Texto publicado originalmente na Revista Opera.
Vijay Prashad acredita profundamente que o projeto destrutivo do neoliberalismo não é só econômico – é também cultural. Das estantes de sua casa em Deli, na Índia, saca “Operação Massacre”, de Rodolfo Walsh, “A House on the Heights”, de Truman Capote, e “Hiroshima”, de John Hersey, enquanto falo sobre a Revista Opera e conversamos sobre jornalismo e estilo. “Todo comunista é um jornalista”, diz.
Digo que seu novo livro, Balas de Washington – uma história da CIA, golpes e assassinatos (Expressão Popular, 2020) serve como uma pequena antologia sobre os crimes imperiais, com uma série de pequenos ensaios que são lidos com leveza. “Escreva um livro que as pessoas queiram ler, não um livro que você acredita que as pessoas devem ler. Essa é a premissa da minha escrita”, responde. “Não se pode ser um homem velho, sentado numa mesa, escrevendo com uma caneta tinteiro. Esses dias já se foram”. As balas de que trata são muitas, literais e metafóricas. Vão das que perfuraram o corpo de Jorge Eliécer Gaitán na Colômbia em 1948 ao financiamento dos democratas cristãos na Itália após a Segunda Guerra; da ameaça dos projéteis disparados na Bolívia, em 2019, às assertivas teses jurídicas usadas no chamado lawfare no Brasil.
Nascido no fim dos anos 1960 em Calcutá, em uma família de intelectuais nacionalistas, Prashad podia testemunhar da janela de sua casa, no outro lado da rua, a sobrevivência dos condenados da terra de uma favela indiana. Mas não se contentou em observar pelo vidro temperado. Convivendo com os pobres, temperou sua visão, e percebeu que sua vida tinha um “andamento” (tempo) diferente, como declara em uma entrevista de 2013. Jovem estudante nos anos 80, tomou contato com a literatura russa por meio dos vendedores de livro soviéticos, que exibiam as obras traduzidas em barracas e tapetes estendidos na frente das escolas. Eventualmente comprou e leu O Capital e Manifesto do Partido Comunista, de Marx, por meio dos quais pôde compreender que as boas intenções do nacional-desenvolvimentismo e espírito de caridade de seu pai não eram suficientes para alterar o rumo dos pobres do Terceiro Mundo.
Aos 53 anos, depois de se formar em História nos Estados Unidos, dar aulas no Trinity College, escrever para publicações como The Hindu, BirGun, The Guardian e Globetrotter, Prashad dirige o Instituto Tricontinental, e assina mais de 20 livros dos quais brotam, como água das minas, as lutas e o destino dos povos do Terceiro Mundo. No marco da publicação de Balas de Washington no Brasil, conversamos sobre imperialismo, a Revolução Bolivariana, os militares na América Latina, o destino da China, a situação da Europa e, é claro, jornalismo.
A entrevista segue na íntegra:
Revista Opera: Seu livro é um livro sobre imperialismo. Gostaria que falasse sobre esse conceito, porque nos anos 80 e 90, no Brasil – e eu imagino que em outros lugares também, como na Índia – alguns intelectuais começaram a argumentar que com a globalização vivíamos numa era pós-imperialista, em que a questão nacional já não desempenhava nenhum papel. Nós podemos explicar o mundo hoje sem o conceito de imperialismo?
Vijay Prashad: Antes de tudo, eu estou muito feliz de estar conversando com você, porque Índia e Brasil são lugares onde temos governos de direita. Esses governos são uma sombra dos povos que vivem em nossos países, eles não refletem o potencial dos países. O Brasil é um país com muito potencial, e eu não me refiro à economia – falo do potencial do povo. Eu passei bastante tempo no Brasil, e eu entendo a capacidade dos movimentos, visitei acampamentos do MST e vi a natureza das lutas conduzidas pelas organizações de esquerda. A capacidade e a decência desse povo não podem ser medidas por Bolsonaro.
Da mesma forma, na Índia, sou um membro do Partido Comunista da Índia (Marxista), mas não se trata só de nós, são também os camponeses, os trabalhadores, a juventude desempregada, os estudantes. As lutas levadas adiante pelo povo indiano não podem ser julgadas por [Narendra] Modi. Ele não está sequer perto de representar a capacidade dos indianos, é só uma sombra, uma alucinação – Bolsonaro é uma alucinação do Brasil, não é real, nesse sentido.
Então estou feliz de conversar com você e com seus leitores sobre essas questões. Imaginar que o imperialismo não existe é um luxo. Porque quando as pessoas me dizem que não há imperialismo mais, eu os pergunto porque o governo dos Estados Unidos, do Canadá, da Colômbia, estão tão interessados em derrubar a Revolução Bolivariana. Eles não estão só interessados em Nicolás Maduro – ele é um motorista de ônibus, um homem da classe trabalhadora e presidente da Venezuela. Eles não interessados só em derrubar ele. Se Maduro renunciasse amanhã e fosse para Havana… Não é isso que eles querem. Eles querem reverter a Revolução Bolivariana, iniciada nos anos 90 na primeira campanha eleitoral que levou Hugo Chávez à presidência da Venezuela. É isso que eles querem derrubar.
Na Bolívia, eles derrubaram Evo Morales. Mas o objetivo não era só derrubar Morales, e agora todas as evidências sugerem que não houve fraude alguma nas eleições de outubro de 2019. Nenhuma, zero, sem ambiguidade alguma. O objetivo não era portanto derrubar Morales, mas sim o que viria depois, quando o governo perseguiu o MAS e humilhou todas as suas lideranças. Por quê? Por que isso aconteceu?
