O senado aprovou no dia 24 de junho o Novo Marco Legal do Saneamento Básico (PL 4162/2019), que cria condições para o capital privado investir e operacionalizar o saneamento básico, possibilitando a concorrência no setor. Uma das justificativas para a aprovação desse PL é a precariedade do serviço de saneamento que exclui a maior parte dos brasileiros desse direito, que engloba não somente esgotamento e abastecimento, mas também drenagem e resíduos sólidos.
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Mas será que o Novo Marco Legal do Saneamento Básico vai na raiz do problema? Tentarei aqui fazer um resgate histórico sobre o saneamento (no que se refere ao abastecimento e esgotamento) no Brasil, com foco na cidade do Recife, explicar as confusões institucionais e fragilidades do modelo atual, detalhar as principais mudanças que esse Novo Marco Legal do Saneamento Básico propõe e levantar as possibilidades para uma gestão realmente democrática do saneamento, partindo do princípio que a água é um bem comum e o saneamento é um direito.
História do Saneamento do Brasil
As primeiras formas de abastecimento de água no Brasil são as mais simples: buscar a água diretamente na fonte. Esse trabalho era feito principalmente por pessoas que eram escravizadas. Ainda no período colonial, o país começa a receber as primeiras empresas que seriam responsáveis pelo fornecimento de água, mas só teriam acesso ao serviço quem tinha condições de pagar por ele. Quem não tinha condições, seguia com o antigo modelo de buscar água na fonte. Em Recife, a primeira empresa responsável por esse serviço foi a Companhia Beberibe, que captava as águas do Açude do Prata e levava a água encanada para as casas mais abastadas e também para treze chafarizes na área central da cidade que, embora as pessoas tivessem que ir buscar, elas tinham que pagar pelos baldes d’água.
Em 1869, o Governo Imperial concede à Recife Drainage Company Limited (de capital inglês) o direito para explorar os serviços de esgotamento sanitário e tratamento de esgoto da cidade. O sistema também atendia as pessoas mais abastadas e basicamente ligava as latrinas à uma rede de esgotos que levava os dejetos até uma estação de tratamento antes de despejar, já tratado, no rio Beberibe. Antes desse sistema, durante quase 300 anos, os dejetos eram despejados nos rios sem nenhum tipo de tratamento e eram levados em tonéis carregados por pessoas escravizadas que, por conta da ureia e amônia que pingavam nos seus corpos, ficavam com as peles marcadas e eram chamados de “tigres” ou “tigrados”. Esse segundo adjetivo, inclusive, já foi utilizado algumas vezes pelo ex-ministro da educação, Abraham Weintraub, como forma de insultar os críticos à sua gestão.
O fato é que as duas empresas (Companhia Beberibe e Recife Drainage Company Limited), além de não conseguirem suprir a demanda de uma população que crescia cada vez mais com o passar do tempo, ofereciam um serviço de péssima qualidade, com casos de intoxicação no abastecimento de água e ausência de manutenção no serviço de esgotamento que provocava transtornos constantes nas casas e nas ruas. Por conta disso, no início do século XX, o governador Herculano Bandeira decide romper o contrato com as empresas, estatiza os serviços de abastecimento e esgotamento e cria o Departamento de Saneamento do Estado (DSE).
O DSE deixa de existir no ano de 1971, quando o Governo do Estado cria a Compesa (Companhia Pernambucana de Saneamento) que possuía duas subsidiárias, a Saner (Saneamento do Recife) e a Sanepe (Saneamento do Interior de Pernambuco). A Compesa atendia a uma orientação imposta pelo governo da Ditadura Militar de criação de companhias estaduais de saneamento. Estas seguiam as orientações do Plano Nacional de Saneamento e eram financiadas pelo Banco Nacional de Habitação. Esse modelo possibilitou avanços reais na área do saneamento, mas ainda ficou abaixo da meta estabelecida pelos próprios militares.
Da Constituição Federal ao Golpe
A Constituição Federal de 1988 coloca a responsabilidade da gestão dos recursos hídricos para União e estados. Já o saneamento torna-se responsabilidade dos municípios que atuariam com as estatais de saneamento em sistema de concessões. Entretanto, essa responsabilização da gestão municipal pelos serviços de saneamento não foi acompanhada das condições orçamentárias e técnicas para a realização das obras e cumprimento das metas. Além da confusão institucional, outro fator importante que vale destacar foi a venda de ações de muitas companhias estaduais durante os anos 1990, na onda privatista/neoliberal. Isso contribuiu para que as companhias, que já não conseguiam atender de maneira adequada os usuários, passassem a seguir também as orientações dos acionistas e voltassem as suas atividades para o que era mais lucrativo. E ser mais lucrativo, nem sempre, significa levar o serviço para lugares que não possuem rede de saneamento, prestar um serviço de qualidade onde já existe e muito menos cobrar uma tarifa justa e acessível.
