Rio Grande do Sul

Coluna

A compulsão a educar

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Reich chamou de “compulsão a educar” ao fenômeno que compreende o exagero nas ações repressivas e frustradoras na educação das crianças - Divulgação
As pessoas estão cada vez mais deprimidas e dependentes, com menos capacidade de escolha

Muito tenho falado nesta coluna a respeito da repressão dos impulsos naturais operada no seio de nossa sociedade e de suas consequências danosas, tanto em nível comunitário quanto individual, usando como base os conhecimentos desenvolvidos por Wilhelm Reich.

A ideia de repressão costuma estar associada a impedimento ou restrição, tendo, portanto, a conotação de algo que é negado ou subtraído – neste caso, a livre manifestação e satisfação dos impulsos biológicos relativos à sexualidade ou à expressividade corporal e emocional.

Existe, entretanto, uma outra maneira de distorcer e desequilibrar a regulação espontânea dos organismos humanos, praticada no processo de criação das crianças tanto nas famílias quanto nas escolas. Ela pode passar despercebida até mesmo aos olhares mais atentos, por se tratar de uma forma mais sofisticada de interferência no ritmo biológico e por estar baseada em ações que não subtraem, mas adicionam. Estou me referindo às práticas muito comuns atualmente, inclusive nos círculos ditos progressistas, de “promover”, “acelerar”, “favorecer” por meio de métodos artificiais o desenvolvimento das crianças.

É enorme a quantidade de escolas, pedagogias, jogos e dinâmicas educativas baseadas na intenção de “ajudar” a criança a desenvolver concentração, memória, curiosidade, coordenação motora, a identificação de conceitos, a fala e até mesmo o próprio ato de andar! Todas essas, faculdades que já fazem parte do repertório orgânico da espécie humana.

Cada vez mais cedo as crianças são estimuladas a aprender informações complexas e a se tornarem independentes. Tudo isso “pelo seu próprio bem”, para que possam ter uma boa vida, se adaptar à sociedade, vencer. Paradoxalmente, as pessoas estão cada vez mais deprimidas e dependentes, com cada vez menos capacidade de escolha e auto-sustentação…

Reich chamou de “compulsão a educar” ao fenômeno que compreende o exagero nas ações repressivas e frustradoras na educação das crianças. Acho possível incluirmos neste conceito também as ações promotoras e aceleradoras do desenvolvimento, que são praticadas pelos adultos com a esperança de que as crianças “deem certo” – estas últimas ações, muito mais presentes na atualidade do que na época em que Reich viveu. Trata-se, em última análise, de um excesso de interferências por parte dos adultos com a intenção de corrigir a infância (que é vista como uma etapa selvagem, incompleta, despreparada, etc.). 

Para Reich, essas atitudes estariam baseadas em questões emocionais dos próprios adultos, quais sejam: o fato de que a liberdade expressiva e sexual das crianças atiça nos adultos os seus próprios recalques e repressões; a existência de um registro negativo no adulto com relação à sua própria infância; o medo de que a criança não se desenvolva e não se torne independente; a competição com outros pais para ver quem é o filho mais prodígio; a indisponibilidade afetiva e a falta de paciência dos adultos em relação aos tempos, aos sons, às brincadeiras e à curiosidade próprios da criança; a impossibilidade de ser espontâneo e de reconhecer a diferença entre a espontaneidade e a artificialidade, entre outros.

Em suma, diante das expressões naturais dos impulsos das crianças, os adultos são obrigados a revisitar seus próprios desejos infantis reprimidos e, nesse sentido, as crianças representam um grave perigo para a neurose dos mais velhos e precisam por isso ser “enquadradas”.

O que os adultos não percebem é que, com todo esse arsenal educativo, estão interferindo negativamente no processo de regulação e desenvolvimento espontâneos das crianças. Eva Reich – a filha de Reich – dirá que as crianças são mais felizes, se desenvolvem mais pacificamente, se tornam claras em sua comunicação, conectadas às suas emoções, não competitivas e se adaptam com facilidade às frustrações da vida se elas puderem crescer em liberdade e com suas necessidades vitais satisfeitas. Não estou falando aqui sobre não colocar limites. Mas, segundo ela, para isso, basta uma proibição acompanhada de uma explicação simples sobre seu motivo, o que só pode ocorrer se os pais e educadores estiverem sempre atentos aos motivos que os estão levando a frustrar o impulso da criança, podendo abrir mão de fazê-lo se identificarem que se trata mais de uma necessidade emocional sua do que algo que realmente represente algum benefício para a criança.

Nossa sociedade é muito engenhosa na criação de maneiras de interromper os fluxos naturais tanto dentro quanto fora de nossa espécie. Somente a fé no fato de que a vida viva é absolutamente capaz de regular a si mesma de forma saudável pode nos ajudar a evitar o colapso planetário nas próximas gerações. Mas para isso precisamos recuperar nossa própria capacidade de autorregulação...

Em tempo: “o conceito de autorregulação refere-se à competência espontânea e visceral de todo organismo vivo em busca de equilíbrio” (Evânia Reichert). As crianças já nascem competentes, basta que nós não as atrapalhemos, mas que saibamos proteger e facilitar seu desenvolvimento.

Descrição da imagem: uma fotografia que retrata um bebê sentado em uma mesa diante de um computador. Suas mãos estão pousadas sobre o teclado e ele olha para a frente. Na tela do computador tem as 6 primeiras letras do alfabeto. O bebê veste uma camisa azul. Atrás dele há uma parede cor de rosa.

Edição: Katia Marko