O diálogo com esse setor será fundamental para um projeto de transformação da realidade que vivemos
Por Delana Corazza, Angelica Tostes e Marco Fernandes*
Nos últimos meses, temos presenciado o desespero de diversos pastores midiáticos insistindo na reabertura das igrejas, fechadas por conta da pandemia da covid-19, embora atualmente algumas igrejas já estejam no processo de abertura gradual. O iminente golpe financeiro, resultado da não arrecadação dos dízimos, pode ser a razão imediata de tal desespero. No entanto, a questão econômica não é o único problema enfrentado pelos pastores midiáticos, mas também as evidentes contradições discursivas que são baseadas na teologia da prosperidade e em curas milagrosas. O pesquisador Gedeon Alencar reforça que “o problema não é só o dízimo, o problema é que essas pessoas perderam o discurso, perderam a razão de ser. (...) quem falava só de milagre e cura, vai falar o que agora?”
Quem falava só de milagre e cura, vai falar o que agora?
Entretanto, não são só esses pastores que sentem falta do cotidiano das igrejas. Diversos evangélicos, que em sua maioria são frequentadores das igrejinhas neopentecostais das periferias das cidades e dos rincões deste país, têm relatado o vazio dessa ausência. Vale lembrar que é nessas igrejas que a classe trabalhadora empobrecida tem alguma chance de elaborar os traumas das múltiplas opressões do cotidiano, encontrando na fé o sopro de esperança de uma dignidade muitas vezes negada. As igrejas se tornam espaços de sociabilidade, entretenimento, educação e possíveis ascensões sociais pelas oportunidades de empregos entre irmãos/irmãs da comunidade. Em tempos pandêmicos, a crise sanitária e econômica tem afetado em especial a vida dos/as trabalhadores/as periféricos/as. As igrejas têm tido dificuldades para preencher o vazio nos corações e mentes das pessoas. “Sinto depressão, a igreja é o alimento da alma”, diz Cleonice Vitor, trabalhadora doméstica e moradora do bairro Peri Alto, periferia da Zona Norte da cidade de São Paulo (SP), onde os casos de morte por coronavírus aumentam consideravelmente. Simone Stoco, dona de casa, moradora do mesmo bairro, vive a angústia de ficar em casa: “é muito estranho não encontrar, não poder abraçar, o isolamento para nós foi um choque”.
Sinto depressão, a igreja é o alimento da alma.
Com as novas demandas de um mundo vivenciando o CoronaChoque, as igrejas também estão em processos de adaptação. O culto online é uma tentativa de resposta para a espiritualidade em tempos de pandemia. Na pesquisa realizada pelo Livan Chiroma (UNICAMP), entre janeiro e abril de 2020, vemos que no mês de março a busca pelo termo “culto online” aumentou 10.000% no buscador Google. Um aumento exponencial que reflete a busca de respostas da fé para o enfrentamento do vírus e que significou uma mudança no cotidiano de muitas igrejas e fiéis, que tiveram de se adaptar às novas formas de culto e ação pastoral.
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As igrejas evangélicas possuem diferentes realidades e peculiaridades, por isso não é possível fazer generalizações banais. Cada igreja, a depender de local e denominação, teve de fazer suas adaptações: acompanhamento pastoral via Whatsapp, contratar plataformas de reuniões virtuais, cultos online dentro da casa dos fiéis, cultos onlines feitos nas igrejas. “Fomos nos tateando e sofrendo com isso. Foi a assessoria da igreja e da juventude que foi descobrindo por onde a gente devia ir”, relata a pastora Odja Barros, da Igreja Batista do Pinheiro em Maceió.
Para os fiéis, a experiência é diversa, desde o momento e o tempo de se prepararem para o culto até a possibilidade de “visitar” diversas novas igrejas virtualmente. As mudanças são concretas e alteraram a forma de viverem a experiência religiosa tão presente em suas vidas cotidianas. Apesar desse esforço de manterem uma rotina para estarem, ainda que virtualmente, no culto, viver de fato essa experiência não tem sido tão simples: “não tenho muita paciência”, afirma Cleonice. Para Simone, a Igreja é um espaço de entrega, mas “em casa, qualquer barulho distrai, você não está ali 100%”.
Em casa, qualquer barulho distrai, você não está ali 100%.
Essa nova configuração da Igreja e da participação de seus fiéis, além de trazer mudanças nas formas de vivenciar a fé, tem também possibilitado, ainda que discretamente, alguns questionamentos sobre os discursos de suas lideranças, baseados muitas vezes em uma leitura fundamentalista da Bíblia. Assim como todo movimento, o fundamentalismo religioso não é um só: há o fundamentalismo dos pentecostais e com faces mais midiáticas, como Silas Malafaia e Marco Feliciano, e há outros dos protestantes históricos, principalmente os chamados neocalvinistas, que tem penetrado sorrateiramente os poderes governamentais, como o caso do Ministro da Justiça, André Mendonça, e do novo Ministro da Educação, Milton Ribeiro, ambos pastores da Igreja Presbiteriana do Brasil.
