Os países fortes tornam-se cada vez mais fortes, e os fracos, dia a dia, mais fracos; as pequenas nações se veem, da noite para o dia, reduzidas à condição humilde de estados pigmeus [...] e a equação de poder do mundo simplifica-se a um reduzido número de termos, e nela se chega a perceber desde já apenas raras constelações feudais de estados-barões rodeados de satélites e vassalos. (Gal Golbery do Couto e Silva)
Segundo Joffrey Sachs, Mike Pompeo, chefe do Departamento de Estado norte-americano, é um ardoroso evangélico que considera que é chegada a hora do Apocalipse, da volta de Cristo e da batalha final do “bem” contra o “mal”, que será liderada pelos Estados Unidos, o maior de todos os povos judaico-cristãos.
Além disso, Mike Pompeo é um empresário “rude e simplista”, e um homem da comunidade de inteligência estadunidense, ex-diretor da CIA, sem nenhuma formação diplomática, que opera como uma espécie de ventríloquo de Donald Trump e de sua diplomacia agressiva de desacato às pessoas e de ameaças aos países que discordam ou competem com os Estados Unidos.
De qualquer maneira, é um homem que não usa “meias palavras” nem esconde intenções, e foi absolutamente explícito com relação aos objetivos de sua visita-relâmpago à Base Aérea de Boa Vista, no estado de Roraima, junto à fronteira da Venezuela, no dia 18 de setembro de 2020. Todos entenderam sua encenação eleitoral, mas ele também foi claro na sua demonstração ostensiva de poder frente aos governos, e frente às “tropas satélites”, que estão participando do cerco militar ao território venezuelano que está em pleno curso.
O cerco militar à Venezuela começou no mês de abril, com uma grande demonstração do poder naval dos Estados Unidos no Mar do Caribe, mas depois disto, nos meses de junho e julho, a Marinha estadunidense realizou novas simulações de guerra e uma grande “Operação Liberdade de Navegação”, comandada pelo Alm. Craig Fallen, chefe do Comando Sul das Forças Armadas do Estados Unidos, “USSOUTHCOM”, com sede na Flórida, e liderada por uma das mais modernas embarcações da Marinha norte-americana, o destroier USS Pinckney (DDG91).
Imediatamente depois, foi a vez da “Operação Poseidon”, que já contou com a participação direta da Colômbia, e foi realizada junto com a visita de Mike Pompeo, que antes de aterrissar em Roraima visitou a Guiana e o Suriname, e obteve o consentimento para utilização de seu espaço aéreo, a leste da Venezuela, pela Força Aérea dos Estados Unidos. Por fim, a visita de Mike Pompeo coincidiu com a “Operação Amazônia” das FFAA brasileiras, realizada entre os dias 4 e 23 de setembro, envolvendo três mil militares trazidos de cinco comandos diferentes, juntamente com uma bateria completa do Sistema Astros, completando o cerco pelo sul do país vizinho.
Apesar da data e das dimensões da operação brasileira, ela foi tratada pelas autoridades militares locais como um exercício regular de suas FFAA, quando de fato envolve acordos e encobre decisões que dizem respeito ao futuro de todos os brasileiros. Mesmo quando essas decisões não sejam novas nem originais e reproduzam a história de longo prazo das relações militares entre o Brasil e Estados Unidos, que começou na primeira metade do século 20, são tratadas como se fossem de exclusiva responsabilidade das Forças Armadas. Uma história longa, mas que pode e deve ser dividida em dois grandes períodos: antes e depois de 1941.
Nas duas primeiras décadas do século 20, a geração do Barão de Rio Branco, e do presidente Hermes da Fonseca concebeu e se propôs fazer uma aliança estratégica do Brasil com os Estados Unidos, que deveria ocorrer junto com a recentralização do poder do Estado e a reorganização das Forças Armadas brasileiras. O objetivo era enfrentar a competição econômica e militar da Argentina, mais rica e poderosa e apoiada pela Inglaterra na disputa pela hegemonia da Bacia do Prata e da própria América do Sul.
Nesse período, entretanto, os Estados Unidos estavam absorvidos pela Primeira Guerra Mundial e sua grande crise econômica da década de 1930, e deram pouca atenção aos seus vizinhos da América do Sul. Mas isso mudou radicalmente com a entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial, em 1941, e com sua pressão sobre os países do hemisfério para que suspendessem suas exportações para a Alemanha e a Itália.
