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O descaso do judiciário brasileiro na pandemia: o drama dos despejos em meio à covid

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Promover ações de despejo em períodos de completa anormalidade, além de violar direitos humanos, viola também orientações sanitárias, expondo os cidadãos a um risco desnecessário, cruel e desumano - Antonio Silva / Agência Pará
Impedir que os despejos aconteçam é medida imperativa de humanidade e solidariedade ao próximo.

Por Letícia Souza e Williana Soares*

Começo me perguntando: Quais vidas devem ser protegidas? Sobre quem recai o dever de proteção do Estado? E o judiciário, até quando vai continuar sendo omisso e violando o direito básico à vida, à saúde e a moradia?

Desde março de 2020, as pessoas vivem sob a ameaça de contágio do novo coronavírus, o que tem levado os Estados e Municípios a adotarem medidas rígidas de isolamento social, incluindo a suspensão das aulas, o fechamento de comércios que não englobam atividades essenciais e até mesmo o uso constante de máscaras, em ambientes abertos ou fechados.

Não tem sido diferente nas estruturas do judiciário brasileiro, estabeleceu-se regimes de plantão e suspensão do andamento processual, hoje apenas limitado aos processos físicos, com a finalidade de proteger os servidores e magistrados. Mas ao que parece, aqueles que dependem de uma tutela jurisdicional não possuem o mesmo direito, ou será que a proteção estatal não reserva o mesmo cuidado a esses indivíduos?

Num contexto em que a iminência de contaminação assola a grande maioria da população, inclusive que a nega com forte veemência, o país já soma mais de 80 mil mortes contabilizadas, e em meio a toda a campanha de isolamento, distanciamento e prevenção, somos surpreendidos pela preocupação do Estado, que por meio do poder judiciário têm protegido a propriedade e não a vida, mesmo em tempos de pandemia. 

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Promover ações de despejo em períodos de completa anormalidade, além de violar direitos humanos, viola também orientações sanitárias, expondo cidadãos e servidores do estado a um risco desnecessário, cruel e em certa medida desumano. Coloca em risco a vida de crianças, idosos e muitos outros ocupantes, aprofundando ainda mais a crise econômica, social e sanitária em que estão submetidos.

Em total desamparo ao dever de proteção, o Estado, os Tribunais e até mesmo o Conselho Nacional de Justiça, depois de serem provocados pela necessidade de suspensão do cumprimento das reintegrações de posse, deixou a cargo dos juízes a análise a partir de cada caso concreto. Isso vem  culminando em decisões diversas, em vez de enfrentar a temática de forma coletiva, protegendo a inúmeras vidas com a suspensão temporária dos cumprimentos de reintegração, como demanda o atual momento.

Sejam grandes ou pequenas, urbanas ou rurais, a legitimidade dos conflitos coletivos pela posse perpassa pelo cumprimento da função social da propriedade, sendo a posse, um instituto jurídico previsto na legislação e garantido constitucionalmente. 

A crise sanitária e o consequente aumento do número de desempregados, evidencia o nível de desigualdade social e obriga a procura por medidas alternativas quando não é mais possível arcar com o pagamento de um aluguel. 

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Os estados de São Paulo e Goiás foram os pioneiros em violar direitos humanos durante o período de Pandemia, incluindo agora o Estado de Minas Gerais, com iminente desocupação de área urbana na capital e área rural, na região sul, envolvendo um número aproximado de 800 famílias. 

A condição de vulnerabilidade associada com a necessidade de isolamento parece não ser suficiente às autoridades, ignorando o fato de que a maioria destas famílias hoje, dependem de doações até mesmo para se alimentar.

As campanhas de solidariedade tem sido o mote central nesse momento, o que se faz necessário nos tempos adversos em que vivemos. Todavia, enquanto a propriedade for um direito sobreposto a vida, não poderemos avançar enquanto sociedade munida de elementos, argumentos e atos que façam valer o estado democrático de direito que tanto é invocado, porém, na prática temos um estado com direitos garantidos a alguns e que ainda engatinha na trajetória de se forjar democrático de fato.

