O Brasil já acumula 90.134 óbitos e um saldo de 2.252.255 contaminados pelo coronavírus até a última quarta-feira (29). O país segue atrás apenas dos Estados Unidos em número de casos e mortes da covid-19 em todo o mundo. Nos últimos meses, vários estados brasileiros iniciaram o processo de flexibilização do isolamento social. Aos poucos as atividades estão sendo retomadas dentro do chamado “novo normal”. Mas será que o momento é oportuno para afrouxar a quarentena?
As dúvidas a respeito da covid-19 são muitas. Em busca de respostas, o Brasil de Fato conversou com Marcelo Gomes, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e coordenador do InfoGripe, que monitora os casos de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) no país. A pesquisa apontou, em seu último boletim semanal de 23 de julho, uma “segunda onda” de SRAG em quatro estados, entre eles, o Rio de Janeiro. De acordo com Gomes, o momento aciona um sinal de alerta, pois o aumento da síndrome está associado ao avanço da covid-19 no Brasil.
“Temos que ter cuidado, se a retomada for rápida e intensa, pode levar a uma situação de alta taxa de ocupação nos leitos. Precisamos de um monitoramento constante, porque quando a gente flexibiliza teremos umas duas semanas até observar o efeito na internação, pois é o tempo médio da pessoa se infectar e desenvolver sintomas graves o suficiente para necessitar da internação”, explica.
Além disso, uma outra preocupação é a metodologia usada pelo Ministério da Saúde e secretarias que nem sempre trazem o panorama da real situação de casos e mortes ocasionados pela covid-19. "O consórcio dos veículos de imprensa e os próprios dados oficiais das secretarias e Ministério [da Saúde], em geral, trabalham com o que já foi digitado e têm o problema desses dados recentes estarem incompletos", completa.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Os últimos dados do boletim InfoGripe apontam que estados como Amapá, Rio de Janeiro, Ceará e Maranhão estão em uma "segunda onda" da síndrome. Qual a relação da SRAG com a covid-19?
Marcelo Gomes: Temos observado que desde março, quando se estabeleceu a transmissão comunitária da covid-19 no Brasil, que os casos de SRAG em todo o território nacional passaram a ter um perfil bastante distinto do que vinha tendo até então. O que víamos historicamente era um volume muito grande em crianças pequenas, na faixa de 0 e 4 anos, e depois um volume importante em adultos de idade avançada, com 60 anos ou mais.
Neste ano, a partir de meados de março, passamos a observar uma redução relativa do número de casos em crianças pequenas. Continua tendo bastante caso, mas quando a gente olha em comparação com o total, essa proporção diminuiu e passou a aumentar bastante a proporção de casos em jovens adultos na faixa de 30 anos em diante, sabemos que nessa faixa etária há um predomínio enorme de casos de covid-19.
Outro ponto que nos permite fazer essa inferência da associação da covid-19 com a SRAG é quando analisamos o total de casos de SRAG. Aqueles que já tiveram resultado laboratorial positivo para algum vírus respiratório, porque nessa vigilância uma série de vírus respiratórios são avaliados, entre eles o Sars-Cov-2. E o que vemos hoje?
Entre os que já tiveram resultado positivo para algum vírus respiratório, 96% deram positivo para o novo coronavírus e, dentre os óbitos, esse percentual sobe para 99%. Isso mostra muito forte essa relação entre a covid-19 e a SRAG.
A chamada “segunda onda” está associada ao processo de flexibilização vivido nos estados?
Tem vários fatores que podem estar influenciando, a gente ainda não tem condições de afirmar categoricamente o que está levando a esse possível cenário de inversão da tendência, pode ser ainda um efeito de interiorização - um aumento significativo no interior, enquanto a capital permanece em queda -, mas pode ser também a questão de flexibilizações nos principais centros urbanos. A terceira hipótese é que seja uma combinação desses dois fatores, que também é bastante provável, uma coisa que a gente está trabalhando.
Para a gente poder afirmar com precisão, requer uma análise que estamos começando a fazer agora que é, justamente, olhar esses mesmos dados e aplicar as mesmas técnicas estratificando por capital e interior. Olhar macrorregionais de saúde para poder também identificar dentro do estado como é que está a situação em diferentes regiões, porque sabemos que pode sim ter evolução.
O estado do Rio de Janeiro e seus municípios têm avançando cada vez mais no processo de retomada das atividades. Na sua avaliação, este é o momento adequado para a reabertura?
É um tema complexo, mas do ponto de vista puramente epidemiológico, que é o nosso olhar enquanto pesquisador de saúde pública, esse movimento preocupa. Primeiro porque sabemos que só conseguimos chegar neste período de queda porque aderimos ao distanciamento social, não foi a evolução natural da circulação do vírus que levou a essa queda.
Chegamos em uma fase de queda porque a gente se distanciou, então dificultou a transmissão do vírus.
