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Especial | À espera da água: a força do coletivo

Segunda reportagem do especial produzido pela Marco Zero Conteúdo sobre impactos da transposição do rio São Francisco

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Josué Raimundo dos Santos mora, com a mulher Maricleide e os dois filhos, em uma das trinta propriedades da VPR Retiro - Inês Campelo/ MZ Conteúdo

Captação fica nas margens do Rio São Francisco. É a primeira vila do Eixo Norte da transposição e, como o nome indica, fica bem próxima de onde a água é captada. Apesar da proximidade do rio e de ter sido umas das primeiras a serem ocupadas, ainda em 2010, os terrenos irrigados não foram entregues aos novos proprietários. Ainda havia outro problema. Os lotes reservados para produção eram menores do que o previsto. “Quando mediram a área para demarcar os terrenos que seriam irrigados só sobrou 1,65 hectare para cada um, quando o combinado eram dois”, lembra Rivaldo Manoel Novais, 56 anos.

Os lotes com o tamanho reduzido teriam sido entregues normalmente se os proprietários não fossem negociar com os representantes do Ministério do Desenvolvimento Regional. Os moradores não só pressionaram como apresentaram a solução para o problema. No final, houve uma inversão das áreas onde seriam implantados os lotes de sequeiro com a área dos irrigados, garantindo os dois hectares pactuados anteriormente.


Rivaldo Manoel Novais, 56 anos / Inês Campelo/ MZ Conteúdo

A troca do local dos lotes também possibilitou que os terrenos de sequeiro ficassem próximos do Rio São Francisco (o lote de Rivaldo, por exemplo, fica a 270 metros). Foi aí que surgiu a ideia de criar uma associação entre os moradores para implantar um sistema de irrigação próprio, aproveitando a proximidade do rio. “No começo a gente foi conversando com as pessoas. Tinha gente que não queria. Era um trabalho de convencimento. Até que chegou a hora que a gente disse: ‘vai ter que irrigar’. Aí a gente foi comprando cano, bomba, transformador. Era tudo dividido igualmente com todos”, lembra Rivaldo.

Treze dos dezessete proprietários aceitaram participar da associação. Há cerca de três anos, com a água trazida do São Francisco, começaram a produzir e aumentar a renda familiar. Cada sócio paga R$ 15 por mês, com as eventuais despesas extras para investimentos sendo rateadas igualmente. “A gente já recebeu as casas há quase dez anos e só estamos produzindo porque a gente se juntou e fez com recursos próprios. Essas estradas aqui, a drenagem, foi tudo a gente que fez através da associação”, mostra Rivaldo com orgulho.

O exemplo de Lafayette

A VPR Lafayette está localizada no final do Eixo Leste, no município de Monteiro/PB. Inaugurada em março de 2016, está no grupo das últimas vilas a serem entregues e, possivelmente será uma das primeiras a receber os lotes irrigados. Isso porque o Eixo Leste, apesar de algumas interrupções por problemas estruturais, já está em pré-operação. Mas, mesmo antes da água chegar e dos inúmeros problemas comuns às outras vilas, boa parte dos moradores começou a produzir de forma consistente e articulada.
Agnaldo Freitas da Silva, 44 anos, é o presidente da Associação de Moradores de Lafayette e também um agricultor inquieto, que vive procurando ideias, parcerias e apoio para projetos que ajudem a melhorar a sua produção. Sua e dos vizinhos. Segundo Agnaldo, o sucesso da vila em relação à maioria das outras do projeto de transposição deve-se à combinação de organização entre os moradores com a busca pela capacitação técnica para produzir com mais eficiência e menos recursos. São muitos exemplos nestes pouco mais de quatro anos, envolvendo parcerias com órgãos públicos, universidades e organizações não governamentais.

Além de ter organização, é preciso ter persistência. Um exemplo disso foi o processo para colocar água nas torneiras das casas da vila. “Aqui, tivemos todo processo com a água. Começamos com o poço, mas era imprópria para o consumo, já que tinha muito sódio. Paramos o poço e acionamos o ministério que passou a fornecer carro-pipa por mais de um ano. Depois, conseguimos a Cagepa (Companhia de Água e Esgoto da Paraíba) que opera até hoje aqui dentro. A gente teve até que entrar com ação na Justiça Federal”, lembra Agnaldo. Tanta luta mostrou também a necessidade do uso consciente da água. “Fizemos capacitação com a comunidade. Mostramos que não era para a plantação ou consumo dos animais”.

