Coluna

Racismo reverso, Magazine Luiza e Defensoria Pública da União

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As palavras da DPU repetem os racistas brasileiros dos séculos XIX e XX, a insistirem que a abolição da escravidão jogou na miséria populações inteiras que não estavam prontas para serem livres - Fernando Frazão / Fotos Públicas
Tentativa igualmente liberal utilizada para sofisticar a retórica da desigualdade

Por Martonio Mont'Alverne Barreto Lima*

Na recente ação civil pública que a Defensoria Pública da União - DPU - ajuizou perante a Justiça do Trabalho da 10ª Região contra o Magazine Luiza, por força da seleção para treinee somente entre candidatos negros, escreve o Defensor Público que assina a petição inicial:

“Nem tudo o que reluz é ouro. O que pode parecer uma preocupação com igualdade social, portanto, pode ser uma ameaça à democracia a médio prazo”. Se se aplica o mesmo sentido destas palavras, cabem elas à própria Defensoria Pública ou à Fundação Palmares, de quem o mesmo Defensor Público toma emprestadas as palavras de seu presidente, sabidamente alguém que combate política de cotas raciais.

Pensada como instrumento de Estado para garantia do acesso à justiça de hipossuficientes e vulneráveis, a DPU de Brasília oferece um mau exemplo às Defensorias Públicas estaduais. A ideia central a guiar a ação civil pública da DPU é a suposta defesa contra “qualquer forma de racismo”. O processo de seleção da cadeia de lojas Magazine Luiza ofenderia o direito à igualdade e estimularia o racismo ao contrário.

Para tanto, dentre outros, são trazidos artigos publicados em respeitáveis sites da internet sobre o assunto. Todos se baseiam num frouxo idealismo, mal escondendo, na verdade, sua concepção liberal de uma igualdade de todos perante a lei, que nada mais consiste do que na meritocracia; tentativa igualmente liberal utilizada para sofisticar a retórica da desigualdade.

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As palavras da DPU repetem os racistas brasileiros dos séculos XIX e XX, a insistirem que a abolição da escravidão jogou na miséria populações inteiras que não estavam prontas para serem livres, e que seria imperioso “prepará-las” para a liberdade.

Argumento semelhante foi usado pelos escravocratas do sul dos Estados Unidos, quando foram obrigados a libertar seus escravos após a derrota da guerra de secessão: por não serem capazes de cuidar si próprios, a abolição dos escravos terá efeito contrário ao desejado. Num caso e noutro, seria necessário educar os escravos, dar-lhes uma profissão, enquanto mais uma geração permaneceria na condição de ... escravo!

Do ponto de vista histórico, a semelhança da construção argumentativa da DPU do DF lembra a decisão da Suprema Corte americana no conhecido caso Plessy v. Ferguson, em 1896, que institucionalizou a segregação racial naquele País. De conteúdos próximos, a decisão de 1896 considerava “falácia” a afirmação de que a segregação significava a criação de uma classe social inferior.

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Para o relator do voto vencedor, Henry Billings Brown, se negros não poderiam ocupar lugares reservados a brancos, brancos também não poderiam ocupar lugares reservados aos negros. Eis a igualdade que lei estadual de Louisiana garantia. Assim, a ideia de raça inferior decorreria apenas do sentido que as “pessoas de cor” enxergavam na segregação; não os brancos. Apenas uma mente insincera poderia reconhecer alguma procedência nesta construção jurisprudencial. Plessy entrou na história, ainda no seu tempo, como uma das piores decisões da Suprema Corte americana.

Da mesma forma, ninguém reconhece, nos termos da ação civil pública da DPU, a procedência material de seus argumentos. A história desautoriza tais argumentos, a realidade material concreta não a sustenta, e a especificidade do caso brasileiro não a tolera. A decisão das lojas Magazine Luiza e as manifestações de sua principal executiva, Luiza Helena Trajano, parecem deixar clara a compreensão da necessidade de que se dissipe a névoa que as aparências criam, e se enxergue o que verdadeiramente se esconde nos desafios sociais estruturais, como o racismo e a segregação econômica, cultural e social das populações negras brasileiras.

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O processo de seleção desencadeado reconhece toda a complexidade da falta de oportunidades que é negada aos jovens negros, em razão da cor da pele. Pretensamente justificadas, recusas por “não ser competente”, “não ter formação” etc., são comuns e fortalecem a exclusão de jovens negros de funções mais destacadas. Mas essas recusas se dão mesmo por racismo; claro que jamais reconhecido.

Há eufemismos meritocráticos para esta finalidade. Quando o racismo é flagrado, as alegações de doença mental ou de “palavras tiradas do contexto” acodem rapidamente seus autores, com não raro apoio de instituições correicionais. Todo este cenário é ignorado pela DPU que decide ingressar contra quem enfrenta o racismo e promove a igualdade.

Por fim, um dado interessante. A DPU opina sobre o que deveriam fazer as lojas Magazine Luiza no combate à desigualdade racial: “Quanto à Magazine Luíza, é notório que empresa de tal porte poderia ajudar muito na redução da pobreza e na inclusão social por meio de medidas mais eficazes e libertadoras. Como exemplo, cita-se o estabelecimento e a manutenção de escolas de qualidade para populações marginalizadas”.

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Certamente o diligente Defensor Público realizou estudos sócio-econômicos, dispôs de dados para localização, números e definição do que seriam “escolas de qualidade para populações marginalizadas”; e deve ser profundo conhecedor da grade curricular que tais “escolas de qualidade” devem adotar para receberem essa designação. O Defensor Público, suponho, conhece ainda a situação econômica e financeira das lojas do Magazine Luiza e sua capacidade de investimentos sociais.

Afora tais aspectos, que garantia Luiza Helena Trajano teria que não se abateria sobre suas lojas a mesma ação civil pública? Na medida em que “escolas de qualidade para populações marginalizadas” significam, claro, a exclusão das populações não marginalizadas, a porta resta aberta para a mesma aplicação do que a DPU agora alega.

A difícil sustentação da tese da DPU contra as lojas do Magazine Luiza é comprovadora do que Joaquim Nabuco nos advertiu quando da abolição formal da escravidão no Brasil: aboliram a escravidão? A escravidão ainda viverá sobre nós pelos próximos 300 anos. Eis apenas mais uma prova com esta ação civil pública.

*Martonio Mont’Alverne Barreto Lima é Professor Titular da Universidade de Fortaleza e Procurador do Município de Fortaleza. Jurista membro da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

Edição: Leandro Melito