O que os EUA e o Canadá dirão é que se trata de direitos humanos. “Nós vamos sustentar a democracia na Venezuela e na Bolívia, nós queremos apoiar os direitos humanos” – é isso que dizem. Se você acredita nisso, você está absolutamente louco. Se eles estivessem tão interessados na democracia, como se explica que a Bolívia não teve uma eleição por quase um ano [depois do golpe]? A próxima eleição supostamente ocorrerá em setembro de 2020. Quase um ano depois da eleição anterior! Que tipo de democracia é essa? Se estão tão interessados em direitos humanos, por que não estão gritando e esbravejando contra a perseguição do povo na Bolívia durante esse período? Não falam nada, nem uma palavra. Se tivessem tanto interesse por direitos humanos, teriam fechado a Prisão de Guantánamo. Afogamentos, câmaras de tortura secretas na Polônia, etc. Como se pode tomar essas pessoas como uma fonte credível para a discussão sobre direitos humanos?
Quando eles tentam derrubar a Revolução Bolivariana na Venezuela, não estão fazendo isso em defesa dos direitos humanos. Estão fazendo-o por duas razões muitos simples: primeiro, a razão óbvia; por recursos. Não só petróleo na Venezuela, mas por diversas matérias primas na Venezuela, incluindo metais de terras raras. Na Bolívia, foi pelo lítio, pelo índio, e uma variedade de metais de terras raras sofisticados, necessários para televisores, baterias de carro, etc. Em segundo lugar, não podem permitir o exemplo de o que poderíamos chamar de “socialismo de recursos”; um socialismo que vende seus recursos, cobra um preço justo por eles e volta isso para o povo com o objetivo de acabar com a fome, vencer o analfabetismo, ampliar o acesso à moradia e outras coisas. Se você for para a Venezuela hoje, verá os pobres morando em casas. A oligarquia diz: “Como eles se atrevem a morar em casas?!”. E é isso que querem reverter.
Então o que é o imperialismo? É a manutenção de uma ordem que beneficia uma minoria da população mundial, que garante que produtos produzidos e trabalhados nas regiões tropicais do mundo são mantidos a preços mais baixos, de forma que as corporações transnacionais continuam a ter lucros fabulosos. Isso é o imperialismo; é uma coisa relativamente simples. Uma pessoa comum, com bom senso e sensível, que se pergunte sobre as razões pelas quais os Estados Unidos querem derrubar o governo venezuelano, muito rapidamente teria de aceitar essa visão de que se tratam de recursos e de prevenir que um exemplo alternativo emerja.
Veja o caso do projeto da ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas). Tratava-se de declarar que tinham uma alternativa à globalização. Não se diziam contra a globalização. Eu cobri o grande encontro de Punta del Este, quando Diego Maradona ficou ao lado de Chávez; eles não estavam se declarando contra a globalização, mas dizendo que queriam um outro tipo de globalização; uma globalização dos povos. Não são anti-globalização; querem a globalização dos povos. Essa era a promessa da ALBA, e ela tinha de ser destruída. O que o imperialismo mais odeia é a promessa de uma alternativa. Isso é o imperialismo; sufocar a possibilidade de uma alternativa. Dizem que todos devem viver sob suas regras, e se alguém decide viver de acordo com suas próprias regras, torna-se uma ameaça. Se você desobedece as regras, tudo bem – eles podem te punir. Mas se você começa a criar suas próprias regras, nesse caso é inaceitável. O imperialismo é o uso de força extra-econômica para prevenir que outro bloco histórico emerja e crie novas regras para o planeta. Basicamente, é isso.
Claro que podemos ter respostas mais complicadas, voltar a Lênin, Samir Amin, etc. Mas eu não estou interessado em entrar em uma discussão muito técnica. Eu sei como as pessoas comuns, sensíveis e de bom senso são; se você é um chavista morando em Barquisimeto e olhando o que Washington está fazendo, você não acreditará que os ianques virão para te libertar. Você sabe que eles virão para tirar sua casa, impedir que seus filhos estudem, roubar seu modesto salário. É isso que querem fazer. E eu ouço essa mulher de Barquisimeto, obedeço a ela. Não estou interessado no que Mike Pompeo está dizendo – escuto com muito cuidado, é claro, observo-o com muito cuidado – mas eu não acredito nele. Nela, a mulher de Barquisimeto, que olha nos meus olhos e me diz: “quando os ianques vierem, nos tirarão de nossas casas”, eu acredito e digo que ela está certa. Esse é o imperialismo.
Revista Opera: As “balas” de seu livro são muitas. Algumas são literais, outras não. Nos últimos anos, no Terceiro Mundo, e especialmente na América Latina, nós vimos os chamados “novos métodos” em prática. “Golpes brandos”, lawfare, etc. Mas agora houve o golpe na Bolívia, onde os militares tiveram um papel substancial. E vemos em diferentes países os militares voltando a se aproximar da política, com o Brasil sendo provavelmente o caso mais óbvio. O que pensa sobre isso? Crê que podemos assistir ao renascimento de governos ou ditaduras militares, 50 anos depois do último ciclo de ditaduras na América Latina?
Vijay Prashad: Quando chegaram as notícias em outubro de 2019, dando conta de que a polícia pediria que Morales renunciasse… Estava já claro pra mim, que conheço a Bolívia bastante bem, que Evo ganharia as eleições. Por todas as coisas que criticam ele, em 14 anos aquele governo fez mais pelo povo boliviano que qualquer outro governo anterior. Eu desafio qualquer pessoa a me mostrar um governo anterior, qualquer um, que tenha feito mais pelo povo do que o de Morales e Álvaro García Linera. Nenhum. Mesmo os grandes críticos da ala liberal teriam que admitir.
