país em luto

Antes da explosão, libaneses já lidavam com crise política, diz comunidade no Brasil

Tragédia já deixou pelo menos 135 mortos e 5 mil feridos até o momento

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Forte explosão em Beirute nesta terça (4)
Forte explosão em Beirute nesta terça (4) - STR / AFP

Beirute contabilizou, até o momento, pelo menos 135 mortos e 5 mil feridos, em decorrência da explosão de supostamente 2.750 toneladas de nitrato de amônio, em um armazém do porto estatal da capital do Líbano. Um dos feridos é primo de Bruno Younes, que vive no Brasil, mas tem familiares no país do Oriente Médio.

Ele afirma que seu parente estava bem próximo do epicentro da tragédia e teve ferimentos por todo o corpo. Dois dias depois, seu primo segue se recuperando. 

“Fiquei muito assustado. Pensei que tinha sido um ataque terrorista, porque a gente sabe que o Líbano tem passado por grandes dificuldades econômicas, políticas e diplomáticas em relação a países vizinhos, principalmente com Israel”., diz Younes, que é professor de história. 

“Quando ia para a universidade, eu via um tanque de guerra na rua, eu via soldados. A gente fica acostumado com aquela realidade, por isso pensei que seria um atentado”. diz ele. A memória da guerra civil libanesa, que ocorreu entre 1975 e 1990, e os conflitos seguintes - o mais recente envolvendo o grupo Hezbollah e o Estado Islâmico, em 2011 - “não deixa a descansar enquanto os familiares não estiverem bem”, afirma Younes que voltou, da última vez, do Líbano há sete anos. 

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Crise política

Assim como analistas internacionais vêm apontando, Younes enxerga a explosão como o último elemento de uma tempestade perfeita para que uma nova guerra seja instalada no país. Além da recessão econômica, o Líbano também atravessa uma crise institucional e política há décadas.

“Grande parte da população não tem dinheiro para comprar nada. Estão passando fome. A população tem visto que a falta de responsabilidade do governo para com o povo tem sido muito grande”, afirma Younes. Para ele, isso pode estourar em uma guerra, “porque a (nossa) história ensina que população descrente com o governo faz guerra”.

Conforme dados do Fundo Monetário Internacional (FMI), o Produto Interno Bruto (PIB) libanês deve diminuir 12% em 2020, e a inflação deve chegar a 17%. A moeda libanesa, a lira, está desvalorizada em 80%. Segundo dados do início do ano do Banco Mundial, 50% da população do Líbano ficará abaixo da linha da pobreza até o fim do ano. Falta também eletricidade no país, que só chega para a população por duas ou três horas por dia.

Somado a esse cenário, bem como o aumento da população pobre em decorrência da migração de refugiados sírios e falha dos sistemas de saúde e educação, um movimento popular passou a pedir a renúncia de todos os políticos e novas eleições. Nas ruas, os manifestantes usam a palavra de ordem kulon yaeni kulon que, em árabe, significa “todos quer dizer todos”. 

O movimento já levou à renúncia do ex-primeiro-ministro Saad El-Din Rafik, filho do também ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, morto por um atentado em 2005. O governo do premiê Saad Rafik chegou a tentar a tributar ligações via WhatsApp e a utilização de redes sociais como Facebook e Instagram. 

Negligência

A narrativa contra o governo é endossada por Mohamed El Kadri, filho de libaneses, presidente da Associação Islâmica de São Paulo e coordenador da Frente em Defesa da Palestina. Sua família vive no Vale do Bekaa, a cerca de 40 quilômetros de Beirute. De acordo com seus familiares, tremores foram sentidos na região, além de nuvens amareladas em decorrência da fumaça da explosão.

El Kadri esteve no Líbano nos últimos meses para acompanhar as manifestações de rua contra o governo de Michel Aoun. “Nesse contexto, existe uma crise econômica e as pessoas estão em estado de fome, necessidade e miséria. Aí vem essa grande explosão”, afirma El Kadri. 

Para ele, o governo atual tem culpa no episódio de Beirute “porque foi feita uma denúncia há seis meses de que havia um grande risco por conta desse armazenamento do nitrato de amônio. A população está culpando o governo pela negligência que teve em relação à possibilidade de ter um incidente desse”.

Segundo El Kadri, a denúncia de que o armazém oferecia grande risco foi feita por uma equipe especializada e entregue ao governo. “O governo parece que não levou em consideração o episódio da denúncia, o risco, porque isso já se arrasta desde 2014. Tem uma determinação judicial para que o governo tomasse medidas para melhorar a situação dessa armazenagem, e o governo não tomou. Por isso que o povo está apontando para a negligência do governo em relação a isso”, afirma El Kadri.

Estado falido

Segundo o jornalista brasileiro, Tariq Saleh, que mora no Líbano há 20 anos, as pessoas estão relacionando a corrupção e a incompetência das autoridades à explosão. Para Saleh, a reação da população será assinalada como uma extensão do sentimento de insatisfação política que já vinha tomando conta do país. Entre o momento da explosão e esta quinta-feira (6) já foram registradas manifestações contra o governo de Michel Aoun. 

“O país já vem numa crise econômica muito forte, falta de infraestrutura, hospitais sucateados, lotados, por conta da pandemia também. Então falta dinheiro aqui no país. Acho que essa explosão só vai contribuir para aquela sensação de impotência da população olhando para o governo. Isso só vai agravar ainda mais esse senso de falha, de uma país que caminha para um Estado falido”, afirma Saleh.

Além da renúncia de todos os políticos, os manifestantes também pedem uma mudança na legislação eleitoral. Mohamed El Kadri explica que o poder político é dividido entre as religiões de maior expressividade no país. Então, hoje os políticos se dividem da seguinte maneira: o presidente tem de ser cristão maronita, o primeiro-ministro deve que ser muçulmano sunita, o presidente do parlamento precisa ser um muçulmano xiita. O que o movimento de rua pede é justamente a divisão do poder por religião. “Nós queremos um Estado laico”, afirma El Kadri.

Edição: Rodrigo Durão Coelho