No Brasil e no mundo, uma das principais fontes utilizadas para traçar o perfil epidemiológico e analisar as condições de saúde da população são os dados de mortalidade. Por aqui, esses números estão acessíveis no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), administrado em nível nacional pelo Ministério da Saúde, que reúne os registros enviados pelos estados e municípios.
Em meio à pandemia, no entanto, cálculos como os de excesso de mortes e óbitos por outras doenças (veja matéria principal), associadas ou não à covid-19, também têm sido feitos a partir dos dados do registro civil, disponibilizados pelos cartórios. Isso porque, se tudo acontecer como previsto, o consolidado da base de dados de mortalidade de 2020 só será publicizado no início do ano que vem – e mesmo assim, como dados ainda sujeitos à revisão. Neste momento, aliás, é esse ainda o status das informações de 2019.
Leia também: Rio de Janeiro tem décimo dia de alta na média dos casos de covid-19
“À medida que eles vão sendo recebidos, é feita uma análise crítica da qualidade e da própria cobertura dos dados”, explica Ana Reis, professora-pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJ/Fiocruz), especialista em informação em saúde.
Em condições "normais", segundo ela, as possíveis correções não costumam alterar o padrão de mortalidade do país. Já em tempos de pandemia, se a investigação dos óbitos suspeitos de covid-19 ou subnotificados fosse feita como prevê o processo de alimentação do SIM, o resultado poderia ser bem diferente.
Causas
A grande vilã que costuma demandar esse processo de revisão das causas de morte, de acordo com Ana Reis, são as chamadas causas mal definidas e as causas inespecíficas – como o exemplo das paradas cardíacas. A disparidade do número de mortes por essas causas em relação ao ano anterior é um indicativo da necessidade de uma apuração para esclarecer a “verdadeira“ causa da morte. E é aqui que se encaixa o que pode (ou não) acontecer com a covid-19.
O exemplo é simples: suponhamos que um determinado estado ou município registre uma quantidade muito maior de pneumonias não especificadas do que na série histórica recente. E isso em meio a uma pandemia de covid-19, cujos sintomas se confundem com essa doença.
“Esses comportamentos não mudam de uma hora para outra”, explica Ana, que ilustra: “Se durante os últimos cinco anos a pneumonia correspondia à sétima causa de morte num determinado estado e em 2020 subiu [para o topo do ranking], tem alguma coisa errada”.
Leia mais: Pandemia acentuou a desigualdade de gênero no mercado de trabalho
Diante de um cenário como esse, a preocupação em analisar a qualidade dos dados de mortalidade, sobretudo os relacionados à pandemia, como parte do perfil epidemiológico brasileiro, é imprescindível, segundo a pesquisadora. Caberia então ao Ministério da Saúde fazer a crítica da base nacional de mortalidade e recomendar aos estados que façam a investigação dessas mortes para que seja conhecido o real impacto da pandemia. “Mas eu acho pouco provável que se faça isso”, opina.
Jesem Orellana, pesquisador da Fiocruz Amazônia, reforça que, ainda que essa iniciativa fosse tomada, não seria possível reconstituir a história de uma parte desses óbitos. “Muitos dos que morreram fora do hospital eram indígenas, moradores de rua ou, eventualmente, pessoas que estavam em situação de asilamento institucional, seja penal ou por idade. E é difícil esses lugares fornecerem informação”, diz.
Legalmente, no entanto, em todos esses casos, incluindo as mortes em residência, a morte precisa ser registrada e a causa deveria ser informada. Isso porque, no Brasil, ninguém pode ser sepultado sem uma certidão de óbito, emitida pelos cartórios, a partir de uma Declaração de Óbito (DO), que é a base primária para os sistemas de informação sobre mortalidade.
Sistemas de informação
O Atestado Médico do Óbito, que é um dos muitos campos desse formulário, deve ser preenchido pelo médico, identificado pelo seu número no Conselho Regional de Medicina (CRM), e especificar as causas da morte. O plural aqui não é por acaso: o documento tem quatro linhas, que servem para registro de toda a sequência de problemas que levaram ao óbito. Ana exemplifica:
“Vamos supor que você é portador de diabetes. E, com a diabetes complicando, teve uma insuficiência renal, que acabou gerando problemas de hipertensão. Até que, em algum momento, você teve uma parada cardiorrespiratória. Toda essa cadeia de eventos o médico pode e deve registrar”.
Na prática, no entanto, isso nem sempre acontece – o que só se agravou em meio à correria causada pela pandemia. Nesse exemplo, inclusive, se o médico anotar apenas a o problema terminal, cai-se exatamente na dificuldade das causas mal definidas. “Porque, para morrer, todo mundo precisa parar de respirar e o coração parar de bater. Para fins de estatísticas de saúde, a gente quer saber o que levou à parada cardiorrespiratória”, lembra a pesquisadora.
Leia também: "Sem água para lavar as mãos como evitar o contágio?", diz liderança de favela do Rio
Mas o dado que vai ser cadastrado nos sistemas de informação municipal, estadual e depois nacional não é a simples transcrição desse registro do médico. Para isso, segundo Ana Reis, entra em ação um profissional treinado para reler e “decodificar” essa DO, a partir de regras internacionais. É ele quem vai codificar a causa básica do óbito e identificá-la a partir da Classificação Internacional de Doenças (CID-10), produzida pela OMS. Nessa classificação, é possível, inclusive, informar causas múltiplas, como, por exemplo, uma morte por tuberculose que está associada à Aids.
Geralmente, todo esse processo começa na unidade de saúde onde ocorreu o óbito, que encaminha uma das vias da DO para as secretarias municipais de saúde. As bases de dados de mortalidade municipais são enviadas para a base estadual que, por sua vez, vai compor o SIM nacional.
Ana explica ainda que, como a alimentação do SIM hoje é um indicador de pactuação das ações de Vigilância em Saúde, que inclusive penaliza o município que não cumprir a meta de cobertura com perda de recursos financeiros, de modo geral, esse fluxo de informação tem mantido “uma certa regularidade”. “Existe um controle muito grande em relação a isso”, garante.
Fonte: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio da Fundação Oswaldo Cruz (EPSJV/Fiocruz)
Edição: Mariana Pitasse