Diversão e arte?

Artigo | O risco da comida pensada apenas como entretenimento

A diversão inclui também quem ordena o prato, prepara a comida, lavra a terra, lava a louça e manobra o carro?

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
"A gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte", Arnaldo Antunes - Max Jaques

Que comida é um tema de muitos significados, não é nenhuma novidade. Dos mais óbvios, como a dimensão afetiva, aos mais controversos, como a possibilidade de fazer política através dela.

O cardápio é bem maior.

Comida é também uma ferramenta diplomática. Segundo a Carta de Caminha, por exemplo, entre as primeiras ofertas feitas na chegada ao Brasil estão os fartéis, bolos-doces de consumo da tripulação. Não há grande evento diplomático que não inclua um banquete, afinal, comer amansa. 

Quando a Igreja Católica esboça a ideia de gula como pecado, a comida adquire também uma dimensão teológica. Ou ritualística, no caso de algumas das religiões de matrizes africanas.

Da mesma forma, vender comida tem diferentes significados. Se o restaurante como conhecemos surge no séc. 18, a comida de rua é vem de muito antes. Se o chef assinando cardápios remonta o fim do séc. 19, as ganhadeiras comprando alforria com suas provisões datam do século anterior.

Dos muitos significados possíveis, as últimas décadas consolidaram alguns restaurantes como um espaço de entretenimento. Espaços que frequentamos para nos divertir, celebrar, se recompensar daquele dia lascado que tivemos, porque EU MERECI !!!

E tá tudo bem, em alguma medida. Mas, há riscos na comida pensada como puro entretenimento e o principal deles é a desconexão com tudo aquilo que ela impacta.

Pautar a produção de alimento e as relações de trabalho nela envolvidas pelo nosso bel-prazer é bastante perigoso. E algumas das consequências estão aí no cardápio hipotético da imagem.

No momento em que vivemos, na era do storytelling repetido à exaustão até se tornar verdade, precisamos ser espertos o suficiente pra entender se o entretenimento inclui quem ordena o prato, quem prepara, quem lavra a terra, quem lava a louça, quem manobra os carros, quem entrega o pedido.

Precisamos entender se o “propósito” do que consumimos inclui também quem trabalha e quem fornece.

Porque, agradar cliente e açoitar o trabalhador é tão rudimentar quanto as pioneiras tabernas.

E, cada vez mais, pra uma piada ser boa e o entretenimento completo, precisa ser engraçado pra todo mundo.
 

*Max Jaques é chef de cozinha e pesquisador do Instituto Brasil a Gosto

Edição: Rodrigo Durão Coelho