Rio de Janeiro

Verde e rosa

Artigo | "Negro, forte e destemido": Nelson Sargento completa 96 anos

A vida do sambista Nelson Sargento se confunde com a própria história da Mangueira e do samba carioca

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Nelson é filho de Rosa Maria da Conceição e Olympio José de Mattos, casal de cozinheiros que trabalhava e morava na Tijuca - Divulgação

Quando o menino Nelson Mattos nasceu, na Santa Casa do Rio de Janeiro, em 25 de julho de 1924, os negros já estavam “livres do açoite da senzala”, mas viviam presos “na miséria da favela”, como advertiram os versos de Hélio Turco, Jurandir e Alvinho no desfile de 1988 (“Cem anos de liberdade, realidade ou ilusão?”).

Àquela época, lutando contra o preconceito das elites e a repressão do regime oligárquico da Primeira República, o samba, sem renegar seu passado rural, buscava se afirmar como expressão musical dos negros humildes que habitavam os morros e cortiços da cidade. 

De fato, desde 1870, estimulado pelos ex-escravos baianos que fizeram do Rio sua morada após a Guerra do Paraguai, o velho batuque da fazenda vinha assumindo sua nova feição urbana, bem mais melódica e sincopada. Após 1888, amplia-se a “Pequena África”, com os escravos libertos das lavouras unindo-se aos negros livres que prestavam serviços na cidade.

A eles também se somariam os soldados egressos da cruel e genocida Guerra de Canudos. Desprovidos de teto, se instalaram, sob expressa autorização do Ministério da Guerra, no Morro da Providência, na Zona Portuária, dando origem à primeira favela carioca.

Filho de Rosa Maria da Conceição e Olympio José de Mattos, casal de cozinheiros que trabalhava e morava na Tijuca, Nelson não fugiu desse roteiro.

Após a separação dos pais, ele foi viver com a mãe em um barraco alugado no Morro do Salgueiro, onde aos 10 anos se iniciou nas lides do samba, desfilando na Azul e Branco, uma das raízes dos Acadêmicos do Salgueiro - agremiação fundada em 1953. Nos anos 1930, as escolas já gozavam de certo prestígio: em 1932, o jornalista Mário Filho organizou pelo Mundo Sportivo o primeiro cortejo oficial na Praça XI. Em 1935, o prefeito Pedro Ernesto legalizou os grêmios recreativos e instituiu os desfiles de rua.

O garoto, então com 12 anos, sai do Salgueiro e vai viver na Mangueira, com Rosa e o novo companheiro, o pintor de paredes Alfredo Lourenço, que viera de Portugal e se fixou no lugar. O berço da Estação Primeira já era, desde os anos 1920, um sítio pródigo na cartografia do samba carioca, com a turma de Cartola, Carlos Cachaça, Marcelino, Zé Espinguela e outros bambas soltando o bicho no Bloco dos Arengueiros.

Não por acaso, eles recebiam amiúde a visita de Paulo da Portela, fundador da águia de Oswaldo Cruz e um dos maiores militantes da causa negra no Rio, que, junto com Mano Elói, percorria os subúrbios da Central ajudando a organizar os grupos de samba nos morros e terreiros. E também acolhiam as “embaixadas” da Deixa Falar, escola pioneira da turma do Estácio - Bide, Ismael Silva, Marçal, Baiaco e companhia.

No limiar do século, inspirada na reforma de Paris, a elite da Belle Époque buscou remodelar o Rio, tratando de expulsar os “bestializados” do centro da capital, como fez o prefeito Pereira Passos, o “Bota abaixo”, para abrir a avenida Central - atual avenida Rio Branco -, derrubando centenas de casas. A maioria dos desabrigados se alojou nos morros da região, mas outros seguiram rumo à Zona Norte e ao subúrbio (como ocorreu na década de 1960, no governo de Carlos Lacerda, com o “desterro” na Zona Oeste).

E é nesse ambiente de resistência que floresce a poesia do samba verde e rosa, cultivada por figuras como Carlos Cachaça, Cartola e Geraldo Pereira – três fontes da arte singular de Nelson Sargento.

Legado de um poeta griô

A vida de Nelson se confunde, pois, com a própria história da Mangueira. Criada em abril de 1928 pela turma dos Arengueiros, ela traz consigo todas as marcas de um século de luta e resistência pela causa do samba. E o nosso luminoso aniversariante de 96 sublimes estações se tornaria um de seus griôs, preservando e transmitindo aos mais jovens os saberes, os cantos e os mitos da nação mangueirense. 

São trilhas gloriosas, mas também adversas, que ele há de vivenciar a partir da década de 1930, em plena “era Getúlio”, em que o país supera a etapa liberal-oligárquica do capitalismo periférico e ingressa na fase corporativo-monopolista de nossa “via prussiana” de desenvolvimento. São os tempos buliçosos da “era do rádio”, com Noel, Pixinguinha, Lamartine, Chico Alves, Mário Reis, Carmen Miranda e companhia difundindo para o Brasil e o mundo um novo ícone de identidade nacional – o samba –, tal qual ocorreu na Argentina de Perón com o tango.

