Desde o dia 1º de julho, proprietários e inquilinos vivem expectativas diferentes com relação a uma nova lei que entrou em vigência reformulando os aluguéis na Argentina. A lei 27.551 teve impacto positivo entre inquilinos – só na cidade de Buenos Aires, cerca de 40% das pessoas alugam para morar, segundo dados de organizações e de uma pesquisa de 2019 do Instituto de Moradia da Cidade (IVC).
Desde o início da quarentena, o avançar dos meses se refletiu em uma crescente dificuldade dos inquilinos em pagar os aluguéis. Uma pesquisa do Inquilinos Agrupados revela que, em todo o país, 49% dos inquilinos não pôde pagar o aluguel de junho e que 67% da população está endividada ou recebe ajuda familiar para arcar com os custos de vida.
Diante de um mercado imobiliário dolarizado em um país com profundos problemas de inflação e uma crescente população em situação de rua ou em moradias precárias, a emergência habitacional levanta a questão: como o acesso à moradia impacta o habitar a cidade?
Melhores condições para alugar
Os principais pontos que a nova lei estabelece respondem a uma série de questões que representavam incerteza e insegurança ao inquilino: o aumento do contrato para três anos – até então, era dois. O depósito de garantia exigido do inquilino é limitado ao valor equivalente ao primeiro mês de aluguel; e o índice de atualização do valor do aluguel, agora ajustado uma vez ao ano com considerando a inflação e a variação salarial
Este último ponto é particularmente importante em um país com tamanha inflação como a Argentina. Desde a década de 1970, o mercado imobiliário foi dolarizado no país. As vendas de imóveis são realizadas na moeda estrangeira e, muitas vezes, o depósito para aluguéis também são exigidos nela.
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"Os proprietários estão acostumados a ter uma rentabilidade de, em média, 1%. Hoje, a rentabilidade caiu notavelmente em dólares, que é o parâmetro da Argentina, e está em 0,2%", afirma o corretor de imóveis Cláudio Faiman, que, há 40 anos, trabalha na zona de Once, tradicional bairro da capital de Buenos Aires que concentra uma grande população migrante, comércios populares e ambulantes. "Culturalmente, o dono da propriedade entende que pode e deve impor as condições ao locatário. Que haja uma lei com essas características, com cláusulas interessantes ao locatários, de alguma maneira modifica essa correlação e percepção do vínculo entre as partes."
Ainda que a relação entre inquilinos e proprietários tenha melhoras, a exclusão se dá em diferentes níveis, e inclui a dificuldade de migrantes de acesso ao emprego, de benefícios sociais e de atravessar a própria burocracia de aluguel de imóveis; a cultura acerca da propriedade privada, que concede poder de decisão e palavra final do proprietário em detrimento de direitos dos inquilinos; e a escassez de programas e benefícios para o acesso à moradia e ao pagamento dos aluguéis, que, normalmente, consomem mais de 40% da média dos salários na cidade de Buenos Aires.
Acesso à moradia
Desde a crise econômica de 2001 na Argentina, o país sofre um problema habitacional crônico. O desemprego, a exclusão espacial em termos de moradia e transporte, que afasta e aglomera em determinados bairros a população de recursos mais baixos, são agravantes. O Observatório do Direito à Cidade aponta que, nos anos posteriores a 2001, indicadores econômicos oscilavam entre períodos melhores ou piores, mas os relacionados ao direito à moradia digna "tiveram um comportamento linear negativo até o presente". O diretor do Observatório, Jonatan Baldiviezo, ressalta que uma crise econômica e sanitária nunca esteve atada, como agora, à crise habitacional. "Os setores populares são os que mais sofrem com a pandemia, por carecerem de uma moradia adequada e de serviços públicos", aponta.
Entre as possíveis medidas a ser discutidas para enfrentar a emergência habitacional, Baldiviezo ressalta algumas: "É preciso implementar políticas para regulamentar as economias das cidades. Por exemplo, a captação de recursos gerados na mudança de normas ou investimentos estatais", diz ele.
