Coluna

Forjar economias de resistência antirracista

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As práticas econômicas das mulheres negras são essenciais à manutenção da vida - Arquivo SOF
Desmontar a hegemonia política, cultural e econômica do capitalismo passa por confrontar o racismo

Por Miriam Nobre*

25 de julho é o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. No Brasil, é também dia de Tereza de Benguela, liderança do Quilombo de Quariterêre, onde viveram pessoas negras e indígenas em Mato Grosso no século 18.

A poeta Jarid Arraes, no livro Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, conta a história do quilombo sob a liderança de Tereza: como se organizavam cooperando em coletivo, plantando e transformando os produtos para autoconsumo e comercialização, inventando dinâmicas políticas e de administração e resistindo inclusive de forma militar.

Jarid nos conta que, “com talento para forjar/ se botavam a fundir/ objetos muito úteis/ para a vida construir/ as algemas e outros ferros/ que serviam de prisão/ lá na forja transformavam/ para outra utilização/ e com muita habilidade/ tinham outra intenção”.

Nesse espírito de desmontar, derreter as estruturas de opressão e construir coisas úteis para a vida, a Sempreviva Organização Feminista (SOF) organizou a transmissão ao vivo Reorganizar a economia enfrentando o racismo, com Mariana Lacerda, da Marcha Mundial das Mulheres do Ceará, e Marli Aguiar, escritora, artista plástica e sócia da SOF.

A transmissão, assim como este artigo, começa trazendo para a roda Helena Nogueira, ativista feminista, antirracista, da Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo, que nos deixou em março deste ano. Que sua firmeza no enfrentamento às injustiças e o carinho que dedicava às pessoas mais vulneráveis tracem nossos caminhos.

Mariana e Marli explicaram que o racismo é constitutivo do capitalismo. O próprio termo “raça” foi cunhado pelo capitalismo colonial para dividir e hierarquizar as vidas que contam e assim justificar a exploração, a destruição de povos e de seus meios de vida.

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A acumulação originária que impulsionou o capitalismo industrial nos países do norte se deu pelo saqueio da natureza (minerais, madeira), mas também pelo tráfico de pessoas raptadas e escravizadas. O capital acumulado no absurdo e lucrativo tráfico está ligado a bancos e casas financeiras que existem até hoje.

Outro aspecto é o modo de organização do trabalho e da economia de plantações das colônias. Um padrão é o trabalho até a exaustão, as pessoas trabalhadoras morrendo jovens e sendo substituídas por outras pessoas sequestradas.

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Ou seja, os custos de reprodução da força de trabalho são mínimos e a própria força e trabalho é um capital imobilizado que se reproduz. A reprodução biológica – a vida sexual e reprodutiva – de mulheres e homens negros escravizados é, sem nenhum disfarce, assunto econômico e de acumulação de capital.

Outro padrão é a servidão: pessoas sem desejos e vida própria a serviço de outras pessoas. Isso permite que uma classe de pessoas não se responsabilize por quase nenhum aspecto de sua reprodução enquanto pessoas e em gerações.

Para a elite servida, neste domínio da vida a incompetência é geral, lhes basta comer e dormir. As pessoas a seu serviço se encarregam de todo o resto: amamentam, garantem a comida desde o plantio, o preparo, até chegar à mesa e de seus resíduos, até o carregamento de excrementos em tempos sem saneamento básico, ou carregar liteiras para que não precisem andar.

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A lista de serviços é enorme e poderia ser atualizada para os dias de hoje. Os padrões do trabalho à exaustão, de descartabilidade e de servidão continuam operando até hoje, como bem nos conta Grada Kilomba na obra Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.

Estes padrões organizam subjetividades das pessoas negras, indígenas e brancas para assentar uma divisão racial do trabalho. A organização do trabalho separada e hierarquizada conforme a raça e a construção de subjetividades são processos concomitantes que se retroalimentam.

Sabemos que a docilidade construída ou imposta às mulheres como característica distintiva do feminino é instrumentalizada e dá suporte ao lugar das mulheres na divisão sexual do trabalho. Somos responsabilizadas pelo cuidado e, para isso, estamos permanentemente atentas ao outro.