Contudo, isso não impedirá que seus maiores artífices, os sambistas dos morros e da periferia, sofram dissabores e reveses, sugados pela crescente indústria cultural que aqui se instalava. Como canta Sargento em  “Agoniza, mas não morre”:

Samba,
Negro, forte, destemido,
Foi duramente perseguido,
Na esquina, no botequim, no terreiro.

Ala de compositores

Sob o estímulo do padrasto amante do fado e do samba, a veia musical do jovem desabrocha com as primeiras canções ao violão. Em contato com os bambas da Mangueira, já em 1942, prestes a completar 18 anos, apoiado por Alfredo Português e Carlos Cachaça, Nelson entra na ala de compositores da escola. 

Mesmo que sua obra musical não seja marcada por sambas de enredo - fato comum entre vários baluartes da verde e rosa, como Cartola, Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, entre outros -, ele há de ser bicampeão pela Mangueira, em 1949 e 1950, assinando com Português dois hinos oficialistas - “Plano Salte” e “Unidade Nacional”. Mais tarde, em 1958, já reconhecido pelos pares, é eleito presidente da renomada ala.

Nem só de música vivem as cigarras. Para ganhar a vida, Nelson trabalhou numa fábrica de vidros, em Vila Isabel, a terra boêmia de Noel, parceiro de Cartola que ele mal pôde conhecer. Prestando o serviço militar, foi sargento do Exército de 1945 a 1949, patente com a qual se batizou na cena artística. Na época, em meio ao entusiasmo pelo fim da Segunda Guerra e sob a política de “boa vizinhança” de Tio Sam na América Latina, o samba reluzia nas telas de cinema e nos palcos de cassinos e teatros. Ainda assim, o brilho do gênero não evitou o ostracismo e a pindaíba de bambas como o próprio Cartola, que sumiu das lides musicais por duas décadas e, para sobreviver, foi até lavador de carros. 

O talento ímpar de Nelson Sargento impõe-se na virada da década de 1960, entre o otimismo dos “anos dourados” e o agudo debate estético-ideológico da intelligentsia sobre a autêntica cultura nacional-popular na era Jango.

Às vésperas do sinistro golpe que se avizinhava, a cultura explodia com o primeiro Festival do Centro Popular de Cultura (CPC) da União Nacional do Estudantes (UNE), o filme "Cinco Vezes Favela", de Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hiszman e Cacá Diegues, o Teatro de Arena de Boal, Vianinha e Guarnieri, além, é claro, de eventos marcantes do samba, cujo epicentro era o Zicartola, o lendário restaurante de Dona Zica e Cartola.

Engajado na causa da arte popular desde os anos 1950, o autor de “Agoniza, mas não morre”, um canto de exaltação à resiliência do samba, participa do musical “Rosa de Ouro” e vai integrar o conjunto “A Voz do Morro”, criado em 1965 por Zé Kéti, com Elton Medeiros, Paulinho da Viola e outros. Brilhando nas noites do Zicartola, o griô abria sua caixa de ourivesaria e começava a compor um relicário poético que inclui pérolas líricas, como “Cântico à natureza” e “Homenagem ao Mestre Cartola”, e crônicas saborosas sobre a condição humana – como a burlesca “Falso amor sincero”:

O nosso amor é tão bonito,
Ela finge que me ama
E eu finjo que acredito.

96 primaveras

De lá para cá, sobreveio uma ditadura de 21 anos, uma “Nova República” de araque e a democracia “meia boca” que fomenta a exclusão e a desigualdade social, hoje acirradas pela homofobia, o racismo e o machismo raivoso da "era Bolsonaro". Nada disso abateu o ânimo do griô, que ainda atuaria como ator em filmes e minisséries, além de abraçar as artes plásticas e as letras, expondo em mostras de pintura e escrevendo livros e crônicas, inclusive um perfil de Geraldo Pereira, lançado em 1981 pelo “Projeto Lúcio Rangel”, da  Fundação Nacional de Artes (Funarte), e um inusitado conto erótico para a revista Ele & Ela.

Se tanto não bastasse, em 1996, o poeta griô, casado com Evonete Belizario e pai, avô e bisavô de uma grande família, foi agraciado com a Medalha Pedro Ernesto pela Câmara Municipal do Rio, por sua vida dedicada à cultura. Por isso, quando ele apagou as velas do bolo no último dia 25, no Museu do Samba, os olhos de milhões de brasileiros brilharam, convictos de que a esperança, tal qual o samba, pode até agonizar, mas jamais morrerá. Evoé, Baco! Axé, Nelson Sargento! 

*Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Doutor em Estudos Literários pela Universidad de La Habana. Coordenador do Acervo Universitário do Samba, ele é autor de Noel Rosa: Poeta da Vila, Cronista do Brasil e das biografias de Aluísio Machado, Zé Katimba e Rosa Magalhães.

Edição: Mariana Pitasse