A exatamente dois meses das eleições para a Presidência dos Estados Unidos, a discussão em torno de regras que restringem o direito ao voto de parcela da população ganha centralidade. Entre os mais afetados, estariam negros, latinos e setores mais empobrecidos. Com data marcada para 3 de novembro, o pleito tem na disputa o candidato à reeleição Donald Trump, pelo partido Republicano, e o ex-vice-presidente de Barack Obama, Joe Biden, pelo partido Democrata.
O esforço republicano para afastar eleitores progressistas das urnas em meio à pandemia da covid-19 pode levar a uma inclinação dos votos aos democratas. Conta também a má avaliação da atual gestão no combate ao novo coronavírus, que já provocou mais de 186 mil mortes e mais de 6,1 milhões de contaminados, segundo monitoramento da Universidade Johns Hopkins.
O governo Trump vem buscando aplicar e manter políticas como o fechamento de locais onde cidadãos se registram para votar, principalmente em áreas pobres e com maioria de eleitores negros, além da aplicação de multas e exigência de documentos específicos de identificação para votar.
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Neste ano, além da cadeira presidencial, todos os 435 assentos da Câmara dos Representantes (equivalente à Câmara dos Deputados) estão em disputa, assim como as 33 vagas no Senado.
Nos Estados Unidos, diferente do Brasil, o voto não é obrigatório e os eleitores devem se inscrever para participar do pleito. As unidades federativas são autônomas e, portanto, podem desenvolver suas próprias leis sobre quem está apto para votar ou não, assim como determinar pré-requisitos e calendários eleitorais.
Segundo o ativista do movimento negro e jornalista Eugene Puryear, o processo de restrição de voto é histórico no país e tem início logo no processo de registro como eleitor. Além de enfrentar dificuldades para conseguir se inscrever, os cidadãos também esbarram em normas rígidas para manter a situação regularizada.
“Em alguns estados você pode se registrar para votar, mas se for muito tarde, só poderá [votar] na próxima eleição. Em outros estados, há um problema que é se registrar para votar, mas se você não votar em algum ciclo, será expulso das listas eleitorais”, afirma.
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Conforme exemplifica Puryear, no estado do Alabama, escritórios públicos onde ocorrem as votações foram fechados, tornando mais difícil o exercício da escolha para a população local, que é majoritariamente formada por negros e pobres.
Já no Texas, desde 2012, mais de 750 locais de votação foram fechados, segundo um relatório do grupo The Leadership Conference Education Fund. No estado, além da intensificação, a cada ano, da diminuição das taxas de comparecimento às votações, há a necessidade de deslocamento para um local de voto distante da região de residência, o que vem comprometendo a participação de eleitores em vulnerabilidade social, como os latinos.
Um outro exemplo é no estado de Ohio, onde os cidadãos são expurgados da lista de votação caso o governo identifique algum suposto erro na sua documentação. O mesmo acontece na Georgia. Porém, de acordo com Eugene Puryear, o sistema comete muitos erros com sobrenomes, por exemplo, e o cidadão pode ter seu direito ao voto suspenso mesmo sem saber.
O documento de identificação é, de modo geral, um grande gargalo no sistema eleitoral americano. No país não há um documento similar à cédula de identidade brasileira, e muitos documentos que anteriormente eram aceitos na hora do voto, como a carteirinha estudantil, foram suspensos.
Em alguns estados há ainda a exigência de uma identidade com foto, o que exclui grande parcela da população do pleito por não possuir um documento desse tipo.
Senadores do partido Republicano também defendem eliminar o último sábado da eleição antecipada. Como o pleito acontece tradicionalmente em uma terça-feira, um dia útil, muitos trabalhadores não conseguem ir aos locais de votação e costumam antecipar o voto.
“O direito de votar tem sido uma guerra de sangue na história dos Estados Unidos, onde os poderes, as elites e as classes dominantes têm feito o possível para limitar o número de pessoas votando. E as forças populares lutam democraticamente contra isso”, ressalta Puryear.
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O ativista é taxativo ao afirmar que os setores da direita, com protagonismo do partido de Donald Trump, são os mais interessados em suprimir o voto. Principalmente daqueles mais afetados pela pandemia da covid-19 e pela crise socioeconômica que atinge o país.
