Rio de Janeiro

PENSAMENTOS

Artigo | O sistema neoliberal e capitalista não ama as pessoas, por Leonardo Boff

Pregar o amor e dizer: “amemo-nos uns aos outros como nós mesmos nos amamos”, é um ato revolucionário

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Em momentos dolorosos em que vivemos e sofremos, precisamos resgatar o mais importante e que verdadeiramente nos humaniza: o simples amor - Joseph Prezioso / AFP

Vivemos atualmente tempos sombrios de muito ódio, ausência de refinamento e especialmente falta de amor. A história não é retilínea nem a própria evolução do universo. Passa-se da ordem cosmos, para a desordem, caos, do “simbólico”, o que une, para o “diabólico”, o que separa, das sombras para a luz, do thánatos, as negatividades da vida, para o eros, as excelências da vida, e do Cristo para o Anti-Cristo. Tais antíteses não são deformações da realidade, mas a condição de todas as coisas. No âmbito humano dizemos que assim é a condition humaine.

Quer dizer, há momentos de predominância da ordem, da harmonia social, da convivência inclusiva que representam o eros. Em outros predomina o thánatos, a dimensão de morte, de ódio e de dilaceração.

Observa-se que os dois momentos sempre vêm juntos e estão simultaneamente presentes em todos os momentos e circunstâncias. Atualmente em nível mundial e nacional vivemos pesadamente a dimensão do thánatos, do “diabólico” e da sombra. Há guerras no mundo, racismo, fundamentalismo fazendo incontáveis vítimas, ascensão do autoritarismo, do populismo, que são disfarces do despotismo. Como se tudo isso não bastasse estamos sob a intrusão da covid-19, fruto da sistemática agressão humana contra a natureza (antropoceno) e do contra-ataque que ela nos está movendo, pondo especialmente o capitalismo e os países militaristas com sua máquina de matar, de joelhos.

Todos os caminhos religiosos e espirituais conferem centralidade ao amor. Nem precisamos nos referir a Jesus para quem o amor é tudo ou ao texto de inigualável beleza e verdade de São Paulo na primeira “Carta aos Coríntios”, no capítulo 13: “o amor nunca acabará...no presente permanecem estas trê: a fé, a esperança e o amor, porém o mais excelente é o amor” (13.8.13).

Não me contenho sem citar o texto sobre o amor da “Imitação de Cristo”, de 1441, o livro mais lido na cristandade depois da Bíblia. Como canto de cisne de minha atividade teológica por mais de 50 anos, o retraduzi do latim medieval, superando-lhe, contudo, os dualismos típicos da época. Leiamo-lo:

“Grande coisa é o amor. É um bem verdadeiramente inestimável que por si só torna suave o que é penoso e suporta sereno toda a adversidade. Porque leva a carga sem sentir o peso, torna o amargo doce e saboroso…O amor deseja ser livre e isento de amarras que lhe impedem amar com inteireza. Nada mais doce do que o amor, nada mais forte, nada mais sublime, nada mais profundo, nada mais delicioso, nada mais perfeito ou melhor no céu e na terra…Quem ama, voa, corre, vive alegre, sente-se libertado de todas as amarras. Dá tudo para todos e possui tudo em todas as coisas, porque para além de todas as coisas, descansa no Sumo Bem do qual se derivam e procedem todos os bens. Não olha para as dádivas, mas eleva-se acima de todos os bens até aquele que os concede. O amor muitas vezes não conhece limites pois seu fogo interior supera toda a medida. De tudo é capaz e realiza coisas que quem não ama não compreende, quem não ama se enfraquece e acaba caindo. O  amor vigia sempre e até dorme sem dormir…Só quem ama compreende o amor” (Livro III capítulo 5).

Simples amor

Em momentos dolorosos em que vivemos e sofremos, precisamos resgatar o mais importante e que verdadeiramente nos humaniza: o simples amor.  Ele está em grande falta em todas as partes e relações. Mas sem ele nada de grande, de memorável e de heroico foi construído na história. É o amor que faz com que tantos médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras e todos os que trabalham contra a covid-19, sacrifiquem suas vidas para salvar vidas, sendo que muitos deles por isso são vitimados. Eles nos confirmam a excelência do amor incondicional.Testemunhos das ciências da vida, da arte e da poesia reforçam o que proclamam as religiões.