A omissão e o descaso com as ocupações urbanas e rurais sempre foram constantes, sobretudo, no que diz diz respeito à criminalização dos movimentos sociais que atuam na organização coletiva de uma camada da população que sobrevive à margem, sem acesso à políticas públicas. 

A burocratização dos programas habitacionais ainda é empecilho para o acesso de um grande contingente populacional, tendo que optar muitas vezes, por garantir o dia de trabalho em vez de participar de inúmeras reuniões que lhe dariam acesso à moradia digna. Entre a cruz e a espada, alimentar-se é sempre a prioridade. 

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Num momento em que uma das maiores ferramentas de combate a propagação da covid-19 é a higienização constante das mãos e demais superfícies, é notório o fato de que a nível nacional grande parte dos bairros periféricos, principalmente nas grande capitais do país, sofrem com o desabastecimento de água ou a intermitência no fornecimento deste serviço. Essa é apenas uma das mazelas que afetam as periferias dos grandes centros e também em algumas regiões as áreas rurais do nosso país, a quais foram entre outras mais, evidenciadas neste período de pandemia em que estamos a vivenciar. 

Ainda nesse contexto, o saneamento básico nas áreas periféricas é uma demanda que já se tem conhecimento a pelo menos 30 anos no país. Dessa forma, pensemos, a prevenção se dá por meio da higienização básica, que por sua vez é viabilizada através do fornecimento de água, e esse não é acessível a população que reside em áreas de ocupação, isso faz com que essa população encontre-se em desvantagem no acesso às medidas de enfrentamento a pandemia. 

No mesmo contexto, temos toda a problemática gerada em torno da não efetivação e garantida de saneamento básico que expõe esses moradores e moradoras a inúmeras possibilidades de contágio, uma vez que esse não tem o devido tratamento e seus resíduos em muitos casos, estão expostos a céu aberto como ocorrem nos espaços onde se constituíram as ocupações urbanas ou ainda as áreas localizadas nas regiões mais extremas das comunidades periféricas. Em que medida somos de fato iguais perante o estado? Em que medida são vistos? Lembrados? A proteção da dignidade humana desses sujeitos e sujeitas de direitos está sendo garantida de forma coerente?

Numa outra perspectiva temos a questão do transporte público, os decretos que foram sancionados de forma a conter a disseminação da covid-19 não atendem as especificidades da maioria esmagadora de trabalhadoras e trabalhadores que os usam para se locomover, e o que deveria funcionar de forma a garantir o isolamento, propiciou inúmeros casos de superlotação, uma vez que o público que reside nessas áreas trabalha diariamente. Muitos desses trabalhadores e trabalhadoras, inclusive, contam com os recursos advindos pelo dia trabalhado para a subsistência individual ou ainda familiar.

Impedir que os despejos aconteçam é medida imperativa de humanidade e solidariedade ao próximo. Não obstante, mesmo que tais pessoas possuem legitimidade para discutir em juízo a sua posse, trata-se de entender que o momento exige cuidado, e assim como os servidores públicos, magistrados e inclusive colegas advogados e advogadas, dentre tantas outras categorias, bem como os moradores e moradoras de ocupações urbanas e rurais, devem ter seu direito à saúde garantido.

Nesse sentido, invoca-se o princípio da equidade, para que assim, possamos tratar de forma isonômica cidadãos e cidadãs, pois como diz o Boaventura de Souza Santos, iguais na medida de sua igualdade e desiguais na medida de suas desigualdades, promovendo justiça social, o direito constitucional à vida e a não violação da sua dignidade enquanto pessoa humana. Atuando de forma coerente com os Pactos Internacionais, entre eles a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

 

*Letícia Souza – Advogada, integrante do Setor de Direitos Humanos do MST e membra da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia.

*Williana Soares - Acadêmica de Direito na Universidade Federal do Paraná e setor de DH/RN. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho