Durante a pandemia, agricultoras do Rio de Janeiro mostram bem quem cuida, se junta e desata os laços das desigualdades que se intensificaram nesse período. O cenário seria mais desolador se não fosse a intensificação também das articulações solidárias protagonizadas por mulheres nas favelas e periferias do Rio de Janeiro, driblando diversos obstáculos.
Uma das dificuldades é onde comercializar os produtos da agroecologia. Desde o início do isolamento social, diferentes decretos da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro suspenderam e retomaram as feiras livres. Algumas, contudo, não voltaram a acontecer. É o caso da Feira Alternativa da Olaria, cadastrada como espaço de venda de artesanato, e da Feira Agroecológica da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), já que o campus não retomou seu funcionamento normal.
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A culinarista e agricultora urbana Ana Santos, do Complexo de Favelas da Penha, zona Norte do Rio, conta que esses eram os dois espaços principais de escoamento da sua produção de mudas e sementes, feita junto ao Centro de Integração da Serra da Misericórdia (Cem). Em busca de outro modo de distribuição, o Cem começou algo que nunca tinha feito: tele-entregas de insumos de plantio e alimentos, que chamou de “SOS Agricultura Urbana”. Para as favelas, a distribuição de mudas e sementes é gratuita. Além da produção nos quintais, uma escadaria do Complexo da Penha se transformou em lugar de cultivo.
“As mudas servem para a produção de alimentos nos quintais das favelas e na sede do Cem. Também geram renda e fortalecem a agricultura urbana, que é nosso principal foco. Então esse SOS surgiu na pandemia e transforma completamente nossa forma de escoar a mercadoria, de ver o produto, além de nos conecta a uma rede online que tem sido muito desafiante, porque, diferente das feiras, a gente não tem como falar sobre a muda”, relata Ana Santos, completando que as atividades são feitas em rede, através do Arranjo Local Penha, que conecta parceiros para promover a soberania alimentar e a agricultura urbana no Complexo da Penha.
A possibilidade de plantar o próprio alimento é uma das maneiras de combater a insegurança alimentar durante a pandemia. A Teia de Solidariedade da Zona Oeste, formada por diferentes grupos e movimentos sociais, entre eles a Coletiva Popular de Mulheres da Zona Oeste, pensou em outra saída: a distribuição dos próprios alimentos. Atualmente, 25 famílias de baixa renda das comunidades de Santa Luzia e Cascatinha recebem cestas de alimentos frescos. A iniciativa tem o apoio da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
“Em geral, são as mulheres as chefes das famílias que recebem as cestas, muitas vezes trabalhadoras que ficaram em casa, com os filhos fora da escola”, conta a agricultora Giovanna Berti, que faz parte da Coletiva e da Articulação de Agroecologia do Rio de Janeiro (Aarj). Ela é uma das organizadoras da Feira da Roça, em Vargem Grande, zona Oeste do Rio, que também passou a comercializar produtos a partir de pedidos via internet. Quem compra pode ainda colaborar para as cestas que são doadas. Segundo ela, a venda online trouxe “várias dificuldades. Tem toda uma questão de logística e de organização que, muitas vezes, os agricultores não dominam”.
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O fechamento das feiras, segundo Emilia Jomalinis, educadora e doutoranda em Ciências Sociais, Desenvolvimento e Agricultura, está relacionado a um discurso que criminaliza a produção agroecológica. “Mesmo nesse momento de crise sanitária, não se pode cair no entendimento de que o supermercado é o mais seguro. Produtos de base familiar nem sempre vão se adequar aos critérios de vigilância sanitária, criados pensando numa lógica industrial, mas que são produtos mais saudáveis”, disse.
Em meio à pandemia, uma resolução do governo municipal carioca do dia 10 de junho revogou o Regimento Interno do Circuito Carioca de Feiras Orgânicas e extinguiu seu Conselho Gestor e sua Governança, que existem desde 2012. Segundo a Aarj, a ação impacta mais de 200 agricultores e produtores. A Prefeitura afirma que a decisão não prejudica o funcionamento das feiras.