Para mim, um governo é julgado pelo o que ele faz para combater a fome, pela educação, pelos direitos e emancipação das mulheres e o que ele faz em relação à natureza. Para mim, é só o que importa. Se um governo não ataca a questão da fome, esqueça; não me interessa. No Brasil, muitas pessoas de esquerda criticavam Lula quando ele era presidente – mas tudo o que eu olhava era ao Fome Zero. E eu percebia que, apesar de todas as concessões que ele fazia, ele estava levando o combate à fome a sério. Que tipo de mundo é esse, em que vamos ao shopping, temos internet, podemos conversar por computadores… E lá fora há crianças com fome. Essa, para mim, é a questão básica para a esquerda. A esquerda deve se focar na fome – posso soar como um liberal, ou talvez como um missionário. Mas para mim a esquerda deve se focar no problema da fome. Nós devemos construir o poder da classe trabalhadora, entendo tudo isso – li Lênin e sei de tudo isso. Mas como do ponto de vista ético a questão fundamental é: você é capaz de lutar para erradicar a fome? Em tempos de pandemia, o que estamos fazendo, como movimento, para impedir que as pessoas morram de fome? Estamos abrindo cozinhas comunitárias? Meu partido, por exemplo, criou cozinhas públicas, está distribuindo comida. Isso é supremo; você não é um ser humano se não se comove com o flagelo das pessoas esfomeadas.
E foi isso que o governo Morales atacou. Estava claro para mim, portanto, que ele ganharia as eleições.Eles roubaram a vitória dele; foi um golpe. No dia 10 de novembro de 2019, Morales vai à televisão e decide chamar novas eleições – isso é muito importante; Morales concedeu ao chamado de uma nova eleição, ainda que soubesse que nenhuma fraude aconteceu. Uma concessão gigantesca, a serviço da democracia. E duas horas depois Williams Kaliman, um militar treinado nos Estados Unidos, na Escola das Américas, vai até Morales, com uma arma no bolso, e diz que ele deve ir embora. “Sugeriu” que Morales renunciasse, e Morales renunciou – eu teria ido embora, qualquer um teria saído. Você não quer ver o banho de sangue – ele não percebeu que o banho de sangue ocorreria de qualquer forma, talvez – mas ele saiu, sob grande pressão.
Naquele momento, duas coisas ficaram claras para mim, uma política e outra pessoalmente. Politicamente, ficou claro para mim que o tipo de golpe de estado que derrubou Jacobo Arbenz na Guatemala, em 1954, e Mohammed Mossadegh no Irã, em 1953, de forma alguma desapareceu. Muitas pessoas não sabem, mas recentemente houve um golpe militar na Tailândia, e até agora há um governo militar. O velho modo de golpe militar não sumiu, sejamos claros. Não é necessário lawfare ou todos esses truques extravagantes; o velho golpe militar é o que estão tentando na Venezuela. Nós não estamos vivendo em um mundo pós-golpes-militares. Na Bolívia foi um golpe militar clássico. Vimos um golpe militar na Tailândia. Golpe militares clássicos – e pouco antes de estarmos tendo essa conversa houve um golpe militar no Mali; os militares derrubaram o governo, que naturalmente eu considerava patético. Mas no dia 22 de agosto o povo tinha se programado para protestar – no dia 18 de agosto, os militares derrubaram o governo. Veja como é interessante; quatro dias antes das massas irem às ruas de Bamako em grandes números, os militares derrubam o governo. Foi um golpe – quem os apoiou? Foi a França? A Rússia? Foram os Estados Unidos? Nós não sabemos. Nunca sabemos até que seja tarde demais. Recentemente, diversos cientistas políticos norte-americanos escreveram artigos mostrando que não houve fraude nenhuma no processo eleitoral boliviano. Um artigo foi publicado em fevereiro, outro em julho. Já é muito tarde! Com base nesses artigos, Evo Morales deveria ser restabelecido como presidente da Bolívia. Mas já é tarde demais. Quem vai restabelecer ele como presidente?
O senhor Lula. Tentei explicar um milhão de vezes o que ocorreu no caso de Lula; escrevi uma série de artigos, porque as pessoas me diziam que não entendiam o sistema judicial brasileiro. Quais eram as evidências quanto a Lula? Ele tomou posse daquele apartamento? Não! Vivia lá? Não! Quanto valia o apartamento? Um pouquinho. Quanto dinheiro rola no crime brasileiro? Um montão. Por que foram atrás dele? Mesmo que tivesse ficado no apartamento por uma noite, seria um crime tão grande, comparado ao que sabemos que ocorre? Perguntavam se ele era culpado, e eu respondia que não tinha certeza, que estavam usando algo que chamavam de “lawfare”, o uso da lei para fins políticos. Me perguntavam então como ele poderia estar preso se ele era inocente. Veja, são coisas modeladas, eles confundem as pessoas – as pessoas diziam que Lula era corrupto, o brasileiro mais corrupto do mundo. Como explicar a derrubada de Dilma? É por isso que uso o conceito de guerra híbrida. Há o imperialismo; essa é a estrutura. Guerra híbrida é a política. Na guerra híbrida há a guerra de informação, o tipo mais perigoso de guerra. “Lula é culpado” – culpado por que? O que ele fez? Onde está a evidência? “Não importa, ele é culpado”, porque se presume que ele já é culpado. “Maduro é um criminoso autoritário.” – Por que? O que Maduro fez para se tornar um criminoso? “Morales fraudou as eleições” – mas não houve fraude alguma. Guerra de informação, econômica, diplomática.
Cuba passou por isso. Tentaram de todas as formas isolar Cuba; tiraram da Organização dos Estados Americanos, etc. Eu tenho a maior admiração pela Revolução Cubana, porque é uma ilhazinha, com hoje só 11 milhões de habitantes – a cidade da minha mãe em Calcutá tem o dobro de pessoas – mas essas pessoas, a apenas 160 quilômetros da costa dos Estados Unidos, muito bravamente nunca aceitaram o que os norte-americanos diziam sobre eles. Você vê o quão difícil é para eles quebrarem a determinação do povo cubano. Isso é importante. Guerra informacional e diplomática; essas são ferramentas que, juntas, chamamos de guerra híbrida. Mas quando alguém diz que os tempos dos golpes de estado já passaram; não! Há um cenário de guerra híbrida, com uma série de instrumentos, cada um dos quais vão usando para tentar derrubar um governo; guerra econômica, informacional, etc. E eventualmente tentam usar o bastão militar.