Foi então que o Brasil tomou uma série de decisões que marcariam sua história militar posterior. Primeiro, cedeu aos norte-americanos o monopólio de sua produção de bauxita, berilo, manganês, quartzo, borracha, titânio e vários outros minerais estratégicos para os Estados Unidos.
Logo em seguida, no mesmo ano de 1941, o governo brasileiro concedeu à Marinha americana o direito de operar na costa brasileira, e o direito das tropas americanas de utilizarem suas bases aéreas e navais. Finalmente foi assinado, em 22 de maio de 1942, um acordo militar que garantiu o alinhamento das Forças Armadas brasileiras ao lado dos Estados Unidos, em troca de um financiamento de U$ 200 milhões de dólares para aquisição de equipamentos, armas e munições norte-americanas, junto com o compromisso de desenvolver planos conjuntos de defesa e capacitação das FFAA brasileiras.
Em seguida, em agosto de 1942, o Brasil declarou guerra às potências do Eixo, mas o reequipamento das suas Forças Armadas só começou a ser feito, de fato, depois que o país garantiu o envolvimento direto de seus militares no campo de batalha, com a criação da Força Expedicionária Brasileira (FEB), em agosto de 1943, e com o envio de seus soldados para a Itália, em fevereiro de 1944, onde foram situados junto ao 371º Regimento Afro-Americano.
Um ano depois, a FEB participou da tomada do Monte Castelo, ao lado da 10ª Divisão de Montanha Estadunidense, e passou a fazer parte do 4º Corpo de Exército Americano, localizado na zona central da Itália. A FEB teve 12 mil baixas, e a maioria de seus oficiais ficou estreitamente ligada a seus parceiros dos EUA depois do retorno ao Brasil, no segundo semestre de 1945, onde muitos deles vieram a participar do golpe militar que derrubou o presidente Vargas, em 3 outubro de 1945, e decretou o fim do Estado Novo, que os próprios militares haviam instalado em 1937.
Por fim, essa mesma geração de militares teve papel decisivo na negociação e assinatura do grande “Acordo de Assistência Militar entre a República do Brasil e os Estados Unidos da América”, em 15 de março de 1952.
O novo acordo, de 1952, serviu para confirmar e consagrar o relacionamento que havia nascido durante a Segunda Guerra, entre os militares brasileiros e norte-americanos. A diferença era que o novo acordo assegurava uma ajuda anual permanente de U$ 50 milhões de dólares para aquisição de armas e equipamentos americanos, em troca do fornecimento de urânio e areias monazíticas, além de outros minerais estratégicos.
A negociação deste acordo militar foi conduzida pelo embaixador dos EUA e pelo ministro de Relações Exteriores brasileiro, o mesmo João Neves da Fontoura que depois traiu seu amigo Vargas ao denunciar, em abril de 1954, um acordo que foi inventado e atribuído a Vargas e Peron visando criar um bloco geopolítico junto com o Chile, que foi chamado de ABC.
Uma ideia que nunca foi tolerada pelos Estados Unidos e, portanto, uma denúncia que contribuiu decisivamente para a derrubada de Vargas em agosto de 1954. Além da troca de equipamento bélico por minerais estratégicos, o Acordo Militar de 1952 garantiu, nas décadas seguintes, o adestramento dos oficiais brasileiros nas escolas militares nos EUA e da Zona do Canal do Panamá, junto com a presença de oficiais norte-americanos nos cursos do Estado-Maior das Forças Armadas brasileiras.
Antes disso, entretanto, a geração militar que voltou da Itália também teve papel importante na criação da Escola Superior de Guerra (ESG), que foi criada segundo o modelo das War Colleges dos EUA, e que contou desde o início com a assessoria direta dos militares americanos que passaram a ter um oficial de ligação permanente dentro das dependências da própria escola.
Foi na ESG que se formulou, na década de 1950, a nova Doutrina de Segurança Nacional dos militares brasileiros que acabou sendo transformada em Lei da República, em 1968, pelo Decreto-Lei da Ditadura Militar, no 314/68. E foi no corpo dessa nova “doutrina” que apareceu pela primeira vez o conceito de “inimigo interno” do Estado brasileiro, que incluía, desde logo, todos aqueles que se opusessem à nova subserviência internacional do Brasil. Depois de 1948, passaram pela ESG quase todos os militares que participaram do “ultimato militar” a Vargas, em 1954; da frustrada tentativa de impedir a posse de JK, em 1955; e finalmente, do golpe militar de 1964, que derrubou o governo Goulart e entregou o poder do Estado brasileiro, durante 20 anos, a essa mesma geração de soldados que se formou a partir da década de 1940 e viveu ao lado dos Estados Unidos sob a égide da Guerra Fria.