Com todos os percalços, as “feiras online” têm funcionado e surpreendem as próprias agricultoras. “O SOS ganhou um corpo muito grande. A gente agora tem entregas quinzenais na Leopoldina, região central, e entregas na Feira Orgânica da Glória, na zona Sul do Rio. Como eu já chegava até a Glória com a distribuição de alimentos feitos com jaca verde, as pessoas pediram para a gente estender para outros bairros. Fizemos uma primeira experiência que deu muito certo”, comemora Ana Santos.
Agora, moradores da zona Sul já podem adicionar ao seu cardápio conserva de pimenta biquinho, molho de pimenta bode com manga e linguiça de jaca, além de se alimentar de frutas, verduras e legumes frescos. Comida de verdade plantada, preparada e distribuída por mulheres faveladas e periféricas.
Impacto para as mulheres
“A pandemia evidencia ainda mais o protagonismo das mulheres nas lutas dos territórios, mas ao mesmo tempo isso leva a uma sobrecarga enorme e com impacto na saúde delas. No limite, estar engajada numa articulação de distribuição de cestas, por exemplo, significa se expor ao risco de contaminação”, lembra Emília Jomalinis. Não à toa, Giovanna Berti e um filho dela tiveram sintomas de covid-19, porém sem confirmação devido à falta de testes com preços acessíveis. Ana Santos conta que chegou a adoecer por fadiga devido ao excesso de tarefas.
Os casos não são pontuais. As ONGs Think Olga e Think Eva lançaram um relatório sobre o impacto da pandemia para mulheres com foco em três temas: violência, saúde e trabalho. Além da sobrecarga com serviços não remunerados, elas são maioria entre profissionais de saúde (70% do quadro profissional na área no Brasil).
As mulheres também sofrem mais violência doméstica: no Rio de Janeiro, no dia 23 de março, com apenas seis dias do primeiro decreto de isolamento social, o número de denúncias cresceu 50% segundo o Plantão da Justiça Estadual. Elas são maioria ainda nos trabalhos pior remunerados – como empregadas domésticas, por exemplo –, o que as deixa mais suscetíveis à vulnerabilidade econômica com a pandemia. A “Síntese de Indicadores Sociais”, levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2018, aponta que o trabalho doméstico representa os rendimentos médios mais baixos entre os serviços remunerados no país e aquele com maior disparidade de gênero. É realizado por 5,8 milhões de mulheres e 475 mil homens.
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Diante deste cenário, a saúde das mulheres está abalada. Em pesquisa elaborada pela empresa Catho, com cerca de 7 mil entrevistadas, 60% das mães brasileiras afirmaram sentir os impactos da quarentena na saúde emocional. O problema, porém, é mundial. Pensando nisso, a ONU Mulheres elaborou uma série de recomendações para seus Estados-membros em relação às necessidades femininas no combate à Covid-19. Entre elas, estão “desenvolver estratégias de mitigação que visem especificamente o impacto econômico do surto nas mulheres e desenvolver a resiliência das mulheres” e “proteger serviços essenciais de saúde para mulheres e meninas”.
Também atentas à saúde, a partir dos relatos trocados no grupo de trabalho (GT) Mulheres da Aarj acerca de sobrecarga e perda de pessoas próximas vítimas da covid-19, o GT criou a campanha “Cesta Cuidar-se”. São cestas com itens como tinturas, pomadas, compostos e sabonetes caseiros doadas para mulheres que estão na linha de frente do combate à covid-19 em suas comunidades. O kit é feito a partir de práticas populares e tradicionais que colaboram para a saúde e o autocuidado. As primeiras 70 cestas já foram entregues, com recursos do Instituto Políticas Alternativas para o Cone Sul (Pacs). Agora, o GT segue sua campanha de arrecadação para que outras mulheres tenham acesso gratuito aos produtos.
Edição: Mariana Pitasse