A ideia de que privatizações estão relacionadas a eficiência de uma empresa é uma falácia e não se sustenta. A afirmação é da pesquisadora e professora Suyá Quintslr, do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ) sobre os argumentos que sustentam as privatizações das estatais de água e esgoto, incluindo a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (Cedae).
"Existem inúmeras empresas privadas deficitárias – ou altamente endividadas com vistas a sustentar seu nível de remuneração aos acionistas – e nem por isso se questiona sua eficiência ou mesmo há um contra-discurso em defesa de sua estatização", afirma a pesquisadora, que é frequentemente solicitada nos debates públicos sobre a tentativa do governo do Rio de desestatizar a companhia.
Questionada sobre a contradição de o governo Wilson Witzel (PSC) tentar colocar à venda uma empresa que gera lucro líquido anual de aproximadamente R$ 1 bilhão, Suyá vai além e afirma que a privatização da Cedae, em um contexto de grande desigualdade social como o nosso, aponta para a "possibilidade de acirramento das diferenças de acesso aos serviços", algo que uma empresa pública não pode ignorar.
"Existe uma tendência amplamente documentada dos operadores privados optarem por investir nos serviços nas áreas nas quais eles são lucrativos, deixando as redes e infraestruturas das áreas habitadas pela população com reduzida capacidade de pagamento se degradarem", avalia a professora do IPPUR/UFRJ.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Por que a Cedae não pode ser privatizada e de que forma a desestatização atinge a população?
Suyá Quintslr: Em primeiro lugar, é necessário definir claramente o que estamos chamando de privatização. Existem várias formas de a iniciativa privada atuar nos serviços de saneamento. É possível, por exemplo, que uma companhia estadual lance suas ações em bolsa [abertura de capital]. Este foi o caso, por exemplo, da Sabesp, em São Paulo, que, apesar de ter ações negociadas em bolsa, ainda tem o Governo do Estado de São Paulo como principal acionista e controlador.
Outra forma de participação privada são as parcerias público-privadas (PPP). Nós temos alguns exemplos disso no Brasil, sendo a parceria formada para execução de obras de esgotamento sanitário na RM do Recife uma das maiores PPPs de saneamento. Finalmente, existe a possibilidade do titular dos serviços concedê-los a um ente privado. Neste caso, a concessão ocorre através de um contrato que tem um prazo determinado e deve ser regulado por uma agência designada para tal.
No Rio de Janeiro, temos inúmeros exemplos. Niterói, que concedeu os serviços à empresa Águas de Niterói no final da década de 1990, é frequentemente citado como um caso de sucesso de privatização. Os municípios da Região dos Lagos também têm seus serviços operados por companhias privadas, assim como Petrópolis e Paraty.
Voltando à Cedae, o que está sendo proposto pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro é esse último modelo: a concessão dos serviços de água e esgotos operados pela Companhia a concessionários privados. Em teoria, e segundo o discurso dominante, os contratos de concessão deveriam ter uma regulação forte por parte do Estado.
Entretanto, a Agência Reguladora de Energia e Saneamento Básico do Estado do Rio de Janeiro (Agenersa), reguladora dos contratos, conta com menos de 20 funcionários de carreira em seu quadro e vem tendo negados seus pedidos para a realização de concursos públicos devido ao Regime de Recuperação Fiscal do Estado do Rio de Janeiro. Mas esta é apenas uma das adversidades a serem enfrentadas pela privatização no estado do Rio de Janeiro.
A meu ver, o maior problema de conceder serviços públicos fundamentais em um contexto de grande desigualdade social como o nosso é a possibilidade de acirramento das diferenças de acesso aos serviços em nosso estado.
Existe uma tendência, amplamente documentada na literatura, dos operadores privados optarem por investir nos serviços nas áreas nas quais eles são lucrativos, deixando as redes e infraestruturas das áreas habitadas pela população com reduzida capacidade de pagamento se degradarem. Este processo pode levar, em última instância, a um rompimento da solidariedade urbana proporcionada pelas redes de serviços públicos fundamentais – os quais são operados, via de regra, através de sistemas de subsídios cruzados que permitem que a arrecadação em algumas áreas financie a expansão dos serviços em outras.
