Rio de Janeiro

MEMÓRIA

Opinião | Centenário da "Divina": conheça a trajetória de Elizeth Cardoso

Carioca foi um dos grandes ícones da "Era de Ouro do Rádio"; cantora desde criança, estourou aos 16 anos

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Elizeth nunca estudou canto, ela imitava as vozes de suas cantoras preferidas - Foto: Arquivo Nacional

Falar de Elizeth Cardoso é muito fácil por conta de várias biografias escritas e por inúmeras pesquisas que existem ainda mais, neste ano, em que a “Divina” completa 100 anos. 

Pensando cá comigo comecei a lembrar da minha infância a partir da década de 1960 quando estavam lançando o LP “Meiga”, de Elizeth Cardoso, que tem uma música de Dolores Duran intitulada “A noite do meu bem” um grande sucesso. 

Nasci, em 1952, num conjunto residencial do IAPC de Olaria, na zona norte do Rio de Janeiro. Um “condômino” de 484 apartamentos que tinha de tudo: escolas, posto médico, farmácia, mercearia, bar, leiteria, lavanderia, dentista, quadra poliesportiva e dois prédios onde funcionavam cursos, um cinema e dois salões que eram utilizados também para bailes e dois blocos carnavalescos o “Come e Dorme” e o “Come e Bebe”. 

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O “Come e Dorme” foi campeão de blocos no desfile de carnaval de 1965 em homenagem ao Quarto Centenário do Rio de Janeiro. Nesse mesmo ano foi lançado o LP “Quatrocentos Anos de Samba” na voz de Elizeth Cardoso. 

O desenho arquitetônico desse lugar permitia que circulássemos à vontade entre as casas e era possível ouvir, vinda das casas, músicas tocadas pelo rádio que nessa época era o meio de comunicação mais viável para todos os moradores. Passeávamos entre as casas e ouvindo as rádios e, entre os artistas, lá estava Elizeth Cardoso com sua voz aveludada divina. Sim, divina, sem sombra de dúvidas. Nos finais de semana tínhamos mais sonoridade porque as casas estavam abertas e entravam também as radiolas que nos permitiam ouvir os recentes lançamentos dos LP’s. 

Falar de Elizeth Cardoso como pessoa que desde cedo tinha o espírito iluminado por ter sua formação musical “de ouvido”, convivendo durante a infância com o carnaval de blocos e ranchos, serestas e reuniões de músicos na casa de Tia Ciata. Ouvinte assídua de rádio, conhecia bem o repertório de sua época, tendo por influência as cantoras Odete Amaral (1917-1984), Aracy de Almeida (1914-1988) e Marília Batista (1917-1990).

Carreira

Falar de Elizeth Cardos é lembrar do seu espírito empreendedor nesta narração do dicionário do Ricardo Cravo Albin. Com apenas cinco anos, subiu ao palco da antológica Sociedade Familiar Dançante Kananga do Japão e pediu para o pianista acompanhá-la na marchinha "Zizinha". Em 1930, aos 10 anos, começou a trabalhar para ajudar a família. Foi balconista, peleteira e cabeleireira. 

No aniversário de seus 16 anos, a família se reuniu na casa de uma tia da adolescente, a Tia Ivone. Para a festa, foram convidados vários amigos músicos: Pixinguinha, Dilermando Reis, Jacob do Bandolim, na época com apenas 18 anos, entre outros. 

Tio Pedro, o marido de Ivone falou certa vez para Jacob: "Olha aí, Jacob, a minha sobrinha aí, a Elizeth, sabe cantar algumas coisas. Que tal vocês ouvirem e organizarem um acompanhamento para ela?". Meio sem graça, a jovem Elizeth encantou a todos com sua voz. Jacob então a convidou para um teste na Rádio Guanabara, que foi o trampolim para sua carreira.
 
Anos mais tarde Sergio Bittencourt compõe a canção “Naquela mesa”, se tornando grande sucesso na voz de Elizeth Cardoso. Em 1940, a cantora trabalha como taxi-girl no Dancing Avenida, depois como crooner da orquestra do clube. É convidada para ir a São Paulo, onde canta no Dancing Salão Verde e na Rádio Cruzeiro do Sul. 

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Elizeth participa de um momento decisivo para a música popular, no qual convergem: a estética e o repertório da chamada “Era de Ouro do Rádio”, a invenção da bossa nova e a realização de espetáculos que se remetem a gêneros musicais considerados tradicionais. Parte de sua carreira vincula-se à fase em que o rádio é o principal meio de divulgação da música popular.

