Toda reforma administrativa deve ocorrer, ou deveria, com o objetivo último de melhorar e aperfeiçoar a prestação dos serviços públicos. Não no caso brasileiro. Ao menos não nos últimos 20 anos.
A reforma agora pretendida pelo governo federal não apresenta diagnósticos, não aponta onde se concentram os problemas, não indica o que pretende resolver ou demonstra o quanto isso vai impactar ou economizar aos cofres públicos. Falta subsídio para a proposta de mudança. Sua única motivação, vazia e explícita, é o corte de gastos.
O que se observa na proposta, num primeiro momento, é novamente a tendência da política deste governo de desconstitucionalização dos direitos, agora dos servidores públicos. Vários dos temas que hoje são previstos e abrigados pela Constituição Federal, passarão a ser regulamentados por leis.
Para esta proposta, assim como outras que a antecederam, o governo toma como modelo típico o serviço público federal para decidir sobre todo o conjunto de servidores públicos. Porém, o modelo típico emprestado está longe de refletir o conjunto de servidores. O funcionalismo público federal representa apenas 10% dos vínculos de trabalho do funcionalismo nacional. A parte tomada pelo todo é uma péssima amostragem, e o resultado é evidentemente uma compreensão míope e equivocada do setor público.
Ao longo desse texto, tomaremos, para melhor compreensão e ilustração, os dados, indicadores e gráficos do excelente estudo realizado pelos pesquisadores do IPEA, que dão um espectro bem nítido do funcionalismo público nacional (Felix Lopez, Erivelton Guedes – Três Décadas de evolução do funcionalismo público no Brasil (1986 – 2017): Atlas do Estado Brasileiro)
Sem dúvida, houve uma tendência de municipalização do serviço público. Nove em cada dez servidores públicos estão nos Estados e Municípios, segundo os dados apresentados pelo IPEA, e seis em cada dez servidores estão nos Municípios. Na década de 50 os servidores públicos municipais consistiam em 15% do funcionalismo público no Brasil, em 2018 consistem em 60%! Os servidores públicos estaduais eram 50% e agora estão em torno de 10%. Já os servidores públicos federais eram 35% e agora são 30%, o nível que mais se manteve estável. O movimento de municipalização do serviço público brasileiro é uma tendência que acentuou-se na década de 70 e, sobretudo, após a promulgação da Constituição Federal de 1988.
Aliado ao crescimento do número de municípios do país, esse salto na municipalização do serviço público decorre essencialmente da própria Constituição Federal de 88, que universalizou as políticas sociais, uma vez que quem realiza e executa essa universalização é o município, por meio dos serviços de educação e saúde. Os municípios ampliaram suas competências e atribuições, com o provimento de serviços que integram o núcleo do Estado de bem-estar – educação, saúde e assistência.
Segundo os dados do IPEA, de 1986 a 2017, o total de vínculos aumentou de 1,7 milhão para 6,3 milhões, isto é, o Executivo municipal é o grande empregador no setor público brasileiro.
Segundo aponta o aludido estudo, “nos municípios, por exemplo, 40% das ocupações correspondem aos profissionais dos serviços de educação ou saúde: professores, médicos, enfermeiros e agentes de saúde”. Somente os professores do ensino básico e fundamental são um terço dos servidores dos Municípios.
Como se vê, quando se fala em redução do quadro, o que essencialmente isso representa é a redução dessas políticas básicas e fundamentais.
Muito importante o dado apontado de que nos municípios o regime estatutário de contratação aumentou de 66% para 86% do total ao longo dos anos, indício de maior profissionalização. Esse dado é relevante uma vez que são os municípios sujeitos à vigorosa influência de demissões e contratações motivadas por razões político eleitorais, e os dados mencionados do aumento de contratações estatutárias revelam uma blindagem maior do servidor e do serviço público a esses interesses mesquinhos.
A proposta ataca a estabilidade do servidor. Considerando a concentração dos servidores públicos nos Municípios, a retirada da estabilidade causa como primeira consequência a volta do coronelismo político às práticas locais, onde os servidores e os serviços públicos ficam vulneráveis aos sujeitos politicamente empoderados. Sem a estabilidade, só permanece no cargo quem se sujeitar as vontades políticas circunstanciais.
É importante lembrar que a estabilidade tem como intuito evitar demissões em razão de interesses políticos, partidários e eleitorais e que constitui um dos fundamentos da racionalidade administrativa dos Estados modernos. Não é só uma garantia de trabalho do servidor, mas uma garantia da sociedade. Acabar com a estabilidade, e a forma de provimento dos cargos por concurso público, é aparelhar o Estado a serviço da política do governo. Estado e governo não podem se confundir jamais.
Nesse sentido, a nova estrutura de acesso aos cargos proposta pelo governo é a vanguarda do atraso! De volta as velhas práticas de apadrinhamento no serviço público e loteamento de cargos na administração pública.
De mais a mais, a reforma proposta não alcança onde realmente seria necessário mudar. Mantém uma elite de servidores, em especial do Poder Judiciário e Poder Legislativo, e assim, o governo apenas aumenta o fosso abissal existente entre essa minoria e a realidade da maioria dos servidores públicos, corroborando para que aqueles se sintam cada vez menos parte do serviço público. Ao não combater onde estão os privilégios, reforça a imagem falsa e generalizada de que todos os servidores públicos são privilegiados.
Ao deixar de fora os poderes com maiores problemas, revela sua falta de diagnóstico e intenção de não solução onde eles realmente existem. Veja-se entre os poderes, o Judiciário foi o que mais cresceu em termos de vínculos de trabalho, novamente com base nos estudos do IPEA:
Ao mesmo tempo, e no mesmo período estudado, na tabela abaixo, se vê a evolução da remuneração média, por Poder, com um salto das remunerações do Poder Judiciário nos últimos 25 anos e o Poder Legislativo também com média bem superior ao do Poder Executivo.
Já o total de vínculos públicos por poder, tomando-se o Estado de São Paulo por exemplo, o quantitativo de vínculos por poder revela que do total do funcionalismo público, o Poder Judiciário ocupa um lugar muito menor, com o menor número de vínculos, porém o que teve maior aumento remuneratório nas últimas décadas.
Não nos levemos pelo discurso paradoxal que reclama melhores serviços e redução da “maquina”, considerando, como vimos, que a redução da “máquina” pode significar a redução de quadro desses profissionais ligados à atividade pública essencial, dada a natureza das atividades públicas que envolvem um maior volume de contratações.
Evidente que aperfeiçoar sempre é necessário, ainda mais ante as exigências dadas pelas transformações sociais e tecnológicas, o que não implica restringir a discussão ao tamanho da força de trabalho do serviço público e obstaculizar a qualificação e renda do servidor tomando como parâmetro o topo de determinadas carreiras, tratando genericamente o servidor como a ruína do desenvolvimento.
O que é mais relevante da proposta governamental é constatar que conduz à passagem para um estado mínimo social, e como tal, deveria ser rechaçada como inconstitucional ante o fato de que o estado mínimo contradiz a nossa Constituição Federal, que alberga um estado de bem-estar social e universal de políticas públicas sociais. Não se presta ao estado constitucional brasileiro.
*Lara Lorena Ferreira é advogada trabalhista e sindical e integrante da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).
Edição: Rodrigo Durão Coelho