Do ponto de vista da população, outro efeito adverso provável é o aumento de tarifa. Apesar de não haver previsão de reajustes acima da inflação no modelo proposto, eles podem ocorrer através de revisões e aditivos contratuais.
Do ponto de vista econômico, a Cedae gera lucro ano após ano. Por que alguns setores insistem na privatização?
Atualmente, a Cedae é, de fato, uma empresa lucrativa. Entretanto, isso tem pouca importância para definir as ideias e atitudes de diferentes grupos sociais em relação ao saneamento e à própria empresa. Pública ou privada, a Cedae é uma empresa, e como tal, se submete a regras de mercado. Dessa forma, a oscilação de seus resultados – lucros ou prejuízos – é uma característica essencial de sua atuação.
No entanto, existe uma crença mais ou menos generalizada na ineficiência da gestão pública, em contraposição à gestão privada, que é equacionada à eficiência.
Segundo esse discurso, que associa a propriedade e a gestão privadas ao modelo do ator racional, o mercado seria a melhor forma de distribuição de recursos. Mas essa argumentação dificilmente passaria por uma verificação empírica. Existem inúmeras empresas privadas deficitárias – ou altamente endividadas com vistas a sustentar seu nível de remuneração aos acionistas – e nem por isso se questiona sua eficiência ou mesmo há um contra-discurso em defesa de sua estatização.
Como você classifica esse acordo de recuperação fiscal do estado que colocou a Cedae como garantia?
O Regime de Recuperação Fiscal (RRF) do Governo Federal, ao qual o Governo do Estado do Rio de Janeiro aderiu em 2017, vem funcionando de maneira análoga ao ajuste estrutural imposto por organismos internacionais, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI) nas décadas de 1980 e 1990. Assim, ao aderir ao RRF, o governo do Rio se comprometeu com a redução do déficit público, através de medidas como revisão do regime jurídico único dos servidores estaduais, mudanças nos Regimes Próprios de Previdência Social e privatização de empresas. Em contrapartida, ganhou a possibilidade de refinanciar dívidas com a União e contratar empréstimos como antecipação da receita das privatizações.
É aí que entra a desestatização da Cedae: as ações da empresa foram oferecidas como garantia à contratação de um empréstimo com o Banco BNP Paribas, utilizado prioritariamente no pagamento da folha dos servidores. Para o pagamento deste empréstimo, o Governo do Estado do Rio de Janeiro, de acordo com o modelo proposto pelo BNDES, lançou em junho a Consulta Pública da concessão dos serviços de água e esgotos operados pela empresa.
O prazo inicial do RRF se esgota em setembro e o Rio de Janeiro vem se esforçando para conseguir sua prorrogação por mais três anos. Dessa forma, a privatização da Cedae é vista como peça chave para conseguir a renovação.
Que exemplos temos de lugares que reestatizaram serviços de água e esgoto e o que fez essas cidades perceberem os problemas da privatização?
Diversas cidades do mundo estão fazendo um movimento de reversão das privatizações dos serviços de água e esgotos que ocorreram nos anos 1980 e 1990. Os exemplos são muito variados e incluem cidades pequenas, médias e grandes; cidades ricas e cidades pobres. As motivações para reverter as privatizações, rescindir contratos com operadores privados ou simplesmente não renová-los são igualmente diversas.
Um exemplo bastante citado de grande cidade européia a remunicipalizar os serviços é Paris.
A decisão para a criação da Eau de Paris não se deveu a problemas na concessão a operadores privados, mas à compreensão de que os recursos recolhidos através da conta de água poderiam ser reinvestidos nos serviços por uma empresa pública, e não apropriados privadamente. Desta forma, suspendeu os cortes de água, reduziu as tarifas, organizou uma rede de fontes públicas de água (hoje muito importante para garantir água à população de rua e refugiados), e criou um fundo para subsidiar tarifas para famílias de baixa renda.
