A partir de uma epistemologia favelada e periférica marcada pela vivência de moradores/as e militantes da Baixada Fluminense, podemos afirmar que os grupos de extermínios possibilitaram o domínio e o fortalecimento das atuais milícias que dominam a região. Essas frações de milícias possuem uma relação direta com a herança dos grupos de extermínios e matadores que dominavam o território durante os anos da ditadura empresarial-militar.
Foi a partir da ditadura que esses grupos iniciaram o alicerce de uma estrutura de poder que nunca sofreu qualquer tipo de impedimento, pelo contrário, que se fortalece até os dias atuais, sendo os embriões da estrutura de poder das atuais milícias. Neste mesmo período histórico, as principais famílias e grupos de matadores e exterminadores consolidaram o poderio político e letal nos diversos territórios da Baixada, sendo o embrião da atual face da violência urbana fluminense.
Estamos em um cenário de consolidação da milícia como um projeto político do Estado para áreas suburbanas, faveladas e periféricas. O controle da gestão e organização de políticas sociais nesses territórios predominantemente de negros e pobres são administrados por essas organizações políticas que estão no interior do Estado. Entendemos que a Milícia não se limita a ser apenas um projeto de segurança pública. Mas a principal coalizão que organiza e controla a execução de políticas sociais em áreas Faveladas e Periféricas.
O fortalecimento e expansão dos grupos de milícias que contam com apoio de integrantes do Parlamento e do Judiciário ratificam um projeto em curso da elite política e econômica brasileira: a militarização de todas as esferas da vida. Afinal, o atual governo federal incentiva um discurso de militarização fundado em um racismo estrutural em que matar pobre, pretos e favelados é sinônimo de eficiência nas políticas de segurança pública. Um das consequências mais evidentes deste processo é o crescente aumento dos casos de autos de resistências e os relatos de desaparecimentos forçados nas favelas e periferias. Ambos têm aumentado de forma brutal após a ascensão da milícia ao poder.
Um bom exemplo do amplo controle das milícias na Baixada Fluminense é a composição das Câmaras Legislativas e os Executivos Municipais da região, formados com forte presença de grupos de extermínios, matadores, lideranças das diversas frações de milícias e apoiadores de milicianos diretos ou indiretamente vinculados nesses territórios.
Em um território dominado pelas milícias, eleições sempre foram sinônimo de disputa de poder e de produção da morte. O emblemático assassinato da vereadora Marielle Franco, uma mulher negra e favelada, que ganhou o mundo como um dos maiores crimes políticos da última década, escancarou as relações torpes de poder e corrupção no cotidiano da política fluminense.
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A história da Baixada Fluminense é marcada por processos de milicialização, com assassinatos constantes de “inimigos políticos”, inclusive já virou uma ferramenta naturalizada no jogo político da região. Os assassinatos, execuções e desaparecimentos forçados são utilizados no cenário político para eliminar qualquer possibilidade de disputa eleitoral que poderia resultar em uma derrota política e econômica para um determinado campo político.
Milícias e eleições municipais
O assassinato de Marielle não se trata de um caso isolado. Na Baixada Fluminense, território dominado pela política pública de milicialização, a resolução de problemas políticos e eleitorais através da política da bala e da produção de morte tornou-se um instrumento histórico de eliminação de desafetos. Por isso, a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial realizou um levantamento* sobre os assassinatos que tiveram como principal motivação as Eleições Municipais de 2020 na Baixada. Dado o atual cenário de expansão do poderio das milícias e a ofensiva conservadora dentro do parlamento, a IDMJR busca dar visibilidade aos homicídios que ocorrem devido à corrida eleitoral na região.
Ao longo do ano de 2019 até agosto de 2020, identificamos 10 assassinatos de pré-candidatos a vereadores na Baixada Fluminense! O perfil em geral das vítimas é de homens adultos negros com histórico de envolvimento com a milícia, em boa parte das vezes com relação direta na prestação de serviços ilegais do território ou em esquemas de corrupção do poder público municipal.
Nova Iguaçu registrou o maior número de execuções relacionadas ao pleito eleitoral em 2020, com o assassinato de três pré-candidatos, seguido por Duque de Caxias com dois assassinatos e Magé também com 2 mortes devido a questões de disputa territorial durante o período eleitoral. As investigações da Delegacia de Homicídios da Baixada Fluminense apresentam indícios que os componentes das Câmaras Municipais (milicianos e aliados) são os principais produtores de mortes e crimes na região e durante o período eleitoral os casos de execuções e assassinatos tendem a aumentar.
Estávamos fechando esse levantamento quando mais uma pré-candidata na Baixada Fluminense foi morta, com indícios de execução, a Tia Sandra em Magé, mais um assassinato por motivos eleitorais e que provavelmente não terá elucidação devido ao forte domínio das milícias que dificultam e impedem a luta por justiça na região, fazendo com que chegássemos ao número de 10 assassinatos, com um elemento novo, pois trata-se da primeira mulher que registramos no levantamento durante todo o período 2019/2020.
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Faltando pouco mais de dois meses para as eleições, a Baixada Fluminense é um território em que a legalidade e ilegalidade possuem uma linha tênue. Afinal, isso não é de hoje, mas assusta, quando o TRE (Tribunal Regional Eleitoral), Ministério Público do Estado e a polícia não colocam a investigação desses crimes durante o período eleitoral como prioridade para entender toda a geopolítica de controle das milícias na região.
Diante desse quadro brutal de assassinato e disputa de poder local, é de suma importância pautar a necessidade de protocolos de proteção a partir da centralidade da discussão que o Comitê Brasileiro de Defensoras e Defensores de Direitos Humanos – espaço do qual a Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial faz parte, de construção de metodologias de proteção que passem pela proteção física, proteção da comunicação, proteção digital, proteção jurídica e também de autocuidado que partam das especificidades de cada território, para que assim possamos enfrentar e combater um aparato de produção de mortes na Baixada Fluminense.
Gostaríamos de reafirmar que essa produção da morte com fim eleitoreiro é protagonizada por milícias, tanto na Baixada Fluminense/RJ, como no emblemático caso do assassinato de Marielle Franco – resguardando todos os motivos e interesses envolvidos. Enquanto na Baixada, esses assassinatos derivam da disputa entre frações de milícias e controle econômico, com Marielle derivou da combatividade e enfrentamento ao denunciar o poder das milícias em todo o aparato estatal.
“As ferramentas do sinhô nunca vão derrubar a casa-grande” (Audre Lorde)
* O levantamento de assassinatos ligados à questão eleitoral na Baixada Fluminense organizado pela IDMJR foi realizado através de pesquisa e sistematização de redes sociais e recebimento de relatos e denúncias ao longo de todo o ano de 2019 até agosto de 2020.
** Fransérgio Goulart é historiador e Coordenador Executivo da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial, e Giselle Florentino é economista e Coordenadora Executiva da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial.
Edição: Eduardo Miranda