Nada disso é novo. Em 1973 o governo de Salvador Allende foi derrubado no Chile. Em 1970 – e eu escrevo isso no livro – um golpe militar foi tentado, um general chileno se recusou a participar, e o governo norte-americano participou em seu assassinato. Em 1970! Quantas pessoas sabem desse detalhe? Eles não esperaram até 1973, eles queriam o golpe já no começo. Não se pode dizer que o imperialismo quer derrubar o governo Maduro por causa dos direitos humanos, e sabe por quê? Se esse fosse o caso, por que tentaram um golpe de estado em Hugo Chávez em 2002? Estavam tentando desde o começo derrubar a Revolução Bolivariana. Em 2002, que evidências tinham de violações de direitos humanos? Perguntaria ao senhor Mike Pompeo. Porque as evidências que tenho é que eles queriam os chavistas fora desde 1998, desde a campanha de eleição. Não é preciso esperar até o momento em que tiraram Juan Guaidó da cartola, como um coelho.
Eles não precisam de novas técnicas. “É uma nova fase, lawfare, etc.” Eles não se importam com qual técnica vão usar; por qualquer meio necessário tentarão implementar a sua autoridade. Como um motorista de ônibus ousa ser presidente da Venezuela? Como ousa um operário metalúrgico ser presidente do Brasil? Como um plantador de coca ousa ser presidente da Bolívia? É isso que eles pensam: e como ousam eles nos confrontar? Eles têm de abaixar as cabeças, não podem nos olhar no olho, pôr seus dedos em riste. Os líderes soviéticos eram todos assim; filhos de plantadores de batata. Stálin era filho de uma trabalhadora doméstica, Khrushchov tirou seu sapato, na ONU, e o bateu na mesa. Estava dizendo: “Eu sou um camponês!” O mundo é organizado para os ricos, não pode ser para essas pessoas que mal sabem falar suas próprias línguas.
Revista Opera: Você falou sobre a Revolução Bolivariana, como vários tipos de “balas” foram usadas contra ela. De qualquer forma, Maduro conseguiu resistir a essas balas, e me parece que agora que tiraram Evo da Bolívia, talvez seja a hora de se voltarem com mais força contra a Venezuela. Gostaria de saber porquê, na sua opinião, a Revolução Bolivariana consegue resistir, e quais são suas previsões sobre seu futuro nos próximos anos.
Vijay Prashad: Bom, antes de tudo, eu não faço previsões, porque nunca se sabe o que eles vão fazer em Washington. Nós estamos conversando agora, em agosto, e nos Estados Unidos haverá uma eleição em novembro; para vencer as eleições, Donald Trump pode bombardear Caracas, pode lançar bombas sobre Teerã, ou pode até ser louco o suficiente para atacar um navio chinês. Eles não bombardeariam Pequim, mas podem bombardear um navio. Não sei… Não podemos prever o que o governo norte-americano fará.
Eles recentemente acusaram o governo venezuelano de ser formado por narcotraficantes. Eu e meus colegas fomos atrás dos relatórios da Agência Antidrogas dos EUA (DEA – Drug Enforcement Administration), e nos relatórios dos últimos dez anos vemos que mais de 90% da cocaína que chega aos EUA vem da Colômbia. Nada da Venezuela; trata-se de um relatório dos EUA, não há evidência nos relatórios dos próprios norte-americanos de que a cocaína venha da Venezuela. E ainda assim, William Barr, Procurador-Geral dos Estados Unidos, diz em uma coletiva de imprensa que Nicolás Maduro é um traficante de drogas. É ridículo; você nunca sabe o que eles dirão da próxima vez, e o público em todo o mundo lerá isso e dirá “bom, então ele é um traficante”. Sério? Não há evidência. Então não posso prever nada [risos].
Mas por que eles foram bem-sucedidos [em sua defesa da Revolução Bolivariana]? No livro, escrevi sobre o jovem Che, que estava na Guatemala durante o golpe de estado contra Jacobo Arbenz. Che Guevara era uma pessoa fascinante, mas sua história também é interessante; ele está lá, convivendo com outros estrangeiros vindos de toda a América Latina, eles assistem ao acontecimento desse golpe, e ele tenta organizar alguma coisa. Eles não sabiam ao certo o que fazer; sua primeira esposa [Hilda Gadea] era uma marxista séria, que o ensinou sobre marxismo. Há histórias sobre o Che ainda antes, declarando-se marxista, mas não acho que ele tenha lido tanto até que ele a conheceu e eles estudaram Marx juntos. De qualquer forma, a experiência da Guatemala foi muito importante para o Che; ele se perguntou sobre porque Jacobo não armou o povo antes. Em Cuba, eles fizeram o Comitê para a Defesa da Revolução (CDR), um pouco antes da Baía dos Porcos, e Fidel Castro disse muitas vezes que se pode armar o povo de duas formas diferentes: a primeira forma é liberar as armas, e todos têm armas. Mas isso não é o que quer dizer armar o povo; peço desculpas aos camaradas jovens, se você simplesmente dá armas a todos pode gerar o caos. Se arma o povo ideologicamente, trata-se de uma batalha das ideias: O que você defende?