Na América Latina, temos exemplos mais dramáticos de privatizações seguidas de rescisões contratuais, tais como Cochabamba (Bolívia) e Buenos Aires (Argentina). Cochabamba privatizou os serviços de água e esgoto em 1999 e, no ano seguinte, viu eclodir um episódio de mobilização popular conhecido como Guerra da Água, no qual movimentos sociais contestavam os aumentos de tarifa e as restrições impostas ao acesso até mesmo a fontes de água bruta.
Em Buenos Aires, a operação privada dos serviços durou mais de uma década, tempo suficiente para que a concessionária privada descumprisse diversas cláusulas do contrato e promovesse grandes aumentos de tarifa, o que levou à rescisão contratual. Esse processo, entretanto, não ocorreu sem uma acirrada disputa e prejuízos por parte do ente público. Essas e outras experiências de reversão das privatizações são sistematizadas pelo Transnational Institute (TNI), que edita uma série de publicações sobre o assunto e mantém um site atualizado sobre os processos de remunicipalização no mundo.
Que problemas você aponta no novo “Marco Legal do Saneamento”, sancionado recentemente pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e o que ele vai permitir?
O Projeto de Lei (PL) 4.162/2019, recentemente aprovado pelo Senado Federal, altera uma série de leis (incluindo a Política Nacional de Saneamento, Lei nº 11.445/2007), e busca incentivar a participação privada na prestação dos serviços de água e esgoto. Segundo a avaliação de alguns especialistas, o principal resultado de sua aprovação e dos vetos do Presidente da República será a inviabilização das Companhias Estaduais de Saneamento Básico (CESBs), devido à extinção do contrato de programa.
Na ausência deste instrumento, que possibilita que o município conceda a operação dos serviços a uma empresa estatal sem a obrigatoriedade de licitação (cf. Lei nº 8.666/1993), a licitação passa a ser obrigatória, abrindo o mercado e incentivando a operação privada.
Além disso, o projeto prevê a prestação regionalizada como forma de manutenção do subsídio cruzado. Contudo, define que os estados e a União, de forma subsidiária, deverão estabelecer os blocos para este tipo de prestação, o que fere a autonomia dos municípios e do Distrito Federal em relação à titularidade dos serviços. De acordo com a legislação brasileira, os estados podem instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões; todavia, não há previsão de imposição de formação de outros blocos de municípios para prestação de serviços (ver Art. 25 da Constituição Federal de 1988 e Lei 13.089/2015).
Resumidamente, as mudanças promovidas no Marco Regulatório do Saneamento visam aumentar a participação privada no setor através de uma série de dispositivos. Entretanto, o PL aprovado possui inconstitucionalidades que serão, certamente, contestadas na justiça federal.
Há uma proliferação de discursos no debate público contrários e favoráveis à privatização. Quais são os interesses envolvidos para que alguns setores da sociedade defendam a venda da Cedae?
É difícil precisar os interesses dos diferentes agentes públicos e privados, neste caso. Da parte do Governo Federal – que vem pressionando pela privatização do saneamento através das mudanças promovidas na legislação, da atuação do BNDES e, no caso do Rio de Janeiro, do RRF – existe uma clara intenção de promover uma redução das funções do Estado e um ajuste fiscal na esteira da agenda neoliberal.
O Governo do Estado do Rio de Janeiro, aparentemente, busca o cumprimento das metas do RRF para conseguir sua prorrogação por mais três anos, mas é possível que haja outros interesses envolvidos. Considerando o histórico dos últimos governos no estado, não causaria surpresa se o processo de concessão fosse utilizado para apropriação de recursos públicos de forma ilegal por certos agentes.
Quanto ao setor privado, vemos uma série de escritórios de advocacia, de consultorias e operadores de serviços de água e esgoto pressionando pela privatização pois vão, efetivamente, lucrar com a operação dos serviços. Dessa forma, a concessão de tais serviços, como todo processo de privatização, abre inúmeras possibilidades de acumulação privada.
