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Artigo| Ser mulher não é fácil, mulher negra é ainda pior

A cada 12 minutos uma mulher é vítima de violência no estado do Rio

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
As violências contra a mulher acarretam fissuras na estrutura social, aumentando a carga que as mulheres sofrem - Marcello Casal jr/Agência Brasil

Glória a Deus! Foi o grito que se ouviu no culto quando Evy contou para toda a congregação que a última bala que estava alojada em seu corpo havia sido expelida, e como foi o processo de sentir o projétil furando a pele, saindo como um expurgo. Para a Medicina, o que aconteceu não é milagre. Mas, para ela, todo dia é um milagre.

Há poucos anos, o ex-marido disparou três tiros à queima roupa, na porta do apartamento. A tentativa de matá-la foi diante da filha, então com três anos. Meses de internação, anos de tratamento para manter a vida. Dela e da filha. Por pouco, por muito pouco, Evy não morreu.

Para ela, é milagre não fazer parte das estatísticas que contam as mulheres negras como as principais vítimas de feminicídio, em que se morre por ser mulher, conforme o 15º Dossiê Mulher 2020, divulgado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP).

Mesmo apresentando redução de 12% nos casos de homicídios dolosos com comparação ao ano anterior, não há nada a comemorar. O Dossiê mostra que 1/3 das mulheres vítimas foram mortas dentro de casa. E 43,8% morreram em decorrência do uso de arma de fogo.

Não há dúvidas que a sobrevivência de Evy é, de fato, milagre. Da análise inédita feita sobre 85 vítimas, 49 mulheres tinham entre 30 e 59 anos. Evy tinha 30 anos quando sofreu o ataque. Das 85 vítimas, 58 eram mulheres negras.  Evy é uma mulher negra.

O estudo aponta que 82% das mortes foram causadas por companheiros ou ex-companheiros, como Evy. O ex-marido, assim como outros homens são motivados pelo término do relacionamento. Enxergam a mulher como propriedade. Em 15% dos casos de feminicídio, há filhos e filhas que presenciam o crime. Como a filha de Evy, que viu toda a cena.

As mortes são resultado direto dos crimes que milhares de mulheres sofrem no cotidiano. A cada 12 minutos uma mulher é vítima de violência no estado do Rio.

Em todo o Brasil, não é diferente. Muito recentemente o país se dividiu em opiniões sobre a interrupção da gravidez de uma menina de dez anos. Gravidez resultante de uma contínua violência sexual.
 
A criança vivia no Espírito Santo. Mas, poderia ser na Bahia, no Paraná, ou aqui no Rio, onde meninas de até 14 anos são a maioria das mulheres estupradas no ano passado. O grave, e cada vez mais grave é que 44% desses estupros de vulneráveis foram praticados por pessoas conhecidas. Pais e padrastos são os culpados em 18,5% dos casos.

É necessário insistir nos números, por isso, a importância do estudo. Mulheres sofrem, mulheres morrem. Mulheres são violadas e sofrem abuso psicológico, sendo diminuídas em sua existência em todo tempo. Mulheres são corpos lesionados, são corpos feridos. O atentado violento é constante. Não há segurança nem dentro de casa.

As violências contra a mulher acarretam fissuras na estrutura social, aumentando a carga que as mulheres sofrem, somos as vítimas violentadas, mas somos, também, as que trabalham para sustentar boa parte dos lares brasileiros. Somos o arrimo. Tudo mostra o quanto são frágeis, ainda, as estratégias para defender o direito das mulheres.

Evy não foi a responsável pelo atentado contra sua própria vida.

Para muitos, ainda prevalece a ideia de que a vítima provocou as agressões sofridas.

Falaram isso da menina de dez anos. Que ela, aos seis anos de idade consentiu o estupro, pelo tio, que deveria protegê-la, de acordo com os bons estatutos e documentos que temos. A verdade que sai dos números é incontestável: não é fácil ser mulher, não é fácil ser menina. É pior ainda ser mulher negra. Evy que o diga. É duro ser a filha de Evy, menina negra, que viu a mãe tombar

*Mônica Francisco é deputada estadual do Rio de Janeiro pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e foi vice-presidente da CPI do Feminicídio. 

Edição: Jaqueline Deister