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Novo velho continente e suas contradições: Assange e a história universal da infâmia

Além do governo dos EUA, Assange e o Wikileaks são também odiados pela indústria internacional de vigilância em massa

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O julgamento de extradição de Assange para os EUA iniciou em 7 de setembro de 2020, em Londres - Ilustração: Julia Quenzler

Qualquer que seja o resultado do seu julgamento, que se realiza em Londres, o caso Julian Assange merece um capítulo adicional da História Universal da Infâmia, pois nele estão presentes a vilania, a falta de escrúpulos e a traição de governos, homens e algumas mulheres. E é difícil não olhar para Assange como uma vítima disso tudo. Naquele livro, que muitos consideram sua obra-prima, Jorge Luiz Borges recria, através de personagens intrigantes e também infames, o que tem sido o pior tipo de comportamento humano pelo mundo afora.

Responsável pelo que os jornalistas classificam como o furo do século, qual seja a revelação dos crimes estadunidenses nas guerras do Oriente, Assange, hoje, depois de uma prisão onde teria sido torturado e quase morto, e um asilo de sete anos na Embaixada do Equador em Londres, enfrenta um julgamento suspeito que pode condená-lo a 175 anos de prisão. O que equivale a uma condenação perpétua. E arrisca-se também à pena de morte.


Julian Assange revelou ao mundo o que já se sabia, mas não se dispunha de provas: o horror humano das guerras da atualidade protagonizadas pelos Estados Unidos e seus aliados. / AFP

A principal fonte de Assange, que lhe passou as informações e as provas, num total de 750 mil documentos, também foi condenada a uma pena de 35 anos de prisão, comutados para sete anos pelo ex-presidente Barack Obama. Trata-se da soldado transexual Chelsea Manning, que hoje encontra-se em liberdade. As condições da sua prisão na base militar de Quantico foram denunciadas pela Anistia Internacional como cruéis e desumanas. Manning também teria sido submetida a torturas durante toda a sua detenção.

Depois de ganhar a liberdade pela decisão de Obama, Manning tornou a ser presa em 2017, até que não resistiu à pressão que sofreu e acabou por delatar Assange, não antes de tentar suicídio na prisão de Alexandria, na Virgínia. Ao libertar Manning, em 2020, o juiz Anthony J. Trenga disse: “A corte considera que não é mais necessária a presença da Sra. Manning diante do Grande Júri, visto que sua detenção deixou de ser útil para os propósitos de coação”.

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O caso Julian Assange, junto com o de Edward Snowden – hoje exilado na Russia – marcam a ferro e fogo os primeiros casos de “lawfare”, uma guerra contra um adversário através de truques legais, que também foi muito bem usado e bem sucedido no Brasil. O caso mais notório e emblemático foi o da prisão do ex-presidente Lula.

Outro inimigo

Além do governo dos Estados Unidos, Assange e o WikiLeaks são também odiados pela indústria internacional de vigilância em massa. Ele denunciou esse lucrativo, bilionário negócio, e comprovou que se trata de uma indústria que vende equipamentos tanto a ditadores como a democracias, para interceptar as comunicações de populações inteiras. Há empresas que vendem equipamentos capazes de registrar a localização de todos os telefones celulares numa cidade e softwares com capacidade de infectar com vírus todos os utilizadores de Facebook, por exemplo, ou utilizadores de smartphone de um setor inteiro da população. E há quem venda vírus informáticos ou outro software malicioso para ser instalado em computadores específicos, tecnologia de rastreamento por GPS e material para interceptar ligações de Internet.


Julgamento de extradição do fundador do WikiLeaks começou em 7 de setembro, em Londres / AFP/Arquivo

Os advogados de Assange queixam-se de cerceamento do seu direito de defesa, porque afirmam que não tiveram tempo suficiente para analisar as acusações e o julgamento tem claras motivações políticas. Denunciam perseguição por parte do governo dos Estados Unidos. Asseguram ser motivada pelo fato de o WikiLeaks ter revelado evidências de crimes de guerra e de violação dos direitos humanos. Embora, como já se revelou, pretenda processar Assange por espionagem e outros crimes mais graves, o governo dos EUA fundamentou seu pedido de extradição em um crime menor, qual seja tentar capturar ilicitamente o código de acesso a um computador governamental, que pode merecer até cinco anos de prisão. Trata-se de uma estratégia para conduzir um processo de mais fácil tramitação. Fundamentar a denúncia e obter a condenação por um furo jornalístico desencadearia uma corrente incontrolável de protestos e de oposição da imprensa em geral.

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Durante o governo Obama, o então procurador-geral, Eric Holder, decidiu por não acusar Assange para não abrir um precedente. Em sua opinião, acusar alguém que se diz jornalista de espionagem por ter divulgado informação verdadeira “desencadearia protestos e despertaria muitos fantasmas”. A perseguição do governo americano ao WikiLeaks já é considerada, em vários círculos profissionais, como um ataque ao jornalismo com um todo.


Julian Assange, por Instituto Tricontinental de Pesquisa Social / Reprodução

Maus tratos

A extradição de Assange para os Estados Unidos pode se realizar com graves violações dos direitos humanos, incluindo possíveis condições de detenção equivalentes a tortura e outros tipos de maus tratos. Nils Melzer, representante da ONU que visitou Assange na prisão de Belmarsh, disse, à saída, que ele apresentava sinais de que tinha sofrido tortura.

O martírio do fundador do WikiLeaks começou com uma denúncia de abuso sexual na Suécia. Este caso acabou sendo arquivado. Processado pelos Estados Unidos, pediu asilo ao Equador, de cujo presidente Rafael Correa havia se tornado amigo e refugiou-se na embaixada desse país, sem direito de sair à rua porque seria certamente preso. Com o fim do mandato de Correa e a chegada ao poder de Lenín Moreno, que apesar do nome é um político de direita alinhado aos interesses americanos, a polícia inglesa foi autorizada a entrar na embaixada e prender Assange.

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Embora tenha afirmado, em 2016, que adorava o WikiLeaks, quando este divulgou documentos contra sua rival Hillary Clinton, Donald Trump disse, recentemente, que não conhece o site nem Julian Assange, cujo destino, afirmou, não lhe interessa. Durante a campanha presidencial, Trump elogiou o WikiLeaks mais de cem vezes, segundo a contagem da imprensa americana. Mas é bom lembrar que, segundo a contagem do Washington Post, Trump já disse mais de 6 mil mentiras e tem mantido a média de 9,89 mentiras por dia. Ainda segundo o jornal, só no dia da sua posse, em 20 de janeiro de 2017, disse um total de nove mentiras. “É um ritmo alucinante”, disse o Washington Post em editorial. 

Se escrevesse hoje a sua História Universal da Infâmia, Borges certamente teria a sua disposição muitos novos e complexos personagens. Terrivelmente infames.