“Eles querem evitar que segmentos da população mais sobrecarregada [pela crise] votem contra as políticas conservadoras. Querem evitar que as pessoas negras votem o máximo possível. Que as pessoas pobres e latinas votem o máximo possível. Querem evitar o voto até mesmo das pessoas pobres brancas”, critica. “Querem ter certeza que aqueles que provavelmente votarão contra a agenda reacionária enfrentem muitas dificuldades para se registrar para votar, para achar um local e exercitar seu direito ao voto”.
Narrativas falsas
O argumento apresentado pelos políticos republicanos a favor das restrições aos eleitores é de que é preciso combater as fraudes eleitorais e votos falsos. Um mito que se fortaleceu nos últimos meses entre a direita estadunidense, segundo Puryear, que também é jornalista do BreakThrough News.
Além da divulgação de fake news pelo próprio presidente Donald Trump, há ainda a difusão de narrativas de que latinos que não são reconhecidos como cidadãos dos EUA estariam votando em grande número.
Para o ativista, o discurso em defesa da integridade do processo eleitoral tenta esconder o fato que as restrições acontecem onde a direita é tradicionalmente mais poderosa, mas também onde a população mais sentiu as consequências das políticas neoliberais republicanas na pele.
“O medo de que essa grande população e que as pessoas que geralmente não votam possam ir às urnas em maior número é o que está por trás disso. São pessoas da classe trabalhadora, pessoas da comunidade negra e latina”, afirma o ativista.
Sistema prisional
No país que mais encarcera em todo o mundo, o voto das pessoas em restrição de liberdade ou egressas do cárcere teria grande peso nas eleições. Conforme o World Prison Brief, levantamento mundial sobre dados prisionais realizado pelo Institute for Crime and Justice Research (ICPR) e pela Birkbeck Universidade de Londres, são mais de 2,1 milhões de presos nos Estados Unidos.
No entanto, estados cruciais para uma vitória no Colégio Eleitoral aprovaram medidas restritivas à votação dessa população. Na Flórida, por exemplo, onde indivíduos com antecedentes criminais ou que estavam em liberdade condicional tinham direito ao voto, parlamentares republicanos conseguiram aprovar uma lei que determinou que essas pessoas devem pagar multas judiciais para restaurar o direito ao voto como “parte da sentença”.
De acordo com Eugene Puryear, somente Vermont e Washington DC permitem que presos que ainda cumprem pena possam votar. No entanto, os que saíram do cárcere, na maioria dos estados, devem esperar um longo tempo para ter o direito ao voto restituído ou pagar para tê-lo.
As regras excluem, mais uma vez, a população negra do direito ao voto. Segundo a iniciativa Prison Policy, dos mais de 2 milhões de presos nos Estados Unidos, 40% são negros, apesar de serem apenas 13% dos habitantes do país.As restrições são aplicadas a todos que em algum momento agiram em desacordo com a lei, não importando o tipo de delito.
“Há mais de 6 milhões de pessoas nos Estados Unidos que não podem votar pela condenação de algum crime. Um a cada 13 afro-americanos perderam seu direito de votar. Em alguns estados, se você é reincidente não pode votar nunca mais, pelo resto da vida”, explica o ativista.
Ele endossa que, não por coincidência, os estados que apresentam estrições mais rígidas para os egressos são aqueles onde há mais dificuldade para o registro dos eleitores. Há ainda outro fator criticado por Puryear: apesar de não participar da votação massivamente, a população presa é contabilizada no censo que determina o número de cadeiras no Congresso e de delegados no Colégio Eleitoral.
Exclusão histórica
O ativista Eugene Puryear retoma a análise de que o processo atual não é novo e reitera que a democracia nos Estados Unidos sempre foi muito limitada. Como exemplo, ele sublinha que até 1965, a maioria das pessoas negras não podia votar no país. As mulheres, por sua vez, só tiveram direito ao voto em 1919 e o Senado só foi eleito pela população a partir de 1913.
“Desde 1787, quando se formou a Constituição e até 2020, é muito claro que os poderes que a elite querem limitar envolve o número de pessoas que votam; o que é um problema para as forças populares dos Estados Unidos. Milhões de pessoas são continuamente privadas do direto de votar em cada uma das eleições. A questão não é se a democracia está em crise. Deveríamos olhar para trás e nos perguntar: os Estados Unidos já foram realmente a democracia que dizem ser?”, questiona Puryear.
Edição: Vivian Fernandes