"Incorporar imóveis ociosos; desconcentrar propriedades obrigando à venda aos que possuem muitos imóveis; não permitir grandes projetos imobiliários, se não pequenos projetos que possam ser construídos por cooperativas e famílias organizadas em forma de autogestão", completa.
Um censo popular realizado em 2019 indicou que, só na capital de Buenos Aires, havia pelo menos 7.251 pessoas em situação de rua. A emergência habitacional é reforçada pela falta ou ineficácia de políticas direcionadas ao acesso à moradia. É o caso do programa de subsídio para famílias com problemas habitacionais, da capital argentina.
Desde agosto sem trabalho, Marcela Guzmán recorreu ao programa em busca de um apoio para alugar um lugar. "Não recebi ajuda. O aluguel deve ser diretamente com o proprietário, ou com uma pensão que emita comprovante. Quase nenhuma o faz. Fui com minha filha nos braços, dizendo que não tinha lugar para dormir aquela noite, e me deram um folheto com os requisitos. Em situações de vulnerabilidade, não atuam rápido", conta Marcela.
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A burocracia é um dos maiores impedimentos para acessar os programas do governo, como o caso citado. Além disso, muitos subsídios, como o próprio Ingresso Familiar de Emergência (IFE), lançado especificamente no contexto da pandemia, exigem nacionalidade argentina ou um tempo mínimo de residência, que costuma ser de dois ou três anos.
Essas brechas jogam luz sobre outra faceta do déficit habitacional que afeta a tantas cidades latino-americanas: quem não pode pagar por um imóvel ou construir é condenado às ruas, a ocupar ou deslocar-se às periferias e zonas distantes dos grandes centros.
Construções cooperativas, moradia autogestionada
Atualmente, cerca de 9% dos imóveis residenciais se encontram vazios em Buenos Aires, o que representa mais de 138 mil unidades. Esse número pode crescer diante da pandemia e a nova lei de aluguéis. Segundo Faiman, a rentabilidade de 0,2% com os aluguéis e os novos termos estipulados pela lei leva a muitos proprietários preferirem ter o imóvel vazio. "Salvo os que tenham a necessidade urgente e que não possam pagar os gastos fixos. Vai ser difícil depois da pandemia: a lacuna entre a oferta e a possibilidade de acesso vai aumentar", prevê.
A moradia como autogestão surge como contraponto a essas persistentes problemáticas de déficit habitacional. Assim surgiu o Movimento de Ocupantes e Inquilinos (MOI) em Buenos Aires, no contexto de ocupação de edifícios vazios na cidade, pós-2001. Néstor Jeifetz, presidente da Federação de Cooperativas Autogestionárias do MOI, destaca a materialização do direito à radicação ao colocar o patrimônio em função das necessidades da população, e não dos negócios imobiliários.
"Entendemos a autogestão como uma concepção para construir outra sociedade", pontua.
"Lutamos para construir uma alternativa e ser parte da construção de uma lógica anticapitalista. Nossa unidade de produção é autogestionada, sem lucro, com apoio das cooperativas de moradias e ajuda mútua. Esses processos implicam na construção do sujeito."
Nesse sentido, as construções cooperativas também são antagônicas à lógica das moradias sociais, o que Jeifetz chama de "caixinhas pequenas e feias".
"São produto das empresas. Você se inscreve em um papel, esperando que um dia te chamem, totalmente alheio aos processos. Na autogestão, é como gestar seu filho. E as pessoas amam o que gestam."
As organizações pela moradia autogestionada agora impulsionam um projeto para uma lei nacional do habitat, que inclui, entre outros pontos, o direito à beleza. "Parece uma besteira, mas tem um correlato com a lógica morfológica, espacial e dimensional da produção empresarial", afirma Jeifetz.
A participação coletiva desde o desenho dos projetos até a conclusão das construções refletem uma outra noção de viver e habitar a cidade. A lei abarcaria esse tipo de iniciativa em todo o território nacional.
Edição: Rodrigo Durão Coelho