Sempre que estive na Venezuela, interagi com o povo, e te digo honestamente que é sempre muito impressionante se encontrar com trabalhadores chavistas, porque eles têm uma compreensão serena sobre o que o imperialismo quer fazer com o país deles. Maduro é bom, mas Hugo Chávez ensinou o povo muito bem, camarada. Chávez ensinou o povo muito bem; gerações aprenderam com Chávez. A primeira vez que fui à Venezuela, ele estava preso; creio que em 1994. Naquela época, o clima estava deprimente, Carlos Andrés Pérez estava de volta, tinha ido ao FMI, e o clima estava terrível. Quando houve a campanha de Chávez à presidência e ele começou a falar… Ele era um político do calibre de Gramsci; absorvia o que o povo falava e dizia de volta para o povo. O melhor político não é um gênio; é um espelho, um espelho da classe. Lênin era um espelho da classe, Chávez era um espelho da classe. Ele sabia como a classe estava pensando – a classe pensa, mas a classe é confundida. O intelectual da revolução tem de entender o que a classe está pensando e transformar isso em filosofia, provendo-a ao povo. Fidel Castro era um líder gramsciano; ele pegava o que a classe pensava, pensamentos complexos e misturados, os endireitava na cabeça e fazia um discurso de três ou quatro horas. De volta para o povo – isso é um líder. Os líderes não vêm facilmente, em nossa tradição não gostamos de falar de líderes – só gostamos de falar do povo. Mas nós precisamos entender o líder; entender que o líder é capaz de ouvir a classe, entender suas ideias, e entender a confusão que há nela, o que Gramsci chamava de consciência contraditória. Ouvem o padre, ouvem a própria experiência – tudo misturado. O líder tira o melhor disso, cria uma filosofia, faz um discurso e o povo diz “meu deus, ele está certo!”. O povo estava dizendo “Fidel, você tem razão!”, mas na verdade o que ele estava dizendo é “nós temos razão”. “Fidel, obrigado por nos lembrar sobre o que de fato deveríamos crer”. Não é como se não conhecessem a realidade, ou que tivessem uma consciência falsa – não, eles têm uma consciência contraditória, ideias misturadas. O padre que diz que você é uma pessoa má, a realidade te dizendo que você está sendo explorado; você passa a acreditar em ambas. Fidel chega e aconselha parar de ouvir o padre; você está sendo explorado – e se torna claro. Isso é liderança.
Os venezuelanos tiveram esse benefício, uma liderança que ouve eles, que fala em seu nome, que explica as coisas claramente. E a situação está clara; o caso do ataque a lanchas na costa da Venezuela, usando de forças de segurança ridículas. [A Operação Gideon] não é uma Baía dos Porcos, mas de certa forma o contrário – uma ilusão. Então por que os venezuelanos conseguem resistir ao imperialismo? Porque estão armados, não com armas, mas com a certeza da revolução. Quando Fidel fez o discurso A História me absolverá, em outubro, depois do ataque ao quartel Moncada, ele disse que se o povo anseia por algo e o conquista, nunca mais será possível tirar isso dele. Essa é a sensação que tenho com a Venezuela; as pessoas têm algo do qual nunca abrirão mão. Onde está o povo brasileiro dizendo isso? Bolsonaro…
Revista Opera: Você falou um pouco sobre as eleições nos Estados Unidos, em novembro. Eu sei que você não gosta de fazer previsões, mas algumas pessoas acreditam que se Biden vencer, o programa de Trump para o mundo será alterado… Temos jornalistas e analistas dizendo que a eleição de Biden por exemplo pode ser um baque para Bolsonaro ou para os governos de direita na América Latina. Gostaria de te ouvir sobre isso.
Vijay Prashad: É muito complicado… Estou sendo franco com você. Primeiro que não sabemos quem ganhará, porque com os Estados Unidos nunca podemos saber, é um sistema estranho, por conta dos colégios eleitorais e estados decisivos, etc., alguns estados definem as eleições – é muito complicado. Não sei quem ganhará.
Mas Biden é melhor? Se eu fosse um pobre nos Estados Unidos, Biden seria melhor pra mim, sem dúvidas. Ele vai restabelecer o financiamento para alguns programas sociais no país, que Trump cortou. O Partido Republicano e a ala de Trump no Partido Republicano é bastante dura com os pobres, e o Partido Democrata não é tão duro assim. Se você fosse uma pessoa pobre nos Estados Unidos, Biden seria melhor, sem dúvidas quanto a isso – você teria de ser tolo para dizer o contrário.
Mas se você é uma mulher em Barquisimeto, na Venezuela, não faz diferença alguma para você. Nenhuma diferença mesmo. Se você é um editor de uma revista de esquerda em São Paulo, no Brasil, você estaria fantasiando se pensasse que uma presidência Biden trataria Bolsonaro de forma diferente. No Brasil, hoje, quem é a alternativa ao Bolsonaro? A alternativa da classe dominante… Ninguém. Zero. Então o que se esperaria dos norte-americanos? Você acha que eles ligam se Bolsonaro é um bufão, se ele faz um genocídio, como a UNISaúde denunciou no Tribunal Internacional? Acha que Biden acredita nisso? Qual é a alternativa deles? Tudo volta para o fato de que, se olharmos com cuidado à questão da atitude da classe dominante dos Estados Unidos em relação à classe dominante brasileira, veremos que essa conexão está intacta. Quando Lula estava no poder, havia alguma crise em relação a isso; eles não tinham certeza. Por isso Lula escreveu a carta aos banqueiros [Carta ao Povo Brasileiro] e tudo aquilo. Agora não há alternativa para Bolsonaro – se houvesse algum sujeito como Carlos Mesa, da Bolívia, um candidato liberal da classe dominante desse tipo, a embaixada norte-americana no Brasil o apoiaria, consideraria Bolsonaro um risco, muito próximo dos militares, muito errático, bizarro, anti-gay, etc. Mas não há ninguém. O Partido dos Trabalhadores não tem esse tipo de situação agora, inclusive recentemente li um artigo no Financial Times dizendo que Lula e Gleisi Hoffmann agora estão “muito a esquerda”. Então qual é a alternativa? Não há.
