Se não fosse pela pandemia da covid-19, teria chegado aos cinemas, agora em junho, o documentário sobre uma trajetória que foi apagada da história do cinema mundial por décadas, a da francesa Alice Guy-Blaché, primeira mulher a ser diretora, produtora, roteirista e diretora de estúdio no final dos 1800, bem colada no início do surgimento do cinema.
Mesmo tendo sido pioneira em diversos procedimentos e invenções estéticas e narrativas, quando o cinema ainda engatinhava para se afirmar e se legitimar como uma arte frente às outras artes (literatura, teatro, pintura, música, ópera, dança entre outras), foi a história de diretores de cinema homens que se firmou nos livros e no imaginário dos espectadores.
Nos Estados Unidos, Hollywood, em sua era de ouro que vai dos anos 1930 aos 1960, reforçou na tela a ideia da mulher como objeto. A teórica feminista Laura Mulvey sustenta, em um influente artigo dos anos 1970, que o machismo da indústria cinematográfica era tão forte que fazia com que até mesmo mulheres espectadoras olhassem as atrizes como objeto.
No Brasil não foi diferente, a história do cinema é a história de diretores homens (e brancos).
Essa história pode mudar: no ano passado foi lançado o livro “Mulheres de cinema”, organizado pela pesquisadora Karla Holanda e que traz um panorama mundial do cinema pela ótica feminina.
A hora da estrela
E já que estamos falando sobre o olhar feminino na sétima arte, uma dica interessante e acessível é o filme “A hora da estrela”, da diretora Suzana Amaral, falecida no último dia 25. A obra, que ganhou em 1986 o prêmio da crítica do Festival de Berlim e o Urso de Prata para a atriz Marcélia Cartaxo, sempre aparece na lista de melhores filmes brasileiros de todos os tempos.
Para quem está reconhecendo o título da obra, sim, trata-se de uma leitura do romance “A hora da estrela”, lançado em 1977 e de autoria da escritora Clarice Lispector. Quem lá leu o romance deve lembrar que ele tem um narrador homem, de classe média, carioca, e que está se questionando o tempo todo se tem autoridade (“lugar de fala” seria o termo atual) para contar a história da pobre nordestina Macabéa.
Falei em leitura, e não de uma adaptação, porque Suzana Amaral, em seu filme, retira da história o narrador Rodrigo S.M., e privilegia a trajetória de Macabéa, recém-chegada ao Rio de Janeiro, seu namorado Olímpico (José Dumont), suas dificuldades e seu sonho de encontrar o estrelato prometido por uma cartomante interpretada por Fernanda Montenegro.
Mulheres brasileiras
Ainda sobre a história das mulheres por trás das câmeras, ela quase não se alterou nos últimos 40 anos.
Se nos anos 1980 os filmes brasileiros tinham menos de 20% de direção feminina, nos dias atuais esse vergonhoso número se repete. Se pensarmos em diretoras negras, podemos contar nos dedos de uma mão em toda a história do cinema brasileiro.
A falta de política séria de preservação dos filmes brasileiros, desde o início dos 1900, fez com que muitas obras desaparecessem. Cléo de Verberena é a pioneira brasileira de que se tem notícia, nos anos 1930. Na época, os jornais perguntavam ao leitor se ele “se submeteria à direção de uma senhora”, em uma matéria sobre o filme “O mistério do dominó preto”.
Nos anos 1960, o Cinema Novo também ficou conhecido por ser um movimento essencialmente masculino. Mas é nessa época que uma diretora chamada Helena Solberg começa a filmar. E antes disso já havia nomes relevantes, como os de Gilda de Abreu e Carmen Santos entre os anos 40 e 50.
A partir dos anos 1970, mulheres contestaram o ponto de vista masculino, é o caso de Ana Carolina com “Mar de Rosas” (1979), filme de tons surrealistas e sem nenhum respeito ao patriarcado, com Norma Bengell, Cristina Pereira, Hugo Carvana, Ary Fontoura, Otávio Augusto e Myriam Muniz
Tata Amaral, Anna Muylaert, Lais Bodanzky, Petra Costa, Helena Ignez, Carla Camurati, Eliane Caffé, Lúcia Murat, Daniela Thomas, Maria Augusta Ramos, Marina Meliande, a Guarani Mbya Patrícia Ferreira, Juliana Rojas e Gabriela Amaral Almeida são apenas algumas das diretoras talentosas do nosso cinema e que merecem ter seus filmes vistos pelo público.
Edição: Mariana Pitasse