Rio Grande do Sul

Coluna

Ainda precisa morrer alguém? (Muss noch Jemand sterbe?)

Imagem de perfil do Colunistaesd
O presidente Jair Bolsonaro durante quarentena depois de anunciar a contaminação pelo covid-19 - Foto RS/Fotos Públicas
Os cuidados de governos, de especialistas, os cuidados de cada uma e cada um são fundamentais hoje

Ao lado da casa de mamãe, Santa Emília, Venâncio Aires, interior do interior do Rio Grande do Sul, tem um matinho no qual ninguém nunca mexeu, logo após o parreiral das boas uvas e vinhos e do velho banheiro de madeira, daqueles das antigas. Tem árvores centenárias, algumas dão frutos, como coquinhos, uvas japonesas, três grandes taquareiras e uma fonte que salvava a grande família em tempos de muita seca, anos 1950/1960. Os melhores momentos de criança eram os nossos piqueniques no matinho, vez que outra a cada ano, em tempos de sol e calor, toda família reunida, às vezes primos e primas. Fazíamos um churrasquinho debaixo das árvores, tomávamos um suco, papai saboreava o vinho produzido por ele. Para nós, guris e gurias da roça, mesmo estando a cem metros de casa, era como ir uma temporada na praia, ou ir para a cidade, que a gente mal conhecia. 

A recomendação, ou melhor, a ordem era direta: não irmos no matinho a qualquer hora, e sozinhos. O perigo, segundo os mais velhos, eram as cobras, especialmente, e outros bichos. Não sabíamos distinguir uma cobra verde, não venenosa, de uma cobra coral, mortal. Eu, o filho mais velho, que detesto cobras, era o que mais seguia os conselhos, mas nem sempre. Não acreditávamos muito nos possíveis perigos. De vez em quando nos aventurávamos, até porque tinha uma passagem pelo matinho, ao lado da fonte, para o potreiro e a casa do primeiro vizinho.

Se papai Léo, mamãe Lúcia, vó Gertrudes ou tia Leonida nos enxergassem pelos lados do matinho, professavam a frase mortal, em alemão, língua do cotidiano: “Ainda tem que morrer alguém mordido de cobra ou atacado por outro bicho, pra vocês aprenderem.” Felizmente, nunca ninguém foi mordido. No máximo, alguns arranhões de galhos de árvores ou de espinheiras, porque a gente brincava de esconde-esconde, saía correndo no meio das árvores e arbustos e se escondia no meio das taquareiras.

A história da infância tem a ver com o que acontece hoje no Brasil. Mil mortes diárias nos últimos dias por causa da pandemia do coronavírus e muitas pessoas felizes da vida enchendo praias e ruas, querendo que o comércio e tudo mais seja reaberto. Ninguém quer ficar isolado dentro de casa, longe do matinho sedutor. O tempo de quarentena está esgotando a paciência de quem não suporta mais olhar o dia inteiro a cara das pessoas mais amadas, ou fazer as mesmas tarefas todos os dias ‘confinado’, ou participar de ‘trocentas lives’, conversas, reuniões via redes sociais. Todo mundo quer luz, quer sol, quer sentir o vento batendo na cara, e respirar ar puro.

E há quem não acredite ou faça troça dos perigos do matinho, como o presidente da República, sua família e entorno. E sai abraçando todo mundo, até o dia em que a cobra venenosa saiu de debaixo das folhagens e mordeu o pé do menino incauto e imprudente. Isto é, a pandemia ‘mordeu’ o presidente.

No nosso caso de crianças irrequietas e felizes, as eventuais consequências do pouco cuidado recairiam apenas sobre nós mesmos e a família. Mas as consequências da irresponsabilidade de um presidente da República recaem sobre o conjunto da sociedade, que se sente autorizada a não respeitar regras e leis, a não ter cuidados. Que importam mais mortes? ‘E daí?’, perguntou o presidente.  Quando cidadãs e cidadãos desrespeitam a orientação sanitária, seguindo o presidente da República, colocam em risco outras vidas, muitas vidas.

A vontade é de dizer, como a voz de papai e da vó Gertrudes, neste caso amorosamente, mas avisando e repreendendo: ‘tem que morrer alguém para vocês aprenderem’. Aprenderem a cuidar de si, aprenderem a cuidar das outras e dos outros, aprenderem a cuidar da natureza e do meio ambiente. As vozes deles eram de preocupação com nossas vidas. Sabiam dos perigos, conheciam cobras e lagartos, na expressão popular. Os bichos que podiam ameaçar seus filhos estavam escondidos e poderiam morder ou até matar.

Os cuidados de governos, de especialistas, os cuidados de cada uma e cada um são fundamentais hoje. Seja em relação à pandemia, como em relação à vida, à democracia, à boa e saudável convivência em sociedade.

Papai, mamãe não queriam a morte de ninguém, por óbvio. Era uma expressão de cuidado, a nos chamar à razão. Ninguém quer a morte de ninguém, seja quem for, adversário político, até inimigo. Mas eles teriam fracassado se algum de seus filhos tivesse morrido por mordida de cobra no matinho.

Todas e todos são responsáveis por todas e todos. Todas e todos, inclusive o presidente da República, devem respeitar as regras do jogo, as leis e as práticas da boa convivência, ou mesmo, no limite, as ‘leis’ da sobrevivência na selva, ou no matinho. Se for o caso, serão ‘obrigados’ a voltar para casa, obedecendo à voz de quem sabe das coisas. Não o fazendo, ficarão ‘confinados’ na cozinha ou no quarto sem sair por uma semana, como por vezes acontecia conosco.

No caso das regras sociais, das leis e da Constituição, havendo desrespeito, serão julgados, condenados e ‘confinados’ na cadeia. Vale para o presidente da República e sua família. Vale para os militares, que não são donos da bola do jogo, ou do matinho. Vale para pastores, padres e pregadores, mesmo que digam que estão pregando a verdade absoluta ou divina.  Vale para governos eleitos pelo povo. Vale para qualquer cidadão e cidadã que viva em família e em sociedade.

Quando a voz da razão chamava, voltávamos correndo para a paz e o silêncio da casa. A família seguia sua vida de trabalho na roça, seu cuidado com os jovens e sua vida em comunidade. Os piqueniques aconteciam, para nossa felicidade. Os nove filhos de papai Léo e mamãe Lúcia estão vivos e sãos em 2020.

Edição: Katia Marko