Com o início da pandemia do novo coronavírus as operações policiais nas favelas e periferias fizeram recordes de vítimas em diversos estados do país. Em São Paulo, apenas em abril foram 102 assassinatos, o maior número em 14 anos. Em junho, os dados apontavam uma morte a cada seis horas, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública. Já no Rio de Janeiro, foram 177 óbitos no mesmo mês, 43% a mais do que no mês anterior, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP).
Por conta disso, uma liminar determinou a suspensão das ações da Polícia Militar (PM) no Rio durante a pandemia. Na primeira semana de agosto, a maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) votou a favor dela. Desde então, houve uma queda expressiva nas mortes cometidas policiais. Em junho, foram 72,5% menos mortes e 50% menos feridos em decorrência de ações ou tiroteios no período de um mês. Cerca de 30 vidas foram preservadas no período de 31 dias após a decisão liminar. Os números foram levantados pelo Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF), com base nos dados do ISP.
A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635 foi proposta no ano passado pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) e construída de modo coletivo com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DP-RJ), Educafro, Justiça Global, Redes da Maré, Conectas Direitos Humanos, Movimento Negro Unificado, Iser, Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial (IDMJR), Coletivo Papo Reto, Coletivo Fala Akari, Rede de Comunidades e Movimento contra a Violência, Mães de Manguinhos – todas elas, entidades admitidas como amicus curiae no processo.
A medida se fez urgente com o aumento da repressão policial. Com ela, o debate sobre a desmilitarização retornou à pauta e também a necessidade de compreender como seria na prática. Advogados e movimentos populares defendem que a desmilitarização faz parte de um processo de transformação de uma instituição com características militares, como a PM, para uma instituição que possua características de cidadania.
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Para que isso ocorra é necessário, além de uma decisão das próprias instituições jurídicas e de polícias, que haja compreensão e adesão da população sobre o tema que compõe o debate de uma política de segurança pública que não esteja restrita a ações de enfrentamento. É o que defende o advogado Almir Felitte. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele vê como um passo importante a decisão do STF, contudo, não acredita que esta decisão se estenda após a pandemia.
Além disso, aponta que os resultados tão precoces e já significativos reafirmam a necessidade de estender ações como essa em todo território brasileiro e de modo permanente.
“A violência policial é uma realidade que não depende desta atual situação de quarentena e nem é exclusivamente carioca. Na verdade, é um problema histórico que atingiu níveis absurdos nos últimos anos”, argumenta.
Leia a entrevista completa:
Brasil de Fato: Você acredita que essa suspensão das operações policiais pode ser levada adiante após a pandemia?
Almir Felitte: Primeiramente, acho importante que se diga que é absurdo que um ato como este só possa ter sido possível depois da provocação do Judiciário. Fica claro que a violência policial se tornou uma verdadeira política de Estado no Brasil. Por isso seria muito interessante que a suspensão de operações policiais se mantivesse para depois da pandemia e, inclusive, se estendesse para todo o país, até porque esse problema não é pontual. A violência policial é uma realidade que não depende desta atual situação de quarentena e nem é exclusivamente carioca. Na verdade, é um problema histórico que atingiu níveis absurdos nos últimos anos.
Há uma perspectiva ou, então, uma brecha para que o debate da desmilitarização da PM seja colocado na agenda do STF?
Acredito que existam dois pontos principais na decisão do STF. Primeiro, ela faz algo raro no Brasil, que é reconhecer o problema da violência policial como algo sistêmico e não apenas consequência de "laranjas podres" ou de "maus policiais", como governadores e oficiais da PM costumam justificar.
Ela reconhece a violência policial como o que ela é de fato: uma política criminosa de Estado que precisa ser abolida.
O segundo ponto é o chamamento que esta decisão faz ao Ministério Público para que ele cumpra sua responsabilidade de exercer o controle externo sobre as atividades policiais. É importante esse lembrete de que a polícia não é a única responsável por coibir a violência policial. Se ela ocorre dessa maneira desenfreada como estamos assistindo, outros órgãos de Estado também têm sua parcela de culpa, principalmente o MP, que tem o dever legal de fazer esse controle, mas pouco tem feito na prática.