O governo norte-americano, quer seja com Trump ou Biden, não tem escolha que não apoiar Bolsonaro, porque o campo pró-EUA [no Brasil] está completamente aliado a Bolsonaro. Lula, por outro lado, não está nesse campo, então não há alternativa.
Revista Opera: Você argumenta no livro que a Europa – o Espaço Econômico Europeu, o Euro, a integração – nasceu nos Estados Unidos, em Harvard. E considera-a como um braço do sistema imperialista norte-americano, creio que usa o termo “raio”. Nos últimos anos temos visto a ascensão de um nacionalismo europeu de direita, representado por exemplo no caso do Brexit. Qual é a sua visão sobre isso? Crê que há uma rachadura se formando dentro do sistema imperialista?
Vijay Prashad: Bom, não. O Reino Unido deixou o projeto europeu, mas ficou mais aconchegado com os Estados Unidos. Os países orientais da Europa que têm problemas com a União Europeia não tem problema algum com os Estados Unidos – a Polônia, por exemplo, não tem problema nenhum. Mesmo que a União Europeia fosse ser quebrada amanhã – e não acho que vá quebrar – França, Alemanha, etc., todos percebem bem o valor do que ainda resta a eles. Nenhum desses países tem uma orientação diferente da do imperialismo, o único desafio que apareceu é a promessa de integração euroasiática da China.
Primeiro, quando Xi Jinping chegou à liderança da China, há quase de 10 anos, ele reconheceu que na crise de crédito internacional, a crise econômica de 2007-2008, a China estava muito dependente dos mercados norte-americanos. Por causa disso, eles iniciaram duas políticas importantes: primeiro, a política de erradicação da pobreza na China. Porque se você erradica a pobreza, passa a produzir para seu próprio povo, não para exportação; se você provê transferências para o povo, ele comprará bens, e assim não precisa depender dos mercados dos EUA; pode criar um mercado interno. Então se eles decidiram erradicar a pobreza, talvez seja porque não gostam de pobreza – mas também significa que foram capazes de criar um mercado interno, e isso é muito importante. Hoje, em tempos de pandemia, a atividade econômica chinesa não foi tão atingida, porque são capazes de produzir para seu próprio mercado; têm um mercado enorme.
Segundo, a Iniciativa do Cinturão e Rota, uma forma de achar mercados fora dos Estados Unidos, na Eurásia, inicialmente, e também na América do Sul e África, eventualmente. Quando os chineses começaram a construir essa iniciativa, no sudeste asiático, vimos a Itália se envolvendo, os países dos Balcãs se envolvendo, etc. Então o que está de fato erodindo o consenso na Europa não é a emergência do dito nacionalismo de direita. O “nacionalismo” de direita não tem problema algum em se aliar com o imperialismo; a quebra da Europa por meio de iniciativas como o Brexit não tem elemento antimperialista nenhum; zero. Mesmo o solapamento do projeto europeu, pela Iniciativa do Cinturão e Rota, não tem necessariamente um conteúdo antiimperialista; é uma decisão prática. A Itália fez uma decisão pragmática: eles conseguirão mais economicamente se associando com essa iniciativa do que com a União Europeia. Isso não significa que o governo de direita na Itália, ou o governo liberal na Itália, se tornou antiimperialista – isso seria loucura. Trata-se de uma decisão pragmática.
Você acreditaria que se a Eslovênia se aproximasse da Iniciativa do Cinturão e Rota ela iria para a esquerda? De forma alguma. Antiimperialista, somente em sonhos. São só práticos quanto a sua sobrevivência econômica [risos]. É assim que compreendo essa quebra da Europa – primeiro, que não é uma quebra real, as principais economias, como Alemanha e França, estão intactas; segundo, que mesmo quando a Inglaterra deixa o projeto, isso não tem implicações negativas para o imperialismo. E, finalmente, se eles se associarem à Iniciativa do Cinturão e Rota, será meramente num campo prático, não político.
Revista Opera: A China tem emergido. Figuras como Kissinger pensaram que os Estados Unidos e a China poderiam chegar a algum tipo de acordo, no qual ambos se aproximariam ao invés de competirem. Me parece que ele estava errado – mas qual é sua opinião sobre o papel que a China cumpre hoje no campo internacional? Também gostaria de saber se a considera útil para a luta por independência no Terceiro Mundo, ou se ela pode cumprir um papel contrário a essa luta.
Vijay Prashad: Eu faço parte de um projeto chamado No New Cold War (Não à Nova Guerra Fria, em tradução livre). Estou envolvido nisso porque acredito que uma das maiores ameaças ao futuro do planeta é a possibilidade dos Estados Unidos levar adiante uma guerra contra a China. Seria catastrófico; o alarme tem de ser tocado, não é brincadeira. Há agora mísseis hipersônicos, coisas do tipo – uma situação muito perigosa. As pessoas não deveriam considerar isso de forma leviana, não é um jogo, e eles não estão brincando. A China tem lutado contra o imperialismo desde o século 19, Guerra do Ópio, etc. E ela foi derrotada, até humilhada. Essa humilhação tem um lugar muito importante no pensamento contemporâneo chinês, e eles não permitirão que os Estados Unidos os humilhem. Mas os Estados Unidos tentam, e isso é muito perigoso… Gostaria de dizer isso.
Quanto à China; todo governo socialista tem duas obrigações. Primeiro, a obrigação com seu povo – na União Soviética era a mesma coisa. Em segundo lugar, a obrigação com o movimento socialista. A China tem uma história complicada com o socialismo. Emergiu 1945, com uma relação tensa com a União Soviética, e vimos o que aquilo significava. A China promoveu, num primeiro período, a rebelião armada, a luta armada. E o maoísmo muitas vezes é confundido com luta armada, mas o maoísmo é muito mais do que isso.