Na sua avaliação, por que que motivo setores da mídia preferem destacar a corrupção nas empresas públicas?
Essa estratégia é utilizada para desacreditar as empresas públicas e destacar uma suposta ineficiência do setor público.
Atualmente, os escândalos de corrupção vêm sendo mobilizados com frequência pela mídia e por movimentos conservadores para promover seus interesses. Mas essa não é a única forma de propaganda negativa em relação à Cedae: a questão dos altos salários das diretorias, dos problemas de qualidade da água, dos altos índices de perda, etc., tudo isso vem sendo bastante divulgado com a intenção de alcançar o consentimento da população para o projeto de privatização do saneamento.
Entretanto, corrupção, ineficiência e altos salários, não são exclusividade das empresas públicas. Mas quando ocorrem episódios de corrupção no setor privado, ou casos de delinquência de elites econômicas e financeiras, por exemplo, eles são abordados pela mídia, como exceção – a partir da ideia da maçã podre que pode ser afastada para não contaminar os pares.
Como a administração pública pode sanar o problema da dominância de nomes como o do ex-deputado Eduardo Cunha (MDB) e do Pastor Everaldo (PSC) na Cedae?
A democratização da gestão da Cedae é essencial para a superação do patrimonialismo, visto como um traço fundamental da gestão pública no Brasil por alguns autores. Isso pode ocorrer de diversas formas. Por exemplo, seus funcionários podem ser envolvidos, de algum modo, na escolha da Presidência da empresa e das diretorias. Enquanto a indicação for realizada de forma exclusiva pelos Governadores do Estado do Rio de Janeiro, estaremos sujeitos a este tipo de influência. Além disso, a Cedae precisa estar mais aberta à participação social e ao diálogo com as prefeituras municipais para a definição das prioridades de investimentos.
A ausência de participação e transparência reforçam o patrimonialismo e o clientelismo, isto é, o uso da empresa pública para fins privados, eleitorais e/ou político-partidários. Isso resulta em um padrão de comportamento que nem sempre vai ao encontro do interesse público; ao contrário, ela foi usada, em diversos momentos, para beneficiar grupos econômicos que atuam (legal ou ilegalmente) como financiadores de campanhas eleitorais.
É notório, por exemplo, que a Cedae tenha priorizado, nos últimos anos, obras que beneficiavam incorporadores imobiliários da Barra da Tijuca, no município do Rio de Janeiro, em detrimento de intervenções importantes para garantir o direito à água de moradores da periferia do município do Rio de Janeiro e de áreas da Baixada Fluminense, por exemplo.
Até hoje a universalização do saneamento básico não ocorreu no estado do Rio de Janeiro, esse é um ponto fraco que costuma ser atacado pelos privatistas. Como conjugar a defesa da manutenção da Cedae como empresa pública e o acesso integral da população a esses direitos básicos?
Na minha opinião, apenas a gestão pública poderá reduzir as desigualdades no acesso ao saneamento em um contexto de grande desigualdade socioespacial como vemos no Rio de Janeiro.
Na metrópole fluminense, as áreas sem rede de água e esgoto coincidem com as áreas de moradia da população de baixa renda.
Assim, a universalização depende de investimentos contínuos nas infraestruturas em locais onde os moradores possuem baixa capacidade de pagamento. E isso, pelos motivos apontados anteriormente, é incompatível com a operação privada.
O modelo de operação pública predominante no Brasil hoje é o de grandes empresas de capital misto sob controle dos estados, como a Cedae. Entretanto, esse não é o único modelo possível. Existem bons exemplos de serviços públicos de saneamento operados pelos municípios em outras regiões. Além disso, a legislação possibilita a formação de consórcios públicos para prestação dos serviços.
Considerando as diferentes modalidades de gestão pública do saneamento, o fundamental é o fim do uso clientelista e político-partidário dos recursos investidos e a abertura da empresa ao controle social, além do estabelecimento de metas contratuais claras de redução das desigualdades.
Edição: Mariana Pitasse