Agora, não sei se isso é suficiente para dizer que a desmilitarização vá entrar na agenda do STF, mas é claro que pode contribuir em pontos importantes para a redução da violência policial, como tem feito, por exemplo, na revisão da Lei de Drogas ou na própria ADPF. A gente até pode dizer que estas mudanças apontam para um combate da cultura militarista da nossa sociedade. Mas o fim da PM em si parece ser um assunto mais legislativo do que judicial.
Como você observa a atuação das polícias em relação ao combate ao tráfico de drogas e de armas? Com a desmilitarização, como essa instituição procederia?
Quando falamos em desmilitarizar, não estamos só falando de acabar com a PM. Estamos falando de uma ampla mudança em todo o nosso sistema de segurança pública, inclusive reconhecendo que a criminalidade é um problema multidisciplinar, que pode ser causado por fatores muito diversos e tratado com diferentes "remédios". Então, desmilitarizar é abrir espaço para falar de segurança pública não só através de soluções "policialescas".
No caso da política de drogas, por exemplo, ela por si só já é um grande erro, pois trata de forma policial uma questão de saúde pública.
Ironicamente, é justamente a sua proibição que a transforma neste problema policial, que resulta em superestruturas de crime organizado e na movimentação de mundos de dinheiro em mercados paralelos e armados. Também é o proibicionismo que tem servido para justificar os inúmeros casos de violência policial em todo o país.
Felizmente, a descriminalização das drogas vem sendo cada vez mais debatida pelo mundo. Na questão do tráfico de armas, não se pode acreditar na falácia de que as operações policiais em favelas são a melhor forma para o seu combate. No Rio de Janeiro mesmo, a maior apreensão de armas da história foi realizada em um aeroporto, não em uma favela. Este é mais um trabalho de inteligência policial do que de policiamento ostensivo ou de tropas de elite.
Também vale dizer que boa parte desse combate se dá através de políticas de regulação, e o que estamos vendo acontecer no Brasil é justamente o contrário, com o Governo Federal dificultando cada vez mais o rastreamento sobre armas e munições, ao mesmo tempo em que expande de forma irresponsável o acesso ao armamento. É uma política que acaba inundando o país de armas que facilmente caem na ilegalidade. Tanto as drogas quanto as armas causam problemas que poderiam ser melhor solucionados por medidas não necessariamente policialescas, e a desmilitarização abre caminho para esse debate.
Quais as maiores dificuldades para colocar esse debate na agenda política brasileira? Existe disputa e, talvez, ameaça entre instituições para que isso ocorra ou trata-se apenas de um entendimento jurídico de que a desmilitarização não é a melhor saída?
Entre a população comum, a maior dificuldade é cultural, é o conservadorismo que parece ter ganhado ainda mais força nos últimos tempos. O discurso do "bandido bom é bandido morto" perdeu a vergonha de vez. É preciso mostrar que este discurso não resiste aos próprios fatos. Afinal, o Brasil não para de aumentar os índices de violência policial, mas onde isso nos trouxe?
A polícia tem matado cada vez mais a cada ano que passa, e a criminalidade e a violência só aumentam mais e mais, deixando claro que a intenção dessa política de Estado não é o bem-estar da população.
Também é preciso falar no histórico racismo estrutural presente no Brasil, algo que, inclusive, foi marcante no próprio surgimento das polícias brasileiras durante o período escravocrata do Império.
Já dentro das estruturas policiais, penso que a maior dificuldade é enfrentar os interesses dos altos escalões, afinal, boa parte dos baixos escalões têm defendido a ideia da desmilitarização, pois eles mesmos se enxergam como vítimas neste sistema opressivo que é o militarismo. Com o poder dessas estruturas rigidamente hierarquizadas das polícias, porém, os altos escalões dos oficiais da PM conseguem com facilidade calar os baixos escalões descontentes com o sistema militar.
Edição: Mariana Pitasse