Após a era Deng Xiaoping, a China tomou uma postura muito menos propensa a falar sobre a promoção do socialismo ao redor do mundo, falando mais sobre o direito de cada país fazer o que deseja, soberania, etc. Mas essa situação dual de um país socialista começou a mudar, como consequência dos excessos dos anos 50 e 60. No período Deng, houve um passo atrás em relação à promoção da luta armada ao redor do mundo. Uma posição correta, eu concordo com essa posição. Mas a China, desde então, tem lutado para descobrir sua posição no mundo, é perceptível. Sejamos honestos; é uma luta, uma disputa. Não se trata de um caminho claro. Depois da queda da URSS, quando o socialismo deu um passo atrás, era difícil para a China entender seu papel no mundo, algo que tomou tempo.
Agora há muita confiança. Em 2015, Xi Jinping fez um discurso marcante sobre a importância do marxismo, que recentemente, cinco anos depois, foi publicado integralmente. A China segue tendo um papel complicado no mundo; de um lado, está envolvida no comércio internacional, o que significa que quando a China compra do Brasil, o faz como qualquer outra entidade comercial. Compra soja, isso, aquilo, compra muito. Não há socialismo nisso. Mas o socialismo chinês aparece nas suas brigadas médicas, por exemplo, que são muito similares às brigadas médicas cubanas. Então há aí uma complexidade. A forma como um camponês brasileiro encontra a China, como compradora de soja… Qual é a diferença entre a China e a Cargill? Não parece ter muita, você compreende. Então a primeira coisa é que a China está lutando para identificar qual é seu papel quanto ao internacionalismo socialista. Agora nós vemos mais confiança, vemos a China falando mais sobre a importância de promover algum tipo de alternativa, o que é algo novo. Por muito tempo não vimos isso.
Então é difícil dizer qual é o papel da China hoje; não quero ser tolo quanto a isso. Mas eu gostaria de dizer que um dos papéis que ela cumpre é o comercial, compra e vende produtos, está envolvida na criação de mercados e na compra de matéria prima, como qualquer outro país. Países socialistas também têm de fazer isso – o que há de estranho nisso? A diferença é que a China também está lutando para achar a sua orientação socialista internacional. Depois do período Deng, ela tem lutado quanto a isso, e eu vejo agora uma tentativa séria de acharem um novo tipo de internacionalismo socialista. É visível em muitas de suas ações.
De um lado, está na defensiva, se defendendo contra os ataques dos Estados Unidos. Mas do outro lado, com coisas como as missões médicas, podemos ver um elemento positivo. Veremos, Pedro – é difícil ter uma resposta definitiva. Veremos. Não está claro o que o internacionalismo socialista da China significará.
Revista Opera: Mas você crê que seja possível, como Kissinger talvez sonhou, que os Estados Unidos e a China tomem essa posição de aproximação? Porque isso seria um fortíssimo golpe no movimento popular internacional. Ao mesmo tempo, os Estados Unidos nunca desistiram de sua hegemonia no campo internacional.
Vijay Prashad: Esse é um ponto importante. Henry Kissinger, que parece que não quer morrer de jeito nenhum, é um dos mais brilhantes estrategistas geopolíticos para a manutenção do poder norte-americano. Em seu livro sobre a China, que é bastante grande, um livro incrível, ele argumenta que há dois problemas euroasiáticos para os EUA: Rússia e China. E os Estados Unidos têm de fazer uma escolha; ou se alia com a Rússia contra a China, ou com a China contra a Rússia. E todo aquele livro é uma defesa da aliança com a China, contra a Rússia. Essa é a tese.
Mas não é possível. Os Estados Unidos não são capazes de pensamento estratégico nesse sentido. Porque eles acreditam que, junto da Europa, podem dominar o mundo. E essa tentativa da administração Obama, e depois da administração Trump, de cercar a Eurásia – Ucrânia, 2014; Síria, 2012; Mar do Sul da China, 2011-2012 – tudo isso aproximou a China e a Rússia, com sua cooperação militar, etc. Há algumas fraquezas nessa aliança, por exemplo a reclamação por parte da Rússia de que a China só compra energia deles, não compra produtos russos. Há esses problemas nessa parceria, não é perfeita. Mas a pressão norte-americana os aproximaram, e eu não acho que será fácil separá-los agora. Então não creio que a estratégia de Kissinger, que é uma estratégia genial… Mas agora já é tarde, Henry, está muito tarde; Obama não te ouviu, Trump não te ouviu, ninguém se importa. Vá conversar com Lúcifer, quando for pro outro lado, tenha muitos debates com Lúcifer!
Revista Opera: Eu gostaria que você falasse sobre a situação atual da Índia, porque me parece que pode ser um fator importante nesse conflito EUA-China. Recentemente tivemos aquela tensão na fronteira, por exemplo. Aqui ouvimos sobre a emergência de um nacionalismo hindu agressivo, mas também sobre os guerrilheiros naxalitas, e me parece que será um país chave no futuro, pela sua posição fronteiriça com a China e a proximidade com países importantes do Oriente Médio.
Vijay Prashad: Antes de tudo, a Índia, como o Brasil, tem um governo de extrema-direita. Um governo que, de muitas formas, é similar a Bolsonaro – não são coisas tão diferentes. Nacionalista no pior sentido. O naxalismo, ou a luta armada, se enfraqueceu muito na última década e não tem mais tanta força. Uma das razões é que não é possível combater com armas a potência do Exército e da polícia indianos, são muito sofisticados, e os naxalitas consideram a Índia como um país semi-feudal; ela não é. É um país completamente capitalista, com um Estado muito forte, e não é possível lutar contra ele com algumas armas – não estamos em Cuba em 1955 – e sim em um país de 1,4 bilhões de pessoas. Se você não tem o desejo do povo por trás de você, é impossível ir para a luta armada; é necessário construir força com as lutas de massa do povo. Então o naxalismo não se desenvolveu, falhou como estratégia.
