depô-lo, considerando a correlação de forças sociais. Todavia, acreditando poder manter sob seu controle o processo político, domesticando o fascismo, e temendo a agitação dos socialistas (o biênio vermelho 1919-1920 fora muito recente), os liberais concordaram com um compromisso. Passado esse momento de fragilização, Mussolini avançou para o fechamento do regime entre 1925 e 1926, com apoio do Rei Victor Emanuel III, de empresários e do exército, caçando os demais partidos e decretando o Partido Fascista como partido único. Os partidos liberais foram, então, engolidos pela fera que, pouco antes, acreditavam poder domar. Quanto à esquerda, nem é preciso falar...
O Bolsonarismo descreve um movimento semelhante: tendo marchado para a tomada de espaços estratégicos dentro do Estado entre março e maio, segue sua guerra de posições conquistando novos postos dentro da institucionalidade (a exemplo das reitorias de universidades e institutos federais, do novo ministro do STF, etc.). É nesse contexto que se inserem as eleições municipais de novembro.
Nesse momento, grandeza e coerência são virtudes inestimáveis e também é neles em que revelam a magnanimidade e a mediocridade de cada personagem. A História é quem julgará e ela é implacável.
Não é à toa que é exatamente no Nordeste que Bolsonaro tem investido suas energias nas últimas semanas, com visitas para inauguração de obras, conformação de alianças e sinalizações para preservar a base política recém-ampliada (e com forte presença aqui), muitas vezes em rota de colisão com o ministro da Economia Paulo Guedes, buscando adiar medidas impopulares para depois do pleito.
À esquerda cabe, mais do que nunca, compreender a gravidade do que está em curso: diante de uma crise de tamanha proporção, com discursos e decisões que fariam derrubar qualquer presidente em outras circunstâncias, o bolsonarismo longe de perder força, cresceu dentro do Estado e da sociedade. Por seu turno, a esquerda esteve completamente fora da cena política em todos esses meses: a única oposição que conseguiu alguma projeção social foi a centro-direita. O cerco sobre as forças democrático-populares se fecha a olhos vistos e nunca foi tão patente o risco de aniquilação política e ideológica.
A história demonstra claramente que, sem a unidade das forças de esquerda, não é possível derrotar o fascismo; pelo contrário, sua divisão é caminho aberto para uma tragédia. Recorde-se o caso alemão, em que a divisão entre sociais-democratas, socialistas e comunistas foi determinante para a ascensão de Hitler. Porém, a esquerda brasileira parece ainda iludida com uma suposta normalidade democrática e, imiscuída na mesquinhez da luta eleitoral, não tem demonstrado dar consequência prática à caracterização política do bolsonarismo como movimento neofascista.
Em João Pessoa, particularmente, tal incapacidade beira às raias do absurdo. Numa campanha de apenas 45 dias, a esquerda se encontra dividida em brigas judiciais (a mesma Justiça que foi determinante, seja pela omissão, pela conivência ou pela ação deliberada, para o golpe de 2016 e o impedimento de Lula em 2018). Quando as pesquisas apontam um cenário em que, se houver um segundo turno, teremos duas candidaturas que reivindicam sua filiação ao bolsonarismo, a esquerda ainda quer se dar ao luxo de vaidades e de cretinismo parlamentar. É preciso uma profunda autocrítica se ela quiser fazer jus à luta antifascista. Nesse momento, grandeza e coerência são virtudes inestimáveis e também é neles em que revelam a magnanimidade e a mediocridade de cada personagem. A História é quem julgará e ela é implacável.
*Henrique Medeiros é Médico e Doutorando em Saúde Pública
Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Paraíba
Edição: Cida Alves