"O que aparece claramente é que ele está, por motivos eleitorais, olhando para 2022", afirma Singer
A popularidade do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) aumentou em cinco pontos percentuais de junho para agosto, de acordo com o Instituto de Pesquisa Datafolha. Considerando a margem de erro de dois pontos percentuais para mais e para menos, pode não parecer um crescimento expressivo. Ainda assim, trata-se da melhor avaliação desde o início de seu mandato, em janeiro de 2019, mesmo em meio a uma crise econômica intensificada pela pandemia de covid-19.
Soma-se aos 12,8 milhões de desempregados, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a debandada de oito integrantes neoliberais do Ministério da Economia, um Ministério da Saúde sem ministro, a demissão do ex-juiz Sergio Moro do Ministério da Justiça e Segurança Pública, bem como o aceno veemente do capitão reformado ao Centrão, aquele mesmo que foi rechaçado pelo presidente durante campanha eleitoral.
Mesmo diante de todos esses fatores, o que explica os cinco pontos percentuais? Segundo André Singer, professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP), o auxílio emergencial de R$ 600 pode explicar em partes o aumento da popularidade do presidente dar as pistas para observar uma possível mudança de estratégia política e econômica visando a permanência no poder a longo prazo. Abaixo, a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: A popularidade do presidente Jair Bolsonaro aumentou em cinco pontos percentuais em agosto deste ano, segundo o Instituto Datafolha, alcançando o seu maior nível desde janeiro de 2019, quando chegou à Presidência da República. O que explica esse aumento?
André Singer: O aumento absoluto da base de apoio ao atual presidente da República não é tão expressivo assim. A pesquisa que mediu esse aumento tem uma margem de erro de dois ponto percentuais para mais e para menos. Na prática esses cinco pontos podem estar quase dentro da margem de erro que são quatro pontos percentuais, no total. Não estou dizendo que não houve aumento, deve ter havido assim, porque normalmente, apesar da margem de erro, quando se tem uma oscilação de cinco pontos percentuais, no geral, quer dizer algumas coisa. Mas também não é um aumento exponencial.
Na realidade, as pesquisas ficaram um pouco incertas, porque passaram a ser telefônicas. Mas os elementos que nós dispomos indicam que é o peso do auxílio emergencial, porque houve um aumento importante no nordeste que é uma região onde há muita presença do auxílio emergencial.
Na verdade, o que nós temos de considerar é o seguinte: o auxílio emergencial em determinadas regiões do país pesa muito, do ponto de vista de transferência monetária. Houve o cálculo da transferência de R$ 3.600 para uma pessoa chefe de família. Isso pode equivaler, em determinadas regiões do país, ao que seria R$ 20 mil em São Paulo, em termos de custo de vida. Então as pessoas estão tendo acesso a um valor monetário que permite a compra até de bens duráveis. Não é apenas de comida ou daquilo que se necessita para o dia a dia, como remédios e etc.
Portanto, o impacto sobre a vida cotidiana do eleitorado de baixa renda é forte. E ele poderia explicar porquê algumas parcelas do eleitorado de baixa renda está apoiando ou passou a apoiar o atual presidente da República, sendo que essa nunca foi a base original dele.
Agora, o auxílio emergencial não é de ontem. Começou a ser transferido para a população em abril deste ano. Se o aumento fosse uma consequência direta do recurso, o aumento da base de apoio não teria aparecido antes nas pesquisas?
Porque só três meses depois de ter começado o auxílio emergencial é que aparece o efeito? Não sei também qual é a resposta. Por vezes, pode ser mesmo a decantação de um processo que no início não era tão seguro. Talvez as pessoas não estivessem conscientes de que isso ia se repetir. É possível que a repetição tenha acabado por decantar esse efeito de apoio. Mas a gente já tinha sinais disso há algum tempo. Não é de hoje que começaram a aparecer as primeiras sinalizações de que havia uma mudança sobretudo no Nordeste.
A pandemia abriu uma oportunidade única para Bolsonaro começar a colocar em prática o Renda Brasil, esvaziando o Bolsa Família. Isso é um movimento para substituir o lulismo, o que o senhor chama de lulismo em transição? Quanto disso vem sendo planejado?
Não está claro como essa transição vai acabar. Quando falo em transição, digo que é algo que começou, mas não se sabe para onde vai. É perfeitamente possível que interrompa do jeito que está e volte para trás. Isso é muito importante porque eu não estou convencido de que vá se concluir essa transição. Mas o que me parece notável é que ela começou. Agora, eu tenho a impressão que não há propriamente um plano.
A pandemia foi algo que apareceu de uma hora para outra. Tendo começado a pandemia, os governos do mundo se deram conta, pelo grau de paralisia econômica, que eles teriam de proceder com algum tipo de transferência de renda. O Brasil fez a mesma coisa, só que no caso brasileiro, o governo começou propondo R$ 200. Foi o Congresso Nacional que elevou para R$ 500, e o presidente elevou para R$ 600 para ficar como aquele que deu a última palavra.
Aí acho que tendo percebido a possibilidade de ganhar uma nova base de apoio, fundamental para um projeto de longo e médio prazo, o governo começou a se aproveitar disso. O presidente foi para o Nordeste, visitou locais, está fazendo inaugurações, começam a surgir candidatos bolsonaristas em capitais do nordeste, e o governo então começa a falar de uma mudança de política econômica com vistas a poder se beneficiar politicamente deste efeito inesperado.