De acordo com o balanço anual de 2019 divulgado pela Compesa, a empresa obteve um lucro líquido de R$194 milhões em 2018 e foi eleita pelo Anuário Época de Negócios 360º a campeã do Setor de Águas e Saneamento. Será que a avaliação leva em conta que 2,5 milhões de pernambucanos não têm acesso à água, 6,7 milhões não têm acesso ao esgotamento sanitário, as comunidades que passam mais dias sem água na torneira do que com água e que a maior parte do esgoto cai sem nenhum tipo de tratamento nos rios que cortam a cidade?
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A responsabilidade dos municípios pelo saneamento passou 25 anos sendo contestada, pois muitos estados, por serem os responsáveis pelas companhias de saneamento e parte da gestão dos recursos hídricos, defendiam para si a titularidade dos serviços. Esse impasse durou até o ano de 2013, quando o STF manteve os municípios como titulares dos serviços de saneamento, confirmando o que a Constituição já determinava.
Nesse mesmo ano o Governo Federal lançou o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab), que definia metas para a universalização do saneamento em até 20 anos, estipulava um montante de R$300 bilhões para a execução das obras e traçava diretrizes gerais para que estados e municípios elaborassem seus planos de saneamento. O Plansab foi fruto de um processo iniciado em 2007 (lei nº 11.445) e contou com as fases de diagnóstico, formulação, elaboração e consulta pública. O processo tinha como finalidade traçar um panorama geral acerca do saneamento no Brasil e permitir que o tema fosse discutido pela sociedade. Para isso foram realizados seminários regionais, audiência pública no Senado e nos Conselhos que discutiam temas que se relacionavam com o saneamento (Cidades, Saúde e Meio Ambiente). Essa fase de planejamento foi coordenada pelo Ministério das Cidades (extinto por Bolsonaro).
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado em 2007 pelo governo Lula, garantiu uma retomada nos investimentos em obras de saneamento e diversas prefeituras conseguiram captar recursos para a realização das obras. No entanto, algumas obras ficaram paradas ou foram executadas de maneira inadequada por falta de capacidade técnica dos órgãos municipais e pela ausência de diretrizes nacionais para a realização das obras. Essas questões deveriam ser solucionadas com a implementação do Plansab, que possuía meta para a apresentação dos planos por parte dos estados e municípios, além de avaliação anual e revisão a cada quatro anos.
Temos nesse cenário a Constituição promulgada em 1988 que torna os municípios responsáveis pelos serviços de saneamento, um período de 25 anos até a confirmação da titularidade por parte do STF e a implementação de um Plano Nacional que institui diretrizes para a elaboração dos planos municipais e estaduais de saneamento. Repito. Foram 25 anos para estabelecer esse marco.
Em 2016 a presidenta Dilma Rousseff (PT) sofre um golpe e Michel Temer (MDB) assume colocando em pauta a necessidade de privatizar o setor de saneamento. No mesmo ano o Congresso aprova a Emenda Constitucional 95, a que determina congelamento nos investimentos públicos por 20 anos, inclusive na área do saneamento. Em 2019 a Câmara dos Deputados apresenta o Projeto de Lei (4.162/2019) para instituir um novo marco legal do saneamento básico e no dia 24 de junho de 2020, o PL é aprovado no Senado. Mas o que muda com o novo marco?
O Novo Marco Legal do Saneamento Básico
A principal justificativa para a aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico é atrair investimentos do setor privado para a área de saneamento tendo em vista a quantidade de pessoas que são excluídas desse direito, com uma estimativa de investimento de R$700 bilhões no setor e uma meta de universalização do saneamento a ser cumprida até o ano de 2033, com 99% da população com acesso à água potável e 90% com acesso à rede de coleta de esgoto com tratamento.
Para isso, o Novo Marco torna obrigatória a abertura de licitação por parte dos municípios para a contratação de empresa de saneamento, exigindo a concorrência entre empresas públicas e privadas. Essa prática já poderia ser realizada pelos municípios (6% são atendidos por empresas privadas), mas os que defendem o Novo Marco afirmam que a sua aprovação aumenta a “segurança jurídica”, que torna mais atrativo para o setor privado o investimento no setor e abre o precedente para a privatização das estatais. Além dessas justificativas, existe aquela que afirma que o setor privado é mais eficiente e que a concorrência é benéfica para a melhoria na qualidade do serviço e cobrança justa da tarifa para o usuário. Todas essas prerrogativas seriam garantidas pelo órgão regulador federal, nesse caso a Agência Nacional das Águas (ANA), que acompanharia os processos licitatórios, o cumprimento das metas, a qualidade dos serviços e o valor da tarifa.
