Rio de Janeiro

ATAQUES VIRTUAIS

“As plataformas não protegem usuários porque ganham com o ódio”, diz especialista

Para Joana Varon, diretora da Coding Rights, ataques online são proporcionados pelo modelo de negócio das redes sociais

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Os ataques têm crescido e têm em comum muito mais do que a concentração das atividades online no período da pandemia - Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Com a pandemia e parte da população transferindo mais atividades e trabalho para o mundo online, se tornou comum que agendas antes presenciais passem a existir através de encontros na web. A partir da concentração dessas atividades em rede, ficaram mais evidentes os ataques de ódio a grupos já vulnerabilizados na sociedade: mulheres, negros, membros da comunidade LGBT e militantes de direitos humanos. 

Leia também: Artigo | Em busca por cliques, sites e blogs resolveram "matar" Dom Pedro Casaldáliga

Os exemplos não se contam nos dedos. Nas últimas semanas, algumas lives que debatiam temas como diversidade religiosa, racismo e feminismo foram interrompidas por ofensas. Os ataques de ódio foram registrados até na defesa online de um trabalho de conclusão de curso (TCC) de um estudante de direito da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), no Rio Grande do Sul, que tinha como tema homotransfobia.

No Rio de Janeiro, o perfil do Facebook do militante de direitos humanos Marcelo Biar também foi atacado após a confirmação de sua morte por covid-19. Os ataques foram impulsionados por fake news postadas por deputados bolsonaristas que diziam que Marcelo havia motivado uma campanha na internet chamada “força covid” quando o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) contraiu o vírus. 

Leia também: Artigo | Fake news: a disputa política por desinformação

Para Joana Varon, diretora da organização Coding Rights e fellow em direitos humanos e tecnologia pela Harvard Kenneth School (Estados Unidos), os ataques têm crescido e têm em comum muito mais do que a concentração das atividades online no período da pandemia. 

“Hoje temos perfis de pessoas reais que vão trabalhando uma rede de influência, em articulação, com uma lógica que não é só brasileira, é uma lógica da extrema-direita global”, explica a especialista, que também compõe a Coalizão Direitos na Rede, organização que trabalha para a defesa da internet livre e aberta no Brasil e tem contribuído para os avanços no texto do Projeto de Lei 2630/2020, conhecido como “PL das fakes news”, em debate na Câmara Federal. 

De acordo com Joana, os ciberataques só são possíveis porque as plataformas ganham com o ódio. “Quanto mais polêmicas, mais cliques e mais ‘bafafá’, mais gente e mais as plataformas ganham. É um modelo de negócios”, acrescenta.

Confira a entrevista completa:

Brasil de Fato: Nas últimas semanas, algumas lives que trataram sobre diversidade religiosa, racismo, questões LGBT foram atacadas com ofensas racistas, homofóbicas e preconceituosas. Como você avalia esses ataques de ódio? Por que estão se tornando mais frequentes?

Joana Varon: Os ataques estão crescendo nos últimos tempos isso é uma verdade. A Codin Rights é uma organização que trabalha bastante as pautas de gênero, em todas as suas interseccionalidades, e temos percebido também um crescimento nos ataques online. Eles alvejam feministas, representantes de movimentos negros, LGBT. Isso deixa claro que esse contexto político em que temos o Executivo governado pela extrema-direita, que promove discursos de ódio e de discriminação, isso também é passado e ratificado pelos seguidores.

Eu acredito que esses ataques estão crescendo também pela proximidade com o período eleitoral. Esse é um momento em que aumentam as polarizações políticas. Por outro lado, o inquérito do Supremo Tribunal Federal (STF) [conhecido como inquérito das fake news] está pressionando uma rede que articula ataques e está tomando medidas, como bloqueios de contas, quebra de sigilo bancário, acesso a dispositivos pessoais. Então, essa investigação está pressionando e, eu acredito, que está se diversificando e tornando ativa essa rede de ódio por outros polos. 

Estamos vivendo uma situação muito complicada em que o discurso de ódio e a violência política estão institucionalizados e, ao mesmo tempo, temos investigações que vão mostrando essa organização, mostrando que a família Bolsonaro e apoiadores também tem uma rede articulada e esquematizada para propagar esse ódio online. 

Como funcionam esse tipo de ataque em rede? Segue um padrão? Ou seja, é sempre motivado por contas de grande influência e da extrema-direita?

O Felipe Neto deu uma entrevista nos últimos dias em que ele fez uma colocação muito interessante, no sentido de que os robôs já vieram, já fizeram estrago, já saíram da centralidade da estratégia e a esquerda ainda está falando deles. Contas automatizadas não identificadas podem ser um problema, mas as análises de rede mais atuais demonstram que já se passou do ponto de pensar só em automatização, ainda que isso possa ser uma parte da discussão.

