Por que uma parte da população ouve e concorda?
Desde o discurso do presidente Jair Bolsonaro na Organização das Nações Unidas (ONU) na última terça-feira (22), as redes sociais de pessoas progressistas foram tomadas por uma nova onda de indignação pelos absurdos ditos. Eu, enquanto assistia, tive diversas sensações: choque, raiva, incredulidade, tristeza. E, logicamente, me lamentei que uma figura dessas me provoque tanto mal-estar.
O que mais se comentou foi a falta de Bolsonaro com a verdade. Do valor do auxílio emergencial calculado em dólares à acusação de que povos indígenas e caboclos haviam sido responsáveis pelas queimadas no Pantanal e na Amazônia – que nem eram tão grandes assim como a imprensa noticiava! –, vimos um desfile de argumentações dissimuladas.
No entanto, o que ficou mesmo na minha cabeça foi um questionamento que segue me atormentando: por que é possível a Bolsonaro fazer um discurso mentiroso na abertura da Assembleia Geral da ONU, diante de lideranças de todo o mundo?
Hipóteses existem. A primeira diz respeito à psicanálise, que eu não tenho condições de explorar. Restrinjo-me a dizer que Bolsonaro seria um sujeito perverso, que não reconhece limites e cuja ação consiste em provocar o sofrimento dos outros.
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A segunda trata dos tempos em que vivemos, onde o avanço da extrema-direita no mundo, inclusive no país onde se situa a sede da ONU, os Estados Unidos, faz com que discursos de valorização nacional com características fascistas sejam aceitos e até considerados adequados.
Na minha avaliação, talvez esse discurso tenha sido o mais fascista de Bolsonaro até agora: mobiliza o imaginário da nação grande - traz proporções territoriais do Brasil comparadas a outros países, fala sobre as matas e florestas - ; acusa inimigos - imprensa, povos indígenas, possíveis intervenções estrangeiras -; e manipula dados, como o valor da transferência de renda durante a covid-19 e a eficácia do governo em tratar a pandemia.
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Por fim, há também o ambiente para o qual foi direcionado o discurso: ele falou não apenas para a ONU, mas para seus eleitores.
Fez um discurso, como sempre, para circular nas redes sociais e no WhatsApp. Bolsonaro nunca abandonou o tom de campanha eleitoral e o que o campo progressista vê como incompatível com o posto de chefe de Estado, para ele funciona muito bem ao manter sua base mais agressiva permanentemente mobilizada.
Penso que são esses fatores combinados – e certamente outros que não me ocorrem agora – que permitem a Bolsonaro fazer o discurso que fez.
É possível mentir na ONU, portanto, em três níveis:
1) Individual, subjetivo - se você é um líder perverso;
2) Institucional – se você é amparado por líderes semelhantes;
3) Social, coletivo – se você que tenha uma ampla plateia que o aplauda.
E isso me leva a pensar em um segundo questionamento: por que uma parte da população ouve e concorda?
Edição: Leandro Melito