Ficou afastada das rádios de 1940 a 1947, quando então retornou à Rádio Mauá, segundo reportagem de Sérgio Cabral, escrita em 1961. Apesar de não ser vocalmente a versão que mais a represente por sua emissão ter se modificado ligeiramente com o passar dos anos, a escolha do samba-canção que versa sobre desilusão amorosa é característica de seu repertório e aponta para a intérprete que mais tarde se consolidou. Elizeth afirmou em entrevista à jornalista Ângela Maria Correa da Costa, do Jornal do Brasil, em 1968:

Quando se canta uma música alegre a gente precisa se transportar para o mundo. O ritmo já leva a gente. Mas o gênero romântico me atinge mais. As pessoas que me ouvem cantar, que me conhecem, sabem que é com a música romântica que me identifico. 

Elizeth nunca estudou canto, deve-se ressaltar, tendo como sua prática apenas a imitação de suas vozes preferidas quando começou a cantar: as de Odete Amaral, Araci de Almeida e Marília Batista. Elizeth contou à Hermínio Belo de Carvalho, em 1970, que gostava muito do repertório das três, que procurava imitar suas vozes e reconhecia suas preferências como detentoras de registros totalmente diferentes. Já ao jornalista Jorge Segundo, de O Globo, Elizeth comentou em 1976:

Comecei imitando as três. Tinha uma voz mais aguda do que hoje e conseguia alcançar o registro delas com facilidade. Depois, fui encontrando a maneira pessoal de cantar. Aliás, a voz não é a coisa mais importante numa cantora. Mais importante é uma interpretação que comova, além, evidentemente, da escolha do repertório. Eu sempre fui muito caprichosa com o repertório e creio ter sido esse um dos motivos pelos quais Elizeth Cardoso ainda está aqui de pé, como cantora.

Em entrevista recente ao Correio Brasiliense, a cantora baiana radicada em Brasília, Rosa Passos, que gravou um disco muito bem recebido pela crítica em homenagem à Elizeth Cardoso, em 2011, comentou sobre a importância da "Divina." “Para mim, Elizeth, como bem fala Chico Buarque, é a mãe de todas as cantoras. Ela teve uma importância muito grande na vida das cantoras contemporâneas. Ela influenciou muita gente e foi muito importante, inclusive, porque apoiava novos compositores, ajudava os músicos. E estava sempre cantando o que havia de melhor da música brasileira de qualidade”, disse.

Já a artista Anahi, que vive há mais de 10 anos na capital federal e costuma incluir o repertório da carioca nas apresentações na cidade, destacou, para a mesma reportagem do Correio Brasiliense, a influência que Elizeth exerce ainda hoje na música brasileira. “Acho que não tem como falar sobre cantoras no Brasil e não falar da Elizeth. Ela é uma grande referência. Foi a maior cantora de rádio do país e foi ultrapassando gerações. Ela passou por várias fases da música brasileira e conheceu pessoas incríveis”, contou.

Apesar de ter viajado o mundo, e cantado em todos os países, só faltava um, que era seu sonho: conhecer o Japão. No fim dos anos 70, ela o visitou pela primeira vez e ficou encantada. Passou a cantar lá com frequência, e passou a viajar a turismo, visitando diversas cidades.

Últimos anos

Em 1987, recebeu o convite para uma excursão musical para o Japão. Após o término dos espetáculos, ficou algumas semanas passeando pelo país, quando, hospedada no seu hotel, Elizeth se sentiu muito mal, com tonteiras, dores estomacais, até que vomitou sangue e desmaiou. 

Um dos funcionários do hotel a achou caída, a cantora foi internada às pressas. Rapidamente, após uma endoscopia, os médicos japoneses diagnosticaram um câncer no estômago, uma cirurgia emergencial foi realizada para conter o sangramento e diminuir o tumor. Seus filhos foram visitá-la, e, após algumas semanas internada, pôde voltar ao Brasil, acompanhada deles. 

Elizeth passou a se tratar com um gastroenterologista. Apesar de tomar medicamentos e fazer os mais avançados tratamentos contra a doença, o tumor havia diminuído, mas, pouco tempo depois, havia crescido mais, e se espalhado. Elizeth passou os últimos três anos de vida a base de muitos medicamentos, havia sofrido perda de peso, além de fortes dores estomacais e abdominais, mas não deixou se abater, apesar de descansar mais, se alimentar melhor e cancelar muitos shows, não conseguia ficar longe do que amava: a música. 

Quando conseguia ter forças para andar, com ajuda, subia ao palco e fazia shows, e, muitas vezes, não conseguia ir até o final, mas o público era compreensivo. Não suportando mais tanto sofrimento, e já internada, a cantora faleceu no dia sete de maio de 1990, na Clínica Bambina, no bairro de Botafogo, no Rio de Janeiro. Elizeth Cardoso foi velada no Teatro João Caetano, onde compareceram milhares de fãs. Foi sepultada, ao som de um surdo portelense, no Cemitério da Ordem do Carmo, no Caju. 

*Luiz Carlos Nunuka é produtor cultural e conselheiro do Instituto Cultural 100% Suburbano

Edição: Mariana Pitasse