Há um ano, a memória de Luís Ferreira da Costa, chamado carinhosamente como Seu Luís, desperta saudade e inspira a luta dos sem-terra do Acampamento Marielle Vive, em Valinhos, no interior de São Paulo.
O senhor de 72 anos foi brutalmente atropelado em 18 de julho de 2019, no quilômetro 7 da Estrada do Jequitibá, quando, ao lado de outros integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), protestava pacificamente em defesa do fornecimento de água para o acampamento.
Enquanto distribuíam alimentos agroecológicos e sementes aos motoristas, um homem dirigindo uma caminhonete Hylux L-200, posteriormente identificado como Leo Luiz Ribeiro, avançou contra a manifestação e atingiu Luís, que não resistiu aos ferimentos.
Apesar de ter sido localizado e preso em flagrante no mesmo dia, Ribeiro foi liberado do Centro de Detenção Provisória de Hortolândia, no interior de São Paulo, após ter liberdade provisória concedida em dezembro do ano passado.
“Para nós, é um ano sem, de fato, acontecer a Justiça. Ele foi solto, passou poucos meses na prisão. Logo depois de ser solto, passou na frente do acampamento diversas vezes, em alguma delas comemorando, insinuando gestos, constrangendo as famílias”, conta Gerson Oliveira, da coordenação estadual do MST.
O integrante do acampamento afirma que boletins de ocorrência foram registrados, pois a liberdade de Leo Ribeiro representa um risco para as famílias, principalmente para os sem-terras que estavam próximo a Seu Luís no momento do atropelamento e depuseram no processo.
Desde então, a segurança do acampamento foi reforçada por causa do medo de retaliação. “Esse crime foi cometido pelo Leo Ribeiro, que estava dirigindo a caminhonete, mas sabemos que o que ele representa para os inimigos do Movimento Sem Terra em Valinhos e na região é muito maior, muito forte. Muito provavelmente, setores da classe dominante, especuladores, comemoraram a ação dele de atropelar um sem-terra”, lamenta Oliveira.
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Para ele, o atropelamento é um exemplo da intolerância fomentada pela eleição de Jair Bolsonaro (sem partido). “São grupos reacionários que viveram nos escombros da ditadura por muito tempo e agora está desavergonhadamente nas ruas e nas redes sociais, incitando ódio contra os trabalhadores. Nesse caso, um trabalhador sem terra, nordestino, como era o Seu Luís Ferreira”, aponta o dirigente.
Processo
A advogada Maria de Fátima da Silva, integrante da Rede Nacional dos Advogados Populares (Renap), explica que o Ministério Público Estadual denunciou Leo Ribeiro por homicídio doloso triplamente qualificado – por motivo fútil, perigo comum e impossibilidade de defesa da vítima.
Ele também é acusado por omissão, por ter se afastado do local do acidente para fugir das responsabilidades pelo atropelamento. Atualmente, o processo está na chamada fase instrutória, que tem como finalidade a produção de prova pericial, oral e documental.
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Fátima da Silva, que também integra o setor de direitos humanos do MST-SP, detalha que, após a fase processual, o juiz responsável decidirá se o réu irá ou não a júri popular. A sentença será declarada após o julgamento.
As perspectivas preocupam. “O Ministério Público tem tido uma boa atuação, porém, o caso deve ir a júri popular, que é formado por cidadãos comuns da sociedade. Mas a cidade de Valinhos é extremamente conservadora, muito identificada com o perfil do réu, e isso pode refletir no resultado, cujo veredito é soberano. No entanto, espera-se que a finalidade da ação penal seja alcançada, conforme requer o Ministério Público, com a procedência da ação e condenação do réu”, defende a advogada.
Inspiração
Devido a necessidade de isolamento social em meio à pandemia do coronavírus, as homenagens a Seu Luís não poderão ocorrer de forma coletiva entre os acampados do Marielle Vive.
Para marcar a data, um programa on-line será veiculado no Youtube e na página estadual do MST-SP a partir das 14h deste sábado (18) e contará com mensagens e depoimentos em memória do senhor que, aos 72 anos de idade, realizava o sonho de voltar a morar na roça.
Gerson Oliveira destaca que a solidariedade e presteza eram as características mais marcantes do pernambucano nascido no sertão do Cariri, que deixou um legado para a luta dos sem-terra.
“Assim como Marielle é uma força, uma inspiração para essa luta, o Seu Luís imortalizou esse espírito de solidariedade, de construção coletiva, de apreço aos vínculos construídos entre trabalhadores e trabalhadoras, mas também um exemplo do trabalho coletivo, como ele mesmo sempre fez”, diz.
Oliveira relembra aspectos simples do cotidiano no acampamento. “Era um dos primeiros a assumir as tarefas. Deu muito apreço para a construção e reforma da escola popular que hoje leva seu nome. Ele mesmo foi um educando dessa escola. Pouco tempo antes de morrer, estava escrevendo as primeiras palavras. Foi um sonho realizado antes do seu falecimento.”
Eterno guerreiro
Em entrevista ao Brasil de Fato, por ocasião dos 100 dias da morte de Seu Luís, a professora Cícera Alves Bezerra relembrou que o sem-terra não faltava nenhum dia das aulas de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
“Na véspera do acontecido, estávamos formando frases com as sílabas 'gue' e 'gui'. Jogamos algumas palavras e ele formou a frase: 'Eu sou guerreiro'. 'Eu vou pra guerra'. E, no outro dia, veio o acontecido, o assassinato dele. Chocou muito a gente. Quando voltamos aqui pra sala, as frases ainda estavam na lousa. Foi muito emocionante”, contou a professora.
Assim como outros acampados, o idoso de 72 anos era ensinado pelo método cubano para alfabetização de adultos “Sim, eu posso”.
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“Todo dia, no fim da aula, falávamos a palavra de ordem: ‘Sim, eu posso ler e escrever. Essa é uma conquista do MST’. E ele não conseguia fazer o ritmo e a gente ria muito. Quando ele estava começando a ingressar no ritmo, acabava”, rememora.
Oliveira, coordenador estadual do movimento, reforça o legado do nordestino. “Há um peso dessas palavras diariamente para nós. É um sentido que nos joga para frente, um compromisso. O mínimo que podemos fazer é dar seguimento a essa luta, é conquistar aquela terra para homenagear o Seu Luís”.
História
Criado um mês após o assassinato de Marielle Franco, em 14 de abril de 2018, o acampamento que leva o nome da vereadora é construído coletivamente. Grande parte do que existe hoje contou com a ajuda de seu Luís, que trabalhou como pedreiro por toda a vida.
De acordo com MST, o terreno tem pouco mais de 130 hectares e abriga 2.400 pessoas, cerca de mil famílias. No ano passado, o acampamento conseguiu a suspensão de um pedido de reintegração de posse mediante recurso apresentado ao Tribunal de Justiça de São Paulo, feito pela defesa das famílias e pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
O grupo Fazenda Eldorado Empreendimentos Imobiliários, que solicitou a reintegração, alega possuir um contrato de arrendamento das terras para criação de gado no local. No entanto, para o Tribunal de Justiça, que cancelou o primeiro pedido de despejo, não houve comprovação do uso da terra por parte dos supostos proprietários.
Novamente, houve sentença do processo em primeira instância, concedendo reintegração de posse no prazo de 15 dias, a qual foi novamente suspensa após recurso. Depois de audiência de conciliação infrutífera, os advogados responsáveis pela defesa dos acampados pediram a realização de uma nova sessão com a participação do município de Valinhos e do Ministério público local.
Confira reportagem em vídeo sobre o Marielle Vive:
Edição: Camila Maciel