Logo depois do golpe militar de 1964, as Forças Armadas brasileiras aceitaram participar da invasão estadunidense de Santo Domingo, enviando 1.130 soldados que se juntaram, em abril de 1965, aos 42 mil soldados utilizados pelos EUA para derrubar o governo eleito de Juan Bosh e instalar no seu lugar o governo de Joaquin Balaguer, que dominou a política dominicana nos 22 anos seguintes.
Além disso, e no mesmo espírito, os militares brasileiros participaram da Operação Condor, montada em 1968 para perseguir e matar “inimigos internos” no Cone Sul da América Latina. Esta intervenção foi a tal ponto que o embaixador brasileiro no Chile chegou a ser chamado informalmente de “quinto membro” da Junta Militar que comandou o sangrento golpe de estado do General Pinochet, em setembro de 1973.
O Acordo Militar de 1952 foi denunciado pelo General Ernesto Geisel, em 11 de março de 1977, e foi extinto no ano seguinte, apesar de os oficiais brasileiros seguirem sendo treinados nas academias de guerra norte-americanas nos 30 anos que se seguiram. Entre abril de 2010 e janeiro de 2014, entretanto, o governo brasileiro voltou a assinar três novos acordos militares na área da defesa, compra de materiais e tecnologias bélicas, e troca de informações entre as FFAA dos dois países.
E depois do golpe “cívico-militar” de 2016, assinou um acordo para o uso norte-americano da Base de Alcântara, e foi declarado “aliado preferencial extra-OTAN” pelo presidente Donald Trump. E, finalmente, o atual governo indicou um general das FFAA brasileiras para ocupar diretamente, o posto de “subcomandante de interoperacionalidade” diretamente dentro do Comando Sul das FFAA norte-americanas, onde foi assinado o recente Acordo de Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação (RDT&E, na sigla em inglês), que agora se encontra em discussão no Congresso Nacional.
Assim, é no contexto dessa nova “relação carnal” com os Estados Unidos que deve ser lida, finalmente, a tal da “Operação Amazônia” dos militares brasileiros, que foi consagrada pela visita de Mike Pompeo tendo ao seu lado o “bufão bíblico” local que comandou a fracassada “invasão humanitária” da Venezuela, de 2019. Uma leitura das recorrências “epidemiológica” desta história permite formular pelo menos quatro hipóteses, uma certeza e uma pergunta final.
A primeira hipótese é que os militares tiveram papel central em todos os golpes de Estado da história brasileira do século 20: em 24 de outubro 1930; em 19 de novembro de 1937; em 29 de outubro de 1945; em 24 de agosto 1954; em 31 março de 1964; e ainda que de forma menos direta, também no golpe de estado de 31 de agosto de 2016.
A segunda hipótese é que os acordos e relações militares entre Brasil e Estados Unidos tiveram associação muito estreita com quase todos esses golpes, sobretudo depois de 1940. A terceira hipótese é que esses acordos e golpes militares vieram associados, quase invariavelmente, com a participação do Brasil em intervenções externas das FFAA norte-americanas.
Finalmente, a quarta hipótese, é que todos esses acordos e golpes militares tiveram muito mais a ver com os interesses estratégicos dos EUA do que com as disputas políticas internas dos próprios brasileiros.
De qualquer maneira, para além destas constatações, fica a certeza de que a nova intervenção externa do Brasil ao lado dos EUA, contra a Venezuela, apenas repete e prolonga uma decisão de longo prazo dos militares brasileiros pela transformação do Brasil num “Estado vassalo” do império militar estadunidense, utilizando uma ideia e expressão do General Golbery do Couto e Silva.
Por fim, fica uma pergunta: quando foi que os 210 milhões de brasileiros transferiram para esses senhores o direito de decidir seu futuro como nação, obrigando seus filhos e netos a viverem para sempre como “vassalos” de outro povo, sendo obrigados a morrer nas guerras travadas por um outro Estado nacional?
Edição: Rodrigo Chagas