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Entre os pentecostais, alguns discursos são importantes para a construção do fundamentalismo como a lógica do triunfalismo e da cura, que envolvem a teologia da prosperidade e a teologia do domínio. Discursos como de Edir Macedo (IURD), que disse aos seus fiéis para não se preocuparem com o coronavírus, pois se tratava de uma “uma tática de Satanás” – e da mídia – para causar pânico nas pessoas; ou do apóstolo Valdemiro Santiago (IMPD), que prometeu a cura do coronavírus com sementes de feijão abençoadas, pedindo o “propósito” de mil por elas, são exemplos dessas estratégias teológicas de manipulação. Mas estas têm sido frustradas, seja pela doença – como o caso de Edir Macedo – ou pelo Ministério Público Federal, que solicitou que o YouTube retirasse do ar vídeos com promessas de “curas mágicas”.
O coronavírus mostrou o quanto de farsa existe dentro da prática religiosa.
Com a pandemia do covid-19, os esgarçamentos desses discursos podem ser um ponto de fissura no fundamentalismo religioso. A fala de Ronaldo Oliveira, membro da Assembleia de Deus Ministério Madureira e policial militar, soa como um desabafo: “O coronavírus mostrou o quanto de farsa existe dentro da prática religiosa, o quanto de farsa que existe na liderança religiosa porque mostrou a hipocrisia de tudo isso. Alguns até têm programas de televisão mostrando curas, coisas impossíveis, e o coronavírus ninguém cura.”
As possíveis rupturas e novas percepções da realidade não se constroem de um dia para outro. As lideranças de diversos movimentos populares têm construído – a partir da formação política com a sua base – olhares resistentes frente à realidade e, não raramente, tendo que lidar com concepções enraizadas no fundamentalismo religioso.
Eu vejo o discurso do Bolsonaro muito forte nas ruas, mas aqui dentro a gente tem um contra-discurso que funcionou sempre
No entanto, as possibilidades de transformações sempre estiveram em curso, como elabora Welita Caetano, liderança da Frente de Luta por Moradia (FLM) e adventista: “a base com que eu trabalho é evangélica, nas ocupações são todos evangélicos. Vai se construindo uma consciência política, dialogando com a fé a partir da educação popular, a partir das dificuldades do dia a dia que eles enfrentam, mais do que outros lugares, as ocupações são construídas com base na solidariedade. Eu vejo o discurso do Bolsonaro muito forte nas ruas, mas aqui dentro a gente tem um contra-discurso que funcionou sempre”.
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Se podemos afirmar que a fé não imuniza contra o vírus, também não imuniza contra o olhar crítico sobre a realidade. Josélia Pereira, também da FLM, trabalha há anos nas bases dos movimentos populares de luta por moradia e tem buscado dialogar principalmente com as mulheres evangélicas nos seus espaços de formação, possibilitando a reflexão política a partir da fé. Em tempos de pandemia, Josélia, para além das campanhas de doações de alimentos, tem tentado acalmar as famílias que estão inseguras e muitas vezes se sentindo abandonadas, levando as palavras de Deus, “mas não a palavra de Deus alienada, mas a que faz a gente entender que precisamos nos cuidar (…). A fé e a inteligência andam juntas”
Com a presença de uma pluralidade maior de cultos em meio digitais, o movimento progressista evangélico, embora sempre tenha feito uso dessas ferramentas, tem ganhado mais força. Na contramão dos discursos fundamentalistas, os movimentos religiosos progressistas, incluindo comunidades locais, têm mantido um esforço comum na disseminação de informações sobre prevenção da covid-19, como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, que lançou notas e informes às igrejas sobre a temática. Diversas campanhas nas redes sociais têm sido feitas para que as pessoas não quebrem o isolamento, como o uso da hashtag #FéNãoImuniza; outras, para que fiéis exercitem a fé dentro de suas casas, como a hashtag #OJejumQueEscolhi, que se contrapôs ao jejum convocado por Bolsonaro e pastores aliados ao presidente.
Não a palavra de Deus alienada, mas a que faz a gente entender que precisamos nos cuidar (…). A fé e a inteligência andam juntas.
As forças progressistas estão em marcha por meio da solidariedade e da batalha das ideias, presencialmente ou não. As fissuras no fundamentalismo religioso, evidenciadas nos discursos falaciosos sobre a pandemia, criaram possibilidades para rupturas com uma espiritualidade conservadora. Nesse contexto, tornam-se cada vez mais férteis as disputas no campo religioso. Os evangélicos, principalmente os neopentecostais, compõem parte significativa dos moradores das periferias das cidades, alvo principal do vírus em nosso país. O diálogo com esse setor da sociedade será fundamental para um projeto de transformação da realidade que vivemos.
*Delana Cristina Corazza, pesquisadora do Observatório sobre os neopentecostais na política do Tricontinental, é Cientista Social (PUC-SP) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (USP).
*Angelica Tostes, teóloga e mestre em Ciências da Religião, é pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social no Brasil sobre Neopentecostais e Política, e também pesquisadora externa na PUC-GO. Educadora popular da religião e ativista interfé na Global Interfaith Network.
*Marco Fernandes, pesquisador do Observatório sobre os neopentecostais na política, é militante do MST, bacharel e mestre em História (USP), doutor em psicologia (USP). Psicanalista em formação no Instituto Sedes Sapientae.
Edição: Rodrigo Chagas