O problema é que para fazer isso, ele precisará não só manter o auxílio emergencial, mas precisará colocar esse programa de transferência de renda dentro de uma concepção de retomada da economia por baixo, como fez o lulismo. Isso definitivamente seria uma reviravolta à qual o mercado está se opondo de maneira veemente. De modo que eu acho que ele terá grande dificuldade para conseguir esse objetivo.
O desfalque recente no Ministério da Economia se relaciona com essa mudança em relação aos gastos do governo?
Esta saída de figuras do Ministério da Economia corresponde à reação do mercado nessa mudança de política econômica, o que implica evidentemente no aumento da dívida pública e em romper com o teto de gastos.
Tudo isso não está no receituário neoliberal que veio sendo aplicado de maneira muito radical desde o golpe parlamentar de 2016, com o impeachment da ex-presidenta Dilma. E o governo Bolsonaro se propõe a radicalizar ainda mais. Então claro que ele está diante de uma força importante, até porque considerando hoje o grau de globalização da economia, que funciona ligada a cadeias de produção e financeiras que dificultam mudanças desse tipo.
O que aparece claramente é que ele está, por motivos eleitorais, olhando para 2022, e sabe que o peso que isso teria caso ele fosse capaz de operar uma transformação desse tipo.
Agora, a aproximação ao Centrão e o afastamento do lavajatismo também se relacionam com essa mudança de base eleitoral, tendo como objetivo sua permanência na Presidência da República, certo?
De fato, essas coisas todas combinam. Ele fez um movimento que deu certo, que foi a aliança com o Centrão, que permitiu a ele garantir 200 votos na Câmara dos Deputados e com esses votos o impeachment não passa. Só que o preço é a perda de apoio na classe média. Nós precisamos lembrar que ele se elegeu em nome do combate à velha política, e agora ele se aliou à velha política e isso também, por sua vez, combina com o fato de que ele praticamente empurrou para fora do governo o ex-ministro Sergio Moro que era uma espécie de representante para a classe média da luta anticorrupção. Então tem aí uma virada que sem dúvida combinaria com uma mudança da política econômica.
Mas eu insisto: ele vai ter de romper com forças muito poderosas e realmente, neste momento em que a gente está conversando, não dá para saber se isso vai de fato acontecer.
E os militares, onde entram nesse movimento? Se aproxima mais do Plano Brasil, o ministro da Casa Civil Braga Neto?
De todos os aspectos da conjuntura atual, esse talvez seja o mais enigmático, porque na realidade nós não temos um quadro bem feito do que pensam hoje as Forças Armadas a respeito do que está acontecendo. O que tem se mostrado ao longo dos últimos meses é que desde desde que começou a pandemia, há uma maior participação dos militares no governo.
Os militares foram pouco a pouco se expondo mais no sentido de que essa aliança com o Bolsonaro não parece ter sido uma aliança ocasional. Aparentemente existe aí um projeto de médio e longo prazo no qual a eleição do Bolsonaro é apenas uma parte, e justamente isso seria condizente com o que se noticia na imprensa de que os militares estão apoiando medidas de investimento e infraestrutura e até mesmo essa possível mudança da política econômica.
Na realidade, seria compatível porque eles estão vendo que para pensar um projeto de País de médio e longo prazo, com essa política ultraliberal, não se vai muito longe. Na verdade, nós estamos falando muito mais de uma política de destruição do que uma política de construção.
E os evangélicos, que também é uma parte importante do eleitorado?
Sem dúvida, no momento eleitoral de 2018, o fato de o presidente ter conseguido fazer uma aliança com setores evangélicos importantes o favoreceu. Agora, de lá para cá, eu não vejo sinais de que a base evangélica seja excepcionalmente bolsonarista. Não me parece que façam parte desse setor de 15% que as pesquisas mostram como o núcleo duro do bolsonarismo. O que existe sim é uma aliança sólida com determinadas lideranças evangélicas que têm repercussão, uma audiência que a gente não pode deixar de reconhecer.
O PT, em resposta a esse crescimento do presidente Bolsonaro entre os mais pobres, jovens e eleitores do Nordeste, está preparando o programa econômico “Plano de Reconstrução e Transformação do Brasil” com foco em investimento do Estado, em contraposição ao discurso liberal do Ministério da Economia. Como o senhor vê essa resposta? E como vê a reação da esquerda diante da ascensão do bolsonarismo?
A proposta do PT está muito boa, mas o problema é que ela não tem força no Congresso Nacional para se impor. A esquerda está limitada a um setor que gira em torno de 30%, e as alianças ao Centrão estão bastante difíceis, porque uma parte está comprometida com o próprio Bolsonaro e outra parte com a agenda bastante liberal.
O problema das frente não é tanto no plano das propostas. Mas no plano da unidade, porque eu acho que vem se construindo uma unidade social muito ampla, mas não se traduz em unidade entre os partidos. O que eu acho que de fato não é fácil, porque as diferenças programáticas são muito grandes entre os setores liberais e de esquerda, mas também não se traduz numa unidade dos partidos de esquerda, por exemplo, no processo eleitoral, que seria muito importante.
Edição: Rodrigo Durão Coelho