Avanços como a reforma agrária e o imposto para grandes fortunas jamais vieram a ser concretizados
Por Alexandre Bernardino Costa*
Recentemente, quando foi realizado, em 2018, o seminário de aniversário dos 30 anos da Constituição Federal de 1988, em homenagem ao Professor Menelick de Carvalho Netto, a Professora Vera Karam de Chueiri assinalou o ano de 2016 e a ruptura institucional como integrante do aniversário.
Dessa forma, devemos nos perguntar, com Vera, se após a ruptura de 2016, e a retirada da primeira presidenta eleita do Brasil, por alegadas pedaladas fiscais, ainda temos o que comemorar.
Desde aquele ano vivemos um processo desconstituinte que, segundo Luigi Ferrajoli e Gerardo Pisarello, serve para desconstruir o sistema de garantia de direitos e da democracia inscritos na Constituição Cidadã.
Com Menelick de Carvalho, perguntamos: o que constituímos? Sobretudo após a omissão do Supremo Tribunal Federal (STF) que se transformou em ator protagonista no desenrolar do Estado de exceção vigente agora no país.
Devemos lembrar o contexto do nascimento da Carta de 88. Era o fim da ditadura empresarial-militar, que suprimido direitos, editado leis arbitrárias, e uma Constituição não democrática. Após o período de abertura, lenta e gradual, como almejava o regime, o movimento pelas eleições diretas para Presidente da República – Diretas Já – foi derrotado, mas reorganizou a sociedade civil.
Uma emenda constitucional, com uma constituinte congressual e com um terço dos senadores eleito para a legislatura anterior, gerou uma movimentação democrática e uma participação popular não vista desde o início da ditadura.
O processo político constituinte, que foi profundamente democrático, terminou por gerar uma constituição mais popular do que desejava o regime que ali se findava. Contudo, algumas partes, a exemplo da Ordem Econômica, da Organização das Forças Armadas, da Organização das Forças de segurança, foram mantidas como antes. Ademais, avanços como a reforma agrária e o imposto para grandes fortunas jamais vieram a ser concretizados.
A Constituição Cidadã já nasceu sendo atacada. O governo Collor, antes de vir a ser retirado do poder, já manifestou seu neoliberalismo, iniciando modificações que viriam a transformar Estado brasileiro.
Os governos de Fernando Henrique Cardoso fizeram várias reformas, de modo a adaptar a Carta Magna à pretensa governabilidade, ao mesmo tempo em que sua efetividade, paradoxalmente, gerou processos de desenvolvimento social e igualdade.
Mais do que nunca precisamos lutar e defender a Constituição, a qual foi e é construída todos os dias, nas ruas, nas praças, em todos os espaços que possamos exercer nossa autonomia pública e privada
Porém, foi nos governos de Lula e Dilma que a Constituição mais foi efetivada, gerando direitos e garantias, efetivando políticas de igualdade, inclusão e participação. Todavia, ela foi sendo modificada para adaptar-se ao neoliberalismo praticado.
Após o golpe parlamentar midiático-jurídico-judiciário e misógino contra Dilma Rousseff, Michel Temer assumiu o poder, e veio a realizar, talvez, o maior ataque recente à Constituição Federal: a emenda do teto de gastos.
Flagrantemente inconstitucional, pois fere uma série de princípios inscritos na própria Carta, a emenda veio para atender os interesses do mercado financeiro e garantir o pagamento da dívida pública, acima de qualquer coisa, inclusive o interesse nacional e a própria Constituição.
Com consequências imediatas e permanentes no Estado e na sociedade brasileira, a emenda à Constituição foi o principal projeto desconstituinte do capitalismo financeiro transnacional. Além disso, o governo Temer realizou a reforma trabalhista, suprimindo direitos e garantias inscritos na Constituição desde o início do século XX, e afirmados na Carta de 1988.
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Por fim, a eleição de Jair Bolsonaro, que em si, pela forma como aconteceu, foi um atentado à Constituição. Além disso, figura-se como projeto assumido de destruição de direitos até mesmo com a evocação de um já falecido AI-5 da ditadura militar, ou uma interpretação absurda do artigo 142 da Constituição, na qual as Forças Armadas seriam uma espécie de Poder Moderador.
O governo atual possui uma pauta em Direitos Humanos que vai contra as vitórias de 1988, e os ganhos dos anos subsequentes, em relação às políticas públicas de igualdade de gênero, de raça, religião, em relação as crianças e adolescentes, idosos e todos os setores frágeis da sociedade. Além de avanços em relação às comunidades tradicionais, populações ribeirinhas, populações quilombolas, indígenas, e tantas outras comunidades que são alvo de ataques frequentes do governo.
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Na política de segurança e de encarceramento, há um claro projeto de necropolítica, sobretudo em relação à população negra das grandes cidades: um projeto com o intuito de armar a sociedade, liberar a polícia militar para matar e violar direitos sob o argumento de combate à criminalidade.
Foi feita a reforma da Previdência Social, a qual deixa mais vulnerável ainda a parcela mais pobre da população, que necessita do suporte jurídico, político, administrativo e solidário a fim de que se desenvolva em um ambiente democrático.
Precisamente, porque há um ataque diário às instituições, às pessoas e aos direitos, é que devemos comemorar a Constituição de 1988, e com ela enfrentar os desafios que virão, e que passarão
Um ataque à ciência e à universidade associado a uma política econômica neoliberal de inspiração autoritária dos anos da ditadura de Pinochet, no Chile, fundada na primeira geração da escola de Chicago. Hoje, nem mesmo o FMI recomenda a adoção de tais políticas, pois elas não geram desenvolvimento econômico e prejudicam a população.
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Diante de tudo isso que foi escrito até aqui, e que poderia ser muito mais, ainda temos o que comemorar com o aniversário da Constituição de 1988?
Acreditamos que sim. Apesar de tudo, a Constituição nos constitui numa comunidade de princípios democráticos e de cidadania. Nós nos constituímos como uma sociedade que preza pelos direitos humanos e pelo meio ambiente equilibrado e sustentado.
Temos um projeto de futuro igualitário na diferença, não na desigualdade, sem distinção de qualquer ordem, para que possamos estar juntos como partícipes dessa utopia concreta que possibilita a caminhada diária.
Mais do que nunca precisamos lutar e defender a Constituição, a qual foi e é construída todos os dias, nas ruas, nas praças, em todos os espaços que possamos exercer nossa autonomia pública e privada. Assim, nos sentimos autores e destinatários desse projeto de sociedade justa e democrática.
Precisamente, porque há um ataque diário às instituições, às pessoas e aos direitos, é que devemos comemorar a Constituição de 1988, e com ela enfrentar os desafios que virão, e que passarão.
*Alexandre Bernardino Costa é Professor Associado da Faculdade de Direito da UnB. Co-líder do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito, e em Direitos Humanos e Cidadania, da UnB. Membro fundador da ABJD e do IPDMS.
Edição: Leandro Melito