A esquerda indiana está enfraquecida, mas nós continuamos a lutar. Qual é a agenda da esquerda? Construir a confiança das massas. Construir a confiança da classe trabalhadora; essa é nossa tarefa, nossa missão, e é nisso que estamos persistindo. Mas trata-se de um trabalho muito difícil, Pedro, e você sabe disso – é o mesmo trabalho no Brasil. Seja o PCB, o PCdoB, o MST, Consulta Popular, quaisquer que sejam as forças de esquerda, todas estão lutando para construir a confiança da classe trabalhadora contra a ideologia da classe dominante; uma luta ideológica, uma luta grande. É muito difícil essa luta. Se amanhã você decidir ir à luta armada na Amazônia, muito dificilmente você terá sucesso – será destruído em alguns meses.
Você percebe o que as FARC compreenderam na Colômbia: é necessário conquistar o povo para o seu lado. Nós devemos trabalhar em meio ao povo e conquistá-lo. Não existem atalhos para essa tarefa – não se pode fazer um putsch, um golpe de estado, luta armada. A luta armada é uma tática, não uma estratégia; a estratégia deve ser desenvolvida com o objetivo de construir a confiança da classe trabalhadora. Essa confiança pode governar o mundo. No Brasil hoje não há tal confiança – ela tem de ser construída. O mesmo na Índia, é para isso que trabalhamos, e é uma longa jornada – não há atalhos na política de esquerda. O socialismo não permite atalhos, é necessário pegar a estrada longa, o que Mao chamou de Luta Prolongada.
Revista Opera: Essa é minha última pergunta. No seu livro você é muito crítico da mídia e dos jornalistas que são “estenógrafos do poder”. Mas você também é um jornalista. Por que escolheu isso? E qual é o papel do jornalismo popular hoje?
Vijay Prashad: Pergunta fantástica para terminarmos, fantástica! Anos atrás, Eduardo Galeano disse que as pessoas não são feitas de átomos, mas de histórias. E eu concordo, somos feitos de histórias. Pedro, qual é a sua história? Vijay, qual é a sua história? Conte-me sua história. Eu gosto de ouvir as histórias das pessoas, a História é feita das histórias das pessoas, e da confiança de que minha história não é uma só, pessoal, mas uma história compartilhada. Quando uma história é compartilhada, quando você a torna coletiva, ela se torna uma teoria. E é isso que nos motiva em nosso empenho histórico.
Então se eu fosse te dizer o que significa ser um jornalista, eu diria que é representar de forma autêntica o ponto de vista das pessoas comuns, das pessoas sensíveis. Pessoas como você e eu; não somos pessoas importantes, somos pessoas que viemos do solo, acreditamos no solo, podemos sentir o solo, e queremos criar um futuro para pessoas comuns. Nós queremos contar suas histórias; análises geopolíticas enraizadas em como o povo vê o mundo. Lembra de como eu disse que Fidel conseguia ouvir o povo, fazer filosofia, e devolvê-la a ele? O papel do jornalista é o mesmo. O seu papel é ser capaz de mostrar ao leitor sensível a realidade que ele já conhece. Ajudá-lo a afiar a compreensão da realidade.
Por que gosto de Rodolfo Walsh? De John Hersey, com seu fantástico livro sobre Hiroshima? Porque eles levam o povo a sério. Não vivem só no mundo das teorias. Todo comunista é um jornalista. Por que? Porque eles ouvem o povo, e querem compartilhar o que ouviram… Você fala com essa pessoa, João Pedro, e quer dizer a Paola o que ele te disse… Você entende, estando no Brasil. Se você está na Índia, fala com Sudhanva, e quer contar a Nafeez ou Rabia o que ele disse. Você quer compartilhar a sabedoria das pessoas que lutam, porque sente que se contar a história de Quilombo Campo Grande para alguém da África do Sul, ele te responderá: “Camarada, eu conheço eles! Conheço esses camaradas no Brasil, porque passei por isso. Nós fizemos frente à polícia, camarada.” É disso que se trata nosso tipo de jornalismo.
Meu tipo de jornalismo, quando escrevo um livro como Balas de Washington, é dar às pessoas confiança de que podem fazer um futuro. Eu perguntei para o Galeano; “você escreve esse livro sobre tortura” – Dias e Noites de Amor e Guerra, que livro! – “mas você escreve de forma tão bonita. Por que?”. Perguntei quando era mais jovem. E ele me respondeu: “a pessoa torturada já foi torturada. Eu ouvi suas histórias. Por que eu deveria torturar meus leitores?” Eu pensei muito sobre isso, sobre o estilo. Por que escrever um livro sobre golpes de estado que faça você sentir que você vive dentro de uma caixa que foi fechada pela CIA? Não. Eu vou escrever um livro sobre golpes preenchido com poesia. Vou escrever o livro sobre golpes que esteja cheio da imaginação das pessoas que queriam derrotar o golpe. Meu livro sobre o golpe é um livro contra o golpe – e não só porque eu disse que é, no começo do livro – ele é contra o golpe no estilo. Se você terminar de ler o livro e se sentir deprimido, eu falhei. Meu livro deve inspirá-lo a derrotar o próximo golpe, não a se sentir deprimido. Você acha que Evo Morales está deprimido?
Quando Evo escreveu o prefácio para esse meu livro eu fiquei muito feliz, porque não há nada depressivo lá. Ele diz que nós venceremos, que não estamos derrotados. Há um marxista libanês, Mahdi Amel, que diz que enquanto estivermos resistindo, não fomos derrotados. Eu sei que nossas forças estão fracas agora, mas nós estamos resistindo. E porque estamos resistindo não fomos vencidos, e porque não fomos vencidos, nós ainda podemos fazer o futuro. Não esses Bolsonaros e Modis e pessoas pequenas. O futuro é nosso!
Edição: Mauro Ramos