Bolsonaro não mudou de posição nas últimas semanas, ele apenas não está deixando-a tão mais evidente
A fanfarronice das manhãs no Palácio da Alvorada não ganha mais as primeiras páginas dos jornais. Pelo que eu me lembro, a última vez que alguma ação do presidente Jair Bolsonaro teve destaque nesse sentido foi quando ele, por perversão, tirou a máscara em frente aos jornalistas para falar sobre sua infecção pela COVID-19.
A cientista política Suzanne Dovi fala sobre a ausência na teoria de representação para discutir tanto contextos de democracia como de não democracia. Dovi afirma que a presença na política tem três partes (frequência, voz e voto) e que a ausência também (vacância, silêncio e abstenção). A ausência pode ser involuntária ou voluntária e, enquanto voluntária, tática.
Bolsonaro não mudou de posição nas últimas semanas, ele apenas não está deixando-a tão mais evidente. Está em silêncio e ausente. Nas lives ainda podemos ver um pouco de Jair, mas não o suficiente para subir hashtags. Os motivos mais evidentes são a ameaça representada por Queiroz, a pressão do centrão, agora na liderança do governo, e a instabilidade política excessiva, em especial com a queda de braço com o STF, que o presidente cogitou ganhar simplesmente cancelando a partida, como mostrou reportagem da revista Piauí.
Contudo, o que é mais determinante dessa alteração tática é o cumprimento de sua meta estratégica: a aprovação das reformas tributária e administrativa. São essas medidas que o governo precisa garantir para que permaneça em pé. É isto que o mercado deseja e que quer o presidente da Câmara Rodrigo Maia, ativamente sentado em cima de diversos processos de impeachment – o mais recente deles, entregue pela Coalizão Negra.
Aqui temos uma confluência dos principais jogadores: parte significativa do Congresso Nacional, o ministro Paulo Guedes, fiador de Bolsonaro, os meios de comunicação, com a Rede Globo em franca campanha junto ao Instituto Millenium, os grandes investidores e a maioria dos pré-candidatos à Presidência da República.
Sobre esse assunto, tem se falado muito. O discurso adotado por esse grupo diverso, porém coeso, é que o Estado custa caro e que o serviço público não é eficiente. Em uma reportagem dessa semana no Jornal Nacional, chegou-se ao absurdo de apresentar um gráfico distinguindo o salário de servidores dos gastos com Saúde e Educação, como se fosse possível ter sala de aula ou hospital sem professores, médicos, enfermeiras etc. A saída apresentada, obviamente, é a substituição desses funcionários por contratos temporários, que ampliam o mercado para empresas prestadoras de serviço e que custam menos porque são mais precários para os trabalhadores.
O aumento recente da popularidade, como mostrou o DataFolha, pode fornecer o conforto necessário para seguir adiante. Sabemos que ter o apreço da população não é decisivo para esse tipo de demanda. Michel Temer encampou com sucesso a reforma trabalhista tendo a aprovação mais baixa da história da democracia brasileira.
O problema é que Temer não tinha forças para ser candidato à reeleição, Bolsonaro sim. E ele já realizou a impopular reforma da Previdência, cujos impactos serão sentidos daqui alguns anos. Aí entra o interesse imediato em ver render os frutos do auxílio emergencial de R$ 600,00. Para quem recebe o benefício, não ecoa tanto o argumento da oposição que o valor proposto por Bolsonaro era mais três vezes mais baixo. O que importa é o dinheiro cair, conseguir comprar comida e pagar alguma conta. Assim, a base da população tende a votar de maneira pragmática: se a vida melhorou, segue o jogo.
Vivemos tempos duros. Temos uma questão inquestionável de urgência de existência que contribuirá para sustentar a política de morte desse governo. E as mais de 100 mil pessoas que perdemos para a COVID-19 em meio a tudo isso? Bem, aqui o silêncio não é tático nem estratégico, é genocida.
Edição: Rodrigo Durão Coelho