A mão da esquerda não pode tremer: deve defender o funcionalismo público
O governo apresentou um projeto de reforma administrativa e uma PEC que são um ataque frontal ao funcionalismo público. Ambas as iniciativas têm o apoio da maioria do Congresso Nacional. Suspensão de concursos públicos e de promoções, redução salarial para garantir o teto de gastos e o fim da estabilidade.
Esta campanha contra os funcionários públicos é reacionária. Mas não é inofensiva. Ela procura legitimar a ideia de que se você não tem direitos, ninguém deve ter direitos. Nivelação pela destruição de direitos, um veneno de tipo fascistóide. É uma crueldade selvagem. É muito perigosa, porque semeia a divisão entre os que vivem do trabalho.
Trata-se de uma campanha que procura manipular os mais pobres, incendiando a ira popular contra os trabalhadores com contratos que, apesar da crescente precariedade, ainda preservam alguns direitos. A esquerda tem a obrigação política de defender o funcionalismo público.
Quem deve pagar pela crise são os ricos, os milionários, os exploradores. Essa é a única resposta que interessa à esquerda. Todas as outras são reacionárias.
São propostas que pretendem envenenar os informais contra os funcionários públicos, dividir os desamparados dos assalariados com contrato, e lançar a classe média contra os trabalhadores e vice-versa. Todos contra todos.
Esta estratégia só interessa ao neofascismo bolsonarista. A responsabilidade pela grotesca desigualdade social é do 1% mais rico. Mas os milionários são invisíveis. São, também, inúteis. Mas estão muito bem protegidos.
O tema de quem e como se deve financiar o programa de transferência de renda que deverá substituir o Bolsa-Família passou a ser central. A polêmica dentro do governo passou a ser pública. Ela se concentra em dois temas: decidir o valor e alcance da transferência de renda e seu financiamento, e respeitar os limites da Lei do teto de gastos. A questão é estratégica para o governo: Bolsonaro precisa compensar com o apoio dos desvalidos a alta taxa de rejeição nas concentrações proletárias nas grandes cidades para poder disputar a reeleição.
De forma exploratória, já foi sugerido um amplo leque de medidas que atingem os trabalhadores formais e informais: o retorno da CPMF com o nome de fantasia de Imposto Digital; a desindexação dos pagamentos do INSS do salário mínimo; um pente fino nos beneficiados pelo BPC (Benefício de Prestação Continuada) para justificar a exclusão; o congelamento do valor de aposentadorias; a redução dos salários do funcionalismo, ou até o fim das deduções no Imposto de Renda, entre outras. Nunca se considera que os ricos devem pagar.
O auxílio emergencial aprovado pelo Congresso Nacional foi essencial para reduzir o impacto de uma crise social mais grave, mas termina em dezembro. Foi financiado pela emissão de títulos da dívida pública, que deve alcançar até o fim do ano algo acima de 90% do PIB. A lei do teto de gastos foi desconsiderada, excepcionalmente, com a aprovação do chamado “orçamento de guerra”. Mas a discussão sobre como manter uma política assistencial através de uma nova formatação do Bolsa-Família coloca o problema de onde deve sair o dinheiro, ou de quem deve pagar.
Os ideólogos da classe dominante defenderam várias hipóteses. Cortar outros programas sociais de distribuição de renda, como o seguro-defeso, o abono salarial, talvez até o Farmácia Popular. O primeiro beneficia os pescadores, o segundo aqueles que recebem até dois salários-mínimos, e o último quem necessita de alguns remédios de uso continuado.
O Bolsa Família é pago a pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza. Atualmente, mais de 13,9 milhões de famílias o recebem, e seu custo corresponde a pouco mais do 0,5% do PIB. Sem contar com o orçamento do Bolsa Família, estimado em R$ 29,5 bilhões em 2020, a unificação dos outros três programas garantiriam R$ 25 bilhões extras em recursos para o Renda Brasil. Somente o fim do abono, por exemplo, garantiria R$ 20 bilhões. As deduções do Imposto de Renda com despesas médicas, com dependentes e alimentandos também estão na mira do governo e garantiriam outros R$ 4 bilhões.
O argumento esgrimido é que é necessária uma expansão da base contribuinte com a elevação da taxação sobre quem pode pagar. Um pouco mais de trinta e três milhões de pessoas entregaram declarações de imposto de renda neste ano. São denominados de classe média. Mas, isso não é verdade, porque a faixa de isenção do Imposto de Renda da pessoa física permaneceu defasada, indefinidamente, há muitos anos.
O que é a classe média no Brasil? Ela gosta de pensar que está perto da riqueza e, sobretudo, tem muito medo da pobreza. Os pobres pensam que a classe média é o nome que os ricos dão a si mesmos. Os ricos têm raiva porque querem convencer os pobres que a classe média pertence ao mundo dos ricos. Mas tudo isso é falso. Trata-se de um discurso ideológico ou, em vocabulário marxista, alienado.
O critério, como sobre tudo que vale a pensa ser levado a sério, não pode ser o que as pessoas pensam de si próprios. Uma das primeiras lições que se deve aprender no primário é não acreditar naquilo que os outros pensam e dizem sobre si próprios.
A classe média brasileira é, comparativamente, muito menor que a argentina. Ela é composta por vários estratos sociais, mas, essencialmente, são pequenos empresários, gerentes de negócios e executivos no setor privado e público, profissionais liberais ou especialistas em diferentes áreas que atuam como pessoas jurídicas. Não fazem parte da classe dominante, mas se identificam, ideologicamente, com ela.
A maioria dos que ascenderam a um modo de vida de classe média tem uma percepção errada sobre seu lugar na sociedade. O lugar social de cada um não se define, somente, pelo seu padrão de consumo. São, na verdade, assalariados de escolaridade mais elevada. Associada à herança da casa própria, ao pertencimento a uma rede de laços sociais desde a infância, beneficiados pela urbanização mais precoce de suas famílias, e aos privilégios de não serem negros em uma sociedade muito racista, a ascensão social foi conquistada, no máximo, nas últimas duas gerações.
Os funcionários públicos têm um salário médio um pouco maior que o salário médio nacional, além de outros direitos como a estabilidade. Ela decorreu da disputa por uma mão de obra mais qualificada, quando o Brasil se urbanizava e ela era ainda mais escassa do que hoje.
Embora em decadência, esta inserção social tem uma história que a legitima: foi uma conquista histórica, arrancada contra a distribuição de empregos públicos pela clientela. Punir o funcionalismo com redução salarial e suspender concursos púbicos terá consequências devastadoras para a educação e saúde pública.
Portanto, a mão da esquerda não pode tremer: deve defender o funcionalismo público.
Edição: Rodrigo Durão Coelho