Hoje temos perfis de pessoas reais que vão trabalhando uma rede de influência, em articulação, com uma lógica que não é só brasileira, é uma lógica da extrema-direita global que vêm de táticas de desinformação. Quer dizer, eles têm uma rede articulada para produzir conteúdos e também para disseminar, de maneira tática e estratégica. 

A questão dos perfis automatizados e não identificados como tal é só uma vírgula da questão mais ampla que é realmente uma rede articulada para ódio e desinformação.

Essa rede precisa ser investigada e desmontada porque ela está promovendo discurso criminoso. Se você está sendo racista, LGBTfóbico, preconceituoso, está promovendo discursos que na legislação brasileira são considerados crimes. 

As plataformas de internet operam em um parâmetro de liberdade de expressão que é liberal, norte-americano e que, muitas vezes, é incongruente com as leis do Brasil. 

Os ataques de ódio não são exclusivos da internet, mas no ambiente online ganham espaço, se fortificam e crescem. Acredita que é pela falsa ideia de escudo que a internet possibilita?

Estamos vendo pessoas sendo atacadas, principalmente perfis de pessoas que representam parte vulnerabilizada da população, como disse, movimento feminista, movimento negro, movimento LGBT. Essas pessoas não estão tendo resposta apropriada da administração das redes sociais e ficam em um limbo: sendo atacadas enquanto os conteúdos não saem do ar. 

Sabemos que os perfis que estão se articulando em rede têm maior poder de disseminação do que os perfis que atuam de maneira orgânica e solidária. O ambiente online, nesse sentido, se torna altamente tóxico. O que a extrema-direita fica criticando, dizendo que está tendo a liberdade de expressão atacada, não faz sentido porque se você tole a expressão do outro, isso é agressão. 

O que está acontecendo é que as plataformas não estão respondendo as denúncias e protegendo os usuários, até porque elas ganham com isso.

As plataformas ganham com o ódio. Quanto mais polêmicas, mais cliques e mais “bafafá”, mais gente, as plataformas ganham. Então a gente tem o ódio no desenho da plataforma, possibilitando e até fomentando esse tipo de interação. Por outro lado, falta de resposta quando se tem ataques. Então o problema vai do desenho do modelo de negócio até a forma de resposta.

O “PL das fake news”, em discussão na Câmara dos Deputados, apresenta uma tentativa de restringir o acesso livre e a liberdade de expressão dos usuários das redes sociais como justificativa de combate às fake news e discursos de ódio nas redes. Você acredita que ele poderia ser elaborado melhor para combater, de fato, essas ações nocivas na rede ou legislação brasileira já dá conta dessas questões (se forem colocada em prática)?

Acho que devemos, sim, discutir soluções no Legislativo e no Judiciário para pressionar as plataformas por melhora. Mas essa pressão nunca pode ser feita no sentido de dar a essas plataformas mais poder do que já têm para resolver que conteúdo deve ficar ou não, sem transparência. Não podemos dar o dever de monitorar conteúdo. 

A gente pode, sim, pedir que sejam transparentes, publicando relatórios, explicando que tipo de conteúdos são tirados do ar ou não. Também abrindo canais de denúncias em que os usuários tenham interação com pessoas e seja aberto, de fato, um processo de apelação. Que seja mais claro o mecanismo de recuperação de uma conta, por exemplo. Que esses procedimentos de comunicação sejam mediados por pessoas e não formulários para preencher. 

Tudo o que trouxer mais transparência para esse processo, sem obrigar que plataformas fiquem filtrando conteúdos, mas que os consumidores tenham direito a um devido processo, dinâmico, rápido, seria um avanço para o Marco Legal da Internet [legislação já existente]. 

O que não pode é forçar que as plataformas agora tomem conta de tudo. Também não que se estabeleça um sistema de vigilância geral, de identificação de usuários, porque ai a gente passa da medida do que é necessário e proporcional para lidar com o tema e cai em outras questões perigosas para os consumidores - que dizem respeito à proteção, à privacidade, que também estão conectadas com a liberdade de expressão. 

Não pode haver rastreamento de encaminhamentos de mensagens, que para mim é uma medida de vigilância em massa, inconstitucional, além de ser ineficiente para o fim que se propõe, que é saber quem está mandando originalmente. Essa cadeia sempre se quebra. Mas pode, sim, impulsionar para mais transparência das plataformas porque elas têm um poder muito grande, inclusive manipulando nossos dados pessoais. 

Esse é um meio termo que dá para se construir mas é preciso bastante debate para que a gente não perca a mão em um projeto de lei e cause mais dano do que resolva o problema.

Edição: Eduardo Miranda