Desde cedo, os moradores de Lafayette perceberam que precisavam agregar valor ao que produzissem. Assim, poderiam compensar o custo relativamente alto da água e as condições do terreno nem sempre tão favoráveis. Perceberam também que o trabalho conjunto e a capacitação técnica era o melhor caminho. Foi assim, por exemplo, com a produção de algodão agroecológico ano passado. Vale lembrar que a Paraíba já foi um importante centro produtor de algodão até a praga do bicudo por volta dos anos 1980.
Luciano dos Santos, 43 anos, foi um dos 29 moradores da vila que começaram o projeto. Depois de passar por uma capacitação de seis módulos com técnicos da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), os produtores começaram a preparar o terreno, com uma série de cuidados e procedimentos para que o “selo” de agroecológico fosse garantido. Luciano lembra que na época dos pais dele plantavam o algodão Mocó mas, depois da capacitação, eles resolveram plantar o Aroeira. “Tem boa produtividade e é mais resistente às pragas”.

O trabalho, segundo Luciano, foi duro. Dos 29 produtores que começaram, apenas quatorze chegaram ao final do processo. O cultivo rendeu cerca de uma tonelada de plumas, vendidas à Veja Fair Trade, marca francesa de tênis sustentáveis, por R$ 11,50 o quilo. As negociações foram feitas com o apoio da Associação de Certificação Participativa dos Produtores Agroecológicos do Cariri Paraibano (ACEPAC) e em parceria com o Instituto C&A. “No individual é muito difícil. Com a associação podemos buscar a venda direta e conseguir melhores preços”, explica.

Em onze casas da vila, tanques de concreto no quintal chamam a atenção. A estrutura, construída em parceria com o Sebrae, é mais uma aposta dos moradores. Em cada tanque de 14 mil litros, são dois por propriedade que participa do projeto, estão cerca de mil tilápias. Para conseguir tantos peixes em um espaço tão restrito, os moradores tiveram orientação de profissionais da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que tem um convênio com o Ministério do Desenvolvimento para realizar capacitações nas dezoito vilas.

Além do algodão e dos peixes, vários outros projetos foram ou estão sendo executados na vila Lafayette. Apicultura (eram 200 colmeias de abelhas nativas), milho hidropônico, curso de hortaliças e criação de aves, perfuração de poços (11 ao todo) e plantação de palma (renderam 440 mil raquetes em 2019) só para citar os mais relevantes. “Aos poucos estamos desenvolvendo nosso potencial. São essas parcerias que vão abrindo caminho”, comemora Agnaldo.


Agnaldo Freitas da Silva, 44 anos, é presidente da Associação de Moradores de Lafayette / Inês Campelo/ MZ Conteúdo

A organização para a produção agrícola também ajuda na mobilização para trazer benefícios para a comunidade. Em Lafayette o posto de saúde funciona e a escola oferece cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA). A estrutura física da escola também é usada para cursos de capacitação e oficinas dos mais variados tipos, desde fabricação de doces a aulas de dança.

Claro que ainda existem muitos problemas a serem resolvidos e nem todas as pessoas da comunidade estão envolvidas nesse processo. Lafayette é bem heterogênea, o que dificultou e, de certa forma, limitou a organização. Das 61 famílias iniciais, dezenove vieram da zona urbana de Monteiro, sem afinidade com a agricultura. Outras dezoito famílias vieram de localidades de Pernambuco, fato que não ajudou na integração no primeiro momento. Isso, porém, não impede Agnaldo de pensar em ampliar o trabalho coletivo. “Nossa ideia é fazer uma cooperativa. Mas isso só será possível quando os lotes irrigados forem entregues”.

Segundo Leonardo Cavalcanti, coordenador das ações do PBA08 na Universidade Federal do Vale do São Francisco, a ideia da universidade também é incentivar a criação de cooperativas. “Reuniríamos as VPRs de Pernambuco e criaríamos uma cooperativa, o mesmo com as vilas do Ceará e da Paraíba. Assim, elas poderiam comprar e comercializar em melhores condições”, explica.