Convincentes são as palavras do genial pintor Vincent Van Gogh, em carta ao seu irmão Théo. “É preciso amar para trabalhar e para se tornar um artista, um artista que procura colocar sentimento em sua obra: é preciso primeiro sentir-se a si próprio e viver com  seu coração...É o amor que qualifica nosso sentimento de dever e define claramente nosso papel... o amor é a mais poderosa de todas as forças” (Lettres à son frère Théo, Galimard 1988, 138, 144).

A. Artaud que fez a introdução às cartas de Van Gogh diz que ele se recusou a entrar nessa sociedade sem amor: “ele foi um suicida da sociedade”.

Consideremos o que testemunham os estudos sobre o processo cosmogênico e da nova biologia. Mais e mais fica claro que o amor é um dado objetivo da realidade global e cósmica, um evento bem-aventurado do próprio ser das coisas, nas quais nós estamos incluídos. Exemplo disso é o que escreveu James Watson que junto com Francis Crick, em 1953, descodificou a dupla hélice do código genético:

“O amor pertence à essência de nossa humanidade. O amor, esse impulso que nos faz ter cuidado com o outro foi o que permitiu a nossa sobrevivência e sucesso no planeta. É esse impulso, creio, que  salvaguardará nosso futuro…Tão fundamental é o amor à natureza humana que estou certo de que a capacidade de amar está inscrita em nosso DNA; um São Paulo (que tão excelentemente escreveu sobre o amor) secular diria que o amor é a maior dádiva de nossos genes à humanidade” (J.Watson, DNA: o segredo da vida, Companhia das Letras, São Paulo 2005 p. 433-434).

Os biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela mostraram a presença cósmica do amor. Os seres, mesmo os mais originários como os topquarks, dizem eles, se relacionam e interagem entre eles espontaneamente, por pura gratuidade e alegria de conviver. Tal relação não responde a uma necessidade de sobrevivência. Ela se instaura por um impulso de criar laços novos, pela afinidade que emerge espontaneamente e que produz o deleite. É o advento do amor.

Desta forma, a força do amor atravessa todos os estágios da evolução e enlaça todos os seres dando-lhes irradiação e beleza. O amor cósmico realiza o que a mística sempre intuiu acerca da gratuidade da beleza: “a rosa não tem por quê. Ela floresce por florescer. Ela não cuida dela mesma nem se preocupa se a admiram ou não.”(Angelus Silesius). Assim o amor, como a flor, ama por amar e floresce como fruto de uma relação livre, como entre duas pessoas enamoradas e apaixonadas.

Bem expressou esta experiência Fernando Pessoa, em “Poemas de Alberto Caieiro”: “Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é, (...) Mas porque a amo, e amo-a por isso, porque quem ama nunca sabe o que ama, nem sabe porquê ama, nem o que é amar. Amar é a eterna inocência” (Obra poética, Aguilar 1974,p.205).

Pelo fato de sermos humanos e autoconscientes, podemos fazer do amor um projeto pessoal e civilizatório: vive-lo conscientemente, criar condições para que a “amortização” aconteça entre os seres humanos e com todos os demais seres da natureza, até com alguma estrela do universo.

O amor é urgente no Brasil e no mundo. Com realismo nos deixou Paulo Freire, tão caluniado pelos propulsores do ódio e da ignorância, esta missão: forjar uma sociedade onde não seja tão difícil o amor. Educar, dizia ele, é um ato de amor.

Digamo-lo com todas as palavras: o sistema mundial capitalista e neoliberal não ama as pessoas.

Ele ama o dinheiro e os bens materiais; ele ama a força de trabalho do operário, seus músculos, seu saber, sua produção e sua capacidade de consumir. Mas ele não ama gratuitamente as pessoas como pessoas, portadoras de dignidade e de valor. O que nos está salvando neste momento de intrusão da covid-19 são exatamente os valores que o capitalismo nega.

Pregar o amor e dizer: “amemo-nos uns aos outros como nós mesmos nos amamos”, é revolucionário. É ser anticultura dominante e contra o ódio imperante.

Há de se fazer do amor aquilo que o grande florentino, Dante Alignieri, escreveu no final de cada cântico da “Divina Comédia”: “o amor que move o céu e todas as estrelas”; e eu acrescentaria, amor que move nossas vidas, amor que é o nome sacrossanto do Ser que faz ser tudo o que é e que é a Energia sagrada que faz pulsar de amor os nossos corações”.

*Leonardo Boff é ecoteólgo e acaba de escrever: "Covid -19: a Mãe Terra contra ataca a humanidade", a ser lançado pela Vozes.

Edição: Mariana Pitasse