Não basta os números estarem caindo, tem que ter uma desocupação significativa dos leitos hospitalares. Na capital do Rio tem se observado essa redução, só que temos que lembrar que a medida que a gente começar um processo de retomada há o crescimento do número de novos casos. Isso vai, de novo, sobrecarregar o sistema hospitalar, porque sabemos que os casos de covid-19 têm demandado um período relativamente longo de internação, mais longo do que outras causas respiratórias.
Temos que ter cuidado, se a retomada for rápida e intensa, pode levar a uma situação de alta taxa de ocupação nos leitos. Precisamos de um monitoramento constante, porque quando a gente flexibiliza, teremos umas duas semanas até observar o efeito na internação, pois é o tempo médio da pessoa se infectar e desenvolver sintomas graves o suficiente para necessitar a internação.
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Qual a metodologia usada nos estudos para apontar a aceleração ou desaceleração da covid-19 nos estados?
Usamos um método estatístico que leva em conta o padrão do histórico de atraso em cada estado especificamente e, para diminuir o efeito do ruído, em cima dessa estimativa, fazemos uma média móvel de três semanas. Ou seja, para o dado da semana 28, a gente toma média para a estimativa das semanas 27, 28 e 29. Isso nos permite observar se está em tendência de queda, crescimento ou estabilização sem sofrer com as oscilações naturais. Mesmo durante o período de crescimento ou na fase de queda é comum de uma semana para outra ter uma leve oscilação e usar a média móvel facilita a identificação dessa tendência.
Hoje temos um grande número de análises que são apresentadas na mídia, todas têm como base uma metodologia em comum?
Infelizmente não. Essa questão de fazer a estimativa de casos recentes usando a data de primeiros sintomas como a data de referência dos casos, isso é algo que nós [do InfoGripe] temos utilizado, alguns outros grupos de pesquisa com os quais a gente colabora também.
O consórcio dos veículos de imprensa e os próprios dados oficiais das secretarias e Ministério [da Saúde], em geral, trabalham com o que já foi digitado e tem esse problema desses dados recentes estarem incompletos.
Outra dificuldade que a gente as vezes enfrenta é que, embora eu ache ótima a iniciativa desses grupos por popularizar a informação, sinto falta de uma clareza em relação ao critério que está sendo usado para a análise. Primeiro, qual é a data de referência? É a data dos primeiros sintomas? De notificação? Ou é a data de disponibilização? Porque isso muda tudo e tem um impacto enorme na interpretação daquela informação. O fato de não estar transparente é um complicador e apenas quem sabe que isso é um complicador é quem trabalha com o dado.
Uma das maiores dificuldades previstas no chamado "novo normal" é a retomada das aulas em escolas e universidades. Para o estado do Rio, a Fiocruz emitiu um alerta de que a volta às aulas era prematura e poderia ocasionar a morte de três mil pessoas. De acordo com a evolução da doença é seguro uma retomada antes da vacina?
Do ponto de vista epidemiológico é muito preocupante. Sabemos que os ambientes escolares, de ensino em geral, são extremamente eficazes para a disseminação de vírus respiratórios. A gente sabe que é baixo o risco de crianças desenvolverem casos graves, mas elas transmitem tão bem quanto. Quando temos a retomada das aulas nesses diversos ambientes de ensino, são ambientes fechados. São várias pessoas que estarão compartilhando aquele ambiente por um longo período de tempo. São pessoas potencialmente das mais diversas áreas do município e isso é uma espécie de caldeirão porque são pessoas de vários locais, cada uma com o seu núcleo familiar próprio que vão se encontrar no mesmo local com alta interação, se expondo por um longo período de tempo.
É como se fosse um centro de distribuição que vai levar para o seu ambiente familiar e daí pula para outros locais. É um efeito dominó.
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Qual a recomendação para a população que estiver tendo que aderir ao "novo normal"?
Lembrar que o problema ainda não acabou e a consequência é que temos que manter o cuidado. Usar máscara e não só quando eu estou na rua, se o meu ambiente de trabalho é compartilhado, é importante manter o uso da máscara, é a cadeia de transmissão que é o problema. Para quem está saindo, seja porque precisa por conta do trabalho ou porque precisa por conta de saúde mental, tentar evitar os horários de pico e pegar o transporte público nos horários menos movimentados.
Fazer a higienização das mãos, porque a gente vai pegar o transporte coletivo, colocar a mão no corrimão, roleta e todas essa interações são maneiras de se infectar. Antes de entrar no transporte, passar álcool em gel para não correr o risco de você transmitir o vírus, caso esteja com ele. Ao sair, passar o álcool em gel porque se não está infectado, pode ter se exposto ao vírus. Evitar tocar o rosto após esses momentos e priorizar sair com quem divide a casa para minimizar a exposição.
Edição: Mariana Pitasse