Em 2019, a Univasf realizou 69 capacitações nas dezoito VPRs. Os cursos de Formação de representantes e Organização Socioprodutiva aconteceram em todas as vilas. Outros, como Irrigação, Beneficiamento de Frutas, Quintal Produtivo, Produção de Forragens, Horta Agroecológica, Criação de Galinhas Caipiras e Piscicultura foram aplicados conforme a necessidade de cada comunidade. Ao todo, foram 1.075 participantes.

As capacitações fazem parte do PBA08 e, através de um convênio com o Ministério do Desenvolvimento Regional, envolvem professores e pesquisadores de diferentes cursos da Univasf e também de colaboradores terceirizados e estudantes. Segundo Leonardo Cavalcanti, em 2019 houve uma mudança de foco na realização das capacitações. “A escolha dos cursos foi feita com a participação das vilas, abordando temas de interesse e da realidade de cada uma”.

A liderança feminina

 

Onde tudo se aproveita

Josué Raimundo dos Santos mora, com a mulher Maricleide e os dois filhos, em uma das trinta propriedades da VPR Retiro, no município de Penaforte/CE. Desde que chegou lá, em 5 de agosto de 2015, ele tem uma preocupação: como se manter depois que o auxílio do governo acabar.

Aqui cabe uma explicação. O que ele chama de “auxílio” está previsto no plano estratégico de implementação do Programa de Reassentamento de Populações, que estabelece uma ajuda técnica para a produção (começou com 1,5 salário-mínimo e, em 2017, foi reduzido para um) até a entrega dos terrenos irrigados, com uma carência de seis meses até a primeira colheita.

O “auxílio”, que garante a sobrevivência das famílias enquanto esperam pelos lotes irrigados, na opinião de Josué pode ser uma armadilha. Ele vê com preocupação muitos vizinhos que vivem exclusivamente do “dinheiro do governo” e não buscam alternativas para o futuro. “Um dia vai acabar e quem não tiver começado a plantar vai ter dificuldades”, prevê. A questão levantada por Josué é um problema que afeta os moradores de todas as dezoito vilas produtivas rurais.

A solução de Josué para fugir da armadilha foi buscar capacitação técnica e ideias criativas para conviver com a escassez de água. Participou das capacitações da Univasf, procurou ideias na internet com a ajuda do filho e, aos poucos, foi criando um sistema integrado em seu quintal, onde tudo se aproveita.

O primeiro desafio, claro, é a água. Em Retiro tem um poço com capacidade para 28 mil litros/hora que é administrado pela própria comunidade. Rivaldo paga R$ 14,50 por 10 mil litros de água que usa para irrigar o que planta no quintal e para o consumo da casa. Planeja ter o próprio poço que, a longo prazo, representaria uma economia. Mas já fez as contas e, para perfurar, gastaria algo em torno de R$ 20 mil, mas uns R$ 300 mensais de energia para bombear a água. Ainda não dá.

Para minimizar os custos, Josué e a família reaproveitam a água do banho. O sistema faz parte de um projeto da Univasf e utiliza a água que seria jogada fora para irrigar a plantação de palma e milho no quintal da casa. O sistema é simples e engenhoso, podendo ser implantado com baixo custo.

Com a água do poço a família de Josué vive uma situação bem diferente do que estava acostumada na antiga casa, em Quixaba, distrito de Salgueiro/PE. “A gente precisava andar uns oito quilômetros. Pegava um jumentinho, colocava uma cangaia e ia no açude pegar a água”, lembra. “A gente só vive através da água”.

A água está no centro de todos os outros pequenos projetos que Josué desenvolve no quintal de casa, uma área de meio hectare. Também com o apoio da Univasf, ele cultivou milho hidropônico que serviu para a alimentação das galinhas, porcos e gado que cria para subsistência. O gado também se alimenta da palma produzida com o aproveitamento da água do banho.
Josué também está apostando na criação de peixes. Em uma caixa d’água de 500 litros ele cria cerca de 100 carpas e tilápias. Para oxigenar a água, ele utiliza um motor adaptado de uma máquina de lavar roupas. Os peixes chegam a pesar entre 300 e 400 gramas. Com ajuda dos filhos já cavou no fundo do quintal um barreiro com capacidade para mais de mil peixes. Josué imagina que a piscicultura possa ser um negócio bem rentável.

“Nós vamos buscando mais, inventando os projetos, até chegar água”. Josué explica que os projetos servem de teste para saber o que é mais viável economicamente para desenvolver em uma escala maior quando receber os lotes irrigados.