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A Sinhá Anastácia (nossa versão brasileira das mammies, imagem de controle discutida por Patrícia Hill Collins) tem muito a ver com a predominância das mulheres negras nas tarefas de cuidado, que são invisibilizadas e marcadas pela precariedade e desvalorização, ainda que essenciais à vida.

As divisões sexual e racial do trabalho vão se transformando ao longo do capitalismo. Achille Mbembe, em seu livro O fardo da raça, afirma que “negro já não é apenas o homem negro africano ou de origem africana, mas todos os que hoje formam uma humanidade excedente em relação à lógica econômica neoliberal”¹.

Também sabemos que na globalização neoliberal a tendência é feminizar, ou seja, expandir as características do trabalho de feminino – precariedade, descontinuidade, confinamento em determinadas funções – ao conjunto da força de trabalho, começando pelos trabalhadores imigrantes. A questão é como estas duas tendências se combinam? Como se entrecruzam nas vidas das mulheres negras trabalhadoras, sendo elas próprias entrecruzamento?

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O que sabemos é que as práticas econômicas das mulheres negras são essenciais à manutenção da vida. Se elas são consideradas como excedentes na lógica neoliberal, são as próprias condições de reprodução da vida que são atacadas. E, se queremos expandir a vida como bem viver, é destas práticas que aprenderemos.

Mariana compartilhou a experiência do Ceará em torno à economia do negro, que articula atividades de formação, feiras, atividades em rede. Marli traçou a longa trajetória de economia solidária entre o povo negro, desde os tempos onde as pessoas negras guardavam os dinheiros que recebiam de forma segura em irmandades, juntando para comprar cartas de alforria e ter socorro em momentos de precisão.

O fio da história se mantém nas caixas de auxílio mútuo das irmandades de Congada, de Moçambique. Beatriz Nascimento já puxou este fio percebendo organizações comunitárias e resistências negras onde existiram quilombos. Ela traça a continuidade entre sistemas de organização política e econômica na África, sistemas paralelos às institucionalidades coloniais e até o presente como mística que alimenta sonhos de liberdade.

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Entendo que companheiras quilombolas se preocupem quando nós, da cidade, projetamos tantas vontades na palavra-horizonte quilombo. Entendo que elas temam que perca importância os desafios dos quilombos que aí estão em grande enfrentamento para serem reconhecidos, ter suas terras tituladas e sob seu manejo integralmente, inclusive com práticas tradicionais como as roças de coivara, hoje muitas vezes criminalizadas.

Conflitos agrários e ambientais colocam as comunidades frente a fazendeiros, corporações transnacionais e ao Estado. As comunidades quilombolas não separam essas lutas do resgate e valorização da memória, das formas de falar, das festas.

São lutas que articulam a identidade cultural, as práticas econômicas e políticas e que reconstroem permanentemente o comunitário. Um comum que resgata e transforma a cada uma e ao coletivo integrados em um mesmo processo.

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Com este alerta e firmes na solidariedade, pedimos licença a nossas companheiras para seguir o convite de Conceição Evaristo de instaurar o tempo de nos aquilombar. Armando quilombos não só como sistemas paralelos, mas como sistemas que nos dão força para desmontar todas as opressões.

Se o racismo é constitutivo do capitalismo, então desmontar a hegemonia política, cultural e econômica do capitalismo passa necessariamente por confrontar o racismo. Esta percepção traduzida na conjuntura nos diz que, sendo nossa urgência colocar Fora Bolsonaro, então desmontar o poder que o sustenta passa necessariamente por confrontar as milícias e polícias racistas e genocidas que o amparam.

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A luta por justiça a cada uma das pessoas assassinadas e violentadas por eles, por vezes, nos dão a sensação de mobilizar uma enorme energia para lhes atirar uma pedrinha. Mas pedrinhas no lugar certo param moendas.


¹ Trecho citado no artigo A crítica à governamentalidade neoliberal na arte feminista contemporânea, de Luana Tvardoskas, que integra o livro Neoliberalismo, feminismo e contracondutas, organizado por Margareth Rago e Mauricio Pelegrini.

*Miriam Nobre compõe a equipe da SOF Sempreviva Organização Feminista e é militante da Marcha Mundial das Mulheres.

 

Edição: Leandro Melito