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O grande problema em todas essas justificativas é que elas são deslegitimadas pela história, visto que muitos municípios em diversos países que concederam o serviço de saneamento para o setor privado estão fazendo o processo inverso: estão reestatizando o saneamento. Diversos países da Europa até o final do século 19 seguiam o modelo inglês de saneamento (com empresas privadas), mas com o crescimento populacional e os problemas ocasionados pela ausência de um sistema de saneamento eficiente, perceberam que as empresas privadas não estariam aptas e que o saneamento só seria universalizado por meio da ação do Estado. A privatização no setor se deu entre os anos 1980 e 1990 do século 20, com uma rede de saneamento já consolidada. As razões para as reestatizações são, principalmente, a piora na qualidade do serviço prestado e o aumento dos preços das tarifas.
Como vimos anteriormente, esse processo de estatização também ocorreu em Recife, mas no início do século 20, e pelos mesmos motivos da inaptidão do setor privado de universalizar o saneamento. A grande diferença (e essa diferença é fundamental) é abrir o saneamento para o setor privado (com a possibilidade de privatização das empresas estatais de saneamento) com uma estrutura tão precária quanto a nossa. Se com uma estrutura muito mais consolidada, o setor privado se mostrou ineficaz em outros países, o que poderá ocorrer no Brasil?
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Outra questão importante é a que trata da concorrência. Como falar em concorrência em um serviço que só funciona por meio de monopólio? Diferentemente da rede de telefonia (esse exemplo que os liberais adoram), o usuário do serviço de saneamento não tem opções de diversas empresas e escolher abrir a torneira com o plano melhor, o que ofereça o melhor serviço, ou o mais barato. O aumento no valor da tarifa é a regra! No Chile, que privatizou o saneamento nos anos 80, 80% da população da região de Petorca não tem água nas torneiras porque a empresa de abastecimento favorece a agroindústria. A prioridade é, em via de regra, o que proporciona a maior lucratividade.
Água não é mercadoria!
Devemos pensar o saneamento como um direito que envolve vários outros. Envolve moradia, trabalho, educação, lazer e, principalmente, saúde. De acordo com a OMS, para cada R$1 investido em saneamento, R$4 são economizados em saúde e 80% das doenças em países em desenvolvimento (como o Brasil) são causadas pela precariedade do saneamento. Pessoas morrem todo ano em decorrência da dengue, zika e chikungunya. Doenças como diarreia, cólera e outros problemas gastrointestinais estão relacionadas com o saneamento precário.
Por conta dessas doenças, muitas vezes as pessoas precisam se ausentar do trabalho e da escola. Por falta d’água, o trabalho doméstico (que não é valorizado, muito menos remunerado) se torna ainda mais cansativo. Nesses tempos de pandemia de covid-19, em que ouvimos a todo instante a importância de lavar as mãos, a falta de acesso à água ficou ainda mais evidenciada e é inevitável pensar que vidas seriam poupadas se as pessoas tivessem algo tão essencial.
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A água é um bem comum e o serviço de saneamento universalizado é fundamental para pensar o desenvolvimento de qualquer sociedade. O modelo que estava em vigor tinha os seus problemas, mas privatizar não é a solução. É preciso pensar em um modelo que tenha como princípios a universalização do acesso, tarifas acessíveis e participação social nos processos de formulação, implementação e controle. Pensar a água como um bem comum, passar por compreendê-la como um recurso finito que deve ser utilizado de maneira eficiente, reduzindo o desperdício (a maior parte ocorre na captação e distribuição), utilizando tecnologias de aproveitamento de águas pluviais, investindo em tratamento de esgoto, na recuperação de rios e lagos e na preservação das áreas de lençóis freáticos.
Não existe resposta fácil para temas tão complexos. A aprovação do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, em meio à pandemia, sem o debate necessário que o tema requer me faz lembrar da fala do ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles naquela famosa reunião ministerial. O ministro afirmou que a pandemia seria uma ótima oportunidade para passar as “reformas infralegais de desregulamentação”. Um governo que não tem feito nada para combater a crise sanitária, aproveita para “passar a boiada” de projetos que deverão piorar ainda mais a vida do povo. Continuemos atentos e mobilizados.
*Marcones Oliveira é geógrafo, mestre em políticas públicas e professor do Cursinho Popular do Morro da Conceição.
Fonte: BdF Pernambuco
Edição: Rodrigo Chagas e Vanessa Gonzaga