Desigualdade

Enquanto ricos festejam no Leblon, trabalhadores enfrentam aglomeração no BRT do Rio

Passageiros reclamam do fechamento de estações, controle de filas de entrada e aglomerações nos ônibus

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Passageiros reclamam de aglomeração nos corredores do BRT - PMRJ

Em Bonsucesso, bairro da Zona Norte do Rio, o corredor do BRT, um ônibus articulado com corredor exclusivo, foi inaugurado em 2014 e começou a fazer parte da rotina dos moradores. A auxiliar administrativa Katia Silva passou a embarcar num articulado bem próximo à sua casa, na Estação Cardoso de Moraes, e em meia hora estava no Terminal Fundão. Apesar de cheio, era rápido. Para completar o trajeto até o trabalho, Katia precisava pegar um ônibus comum para, enfim, chegar ao destino, na Ilha do Governador, onde trabalha como auxiliar administrativa.

Mas, em maio de 2020, bem no meio da pandemia de coronavírus, dezenas de estações foram fechadas pela prefeitura e pelo consórcio que gere o BRT. Entre elas, as paradas de Olaria, Cardoso de Moraes e Santa Luzia no corredor Transcarioca.

Assim, o entorno dos bairros de Bonsucesso e Ramos – onde moram mais de 60 mil pessoas – ficou sem acesso ao BRT. O tempo de Katia até o trabalho dobrou e ela tem que usar uma van clandestina e um ônibus para ir à Ilha.

As estações de Katia estão entre as 9 que foram fechadas por vandalismo. Mas, ao mesmo tempo, outras 27 estações foram fechadas para tentar ampliar o isolamento social e reduzir o contágio. No entanto, a ação teve o efeito contrário: os ônibus do BRT continuam superlotados e usuários como Katia têm que usar vans clandestinas, lotadas e com pouca circulação de ar para substituir o transporte. A viagem, que antes durava cerca de 30 minutos, passou a ter mais de uma hora.


Com estações fechadas em meio à pandemia, Katia Silva leva o dobro de tempo para chegar ao trabalho / Arquivo pessoal

“Eu corro muito mais risco na van do que andando de BRT. É um espaço bem pequeno e abafado, com um ao lado do outro”, lamenta Katia.

No total, 26 estações em três corredores permanecem fechadas desde 25 de março e sem previsão de reabertura. Usuários e pesquisadores alertam que isso contribui com as aglomerações e aumenta o risco de contágio pelo novo coronavírus.

Na última terça-feira (7 de julho), o Estado do Rio de Janeiro já tinha 10.881 mortos, de acordo com o Painel Coronavírus Covid-19, sendo cerca quase 90% na região metropolitana. No mês de junho, tanto a Prefeitura da capital, quanto o Governo Estadual começaram a adotar medidas de flexibilização do isolamento social.

Entre as medidas de contenção, além do fechamento de dezenas de estações, estava a proibição de passageiros de pé nos BRTs. Agora, com a reabertura, é permitido apenas 2 passageiros por metro quadrado em pé.

Com o coronavírus, de acordo com o pesquisador da Casa Fluminense Guilherme Braga, as viagens deveriam, na verdade, ser mais rápidas, a fim de evitar o tempo de exposição. “O fechamento das estações dificulta a mobilidade justamente de quem precisa estar na rua por razões essenciais”, diz.

Aglomeração na porta das estações – para evitar aglomeração nos ônibus

As dificuldades para acessar os corredores do BRT não ficam restritas ao Transcarioca. Em Santa Cruz, bairro de mais de 220 mil moradores, na Zona Oeste do Rio, o corredor Transoeste também impõe desafios aos passageiros. Mesmo as estações que estão abertas apresentam riscos: como em 17 de março a Prefeitura determinou que não podia haver passageiros a pé, a entrada nas estações era controlada e, do lado de fora, a fila para entrar em um BRT era longa e causava aglomeração.

Agora, com o afrouxamento das regras, a fila é mais rápida. E o BRT segue lotado.

Matheus Henrique, morador do bairro, trabalha na Barra da Tijuca como repositor de vendas em um supermercado. Ele chegou a enfrentar filas de trinta a quarenta minutos do lado de fora do Terminal de Santa Cruz por conta da restrição a passageiros de pé. Tudo em vão. “Na estação seguinte, o BRT segue a viagem com passageiros em pé, é o famoso ‘seca gelo’”, observa.


Matheus Henrique mora em Santa Cruz e utiliza o transporte público para ir trabalhar na Barra da Tijuca / Arquivo pessoal

Quinze estações do Transoeste – corredor que Matheus percorre diariamente – estão fechadas desde o começo da propagação do coronavírus, incluindo a que fica em frente ao seu local de trabalho, Paulo Malta Rezende.

Apesar de haver menos paradas, ele diz que o tempo de viagem aumentou: “São muitos buracos pelo caminho e tem uma regra de redução de velocidade dos ônibus, provavelmente pela situação das pistas.”

A Assessoria do Consórcio BRT confirma o que Matheus observou, relatando que o trecho entre as estações Pingo D’Água e Ilha de Guaratiba está em “condições precárias”.

Questionada sobre a lotação, a secretaria Municipal de Transportes afirmou que “desde o início das ações de combate ao novo coronavírus, a SMTR aplicou 2.781 multas ao BRT Rio e aos consórcios que operam linhas de ônibus regulares, especialmente por lotação, inoperância de linhas e circulação de frota inferior ao permitido”.

Ideias positivas, problemas na execução

Somando-se estações abandonadas em 2018 e as fechadas durante o isolamento social, já são 54. Ainda falta a inauguração de mais 20 prometidas para 2017. O custo da construção dos quatro corredores de BRT do Rio já passa de R$ 7,5 bilhões – o gasto previsto inicialmente era de cerca de R$ 2 bilhões a menos.

A redução do tempo de viagem para os usuários sempre foi uma das vantagens associadas ao sistema BRT. Em plena campanha para a reeleição, em 2012, o então prefeito Eduardo Paes pelo MDB chamava o projeto de “Ligeirão”. Um desses vídeos da campanha retratava uma passageira chamada Marcela e dizia que ela teria três horas a mais diariamente. “Todo ano Marcela passava dois meses dentro de um ônibus, do amanhecer ao pôr do sol.”

Apesar do tempo nas viagens ser menor, por conta das pistas exclusivas por onde os articulados do BRT trafegam, o pesquisador Guilherme Braga, da Casa Fluminense, destaca que o tempo ganho é perdido em transferências, seja na fila para pegar um ônibus alimentador, seja para esperar um ônibus vazio para conseguir viajar sentado.


Obras do corredor em construção / João Vitor Costa/Agência Pública

A plataforma Mobilidados, do ITDP (Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento), aponta que o PNT – que é o percentual da população que vive próxima à rede de transporte de média e alta capacidade – na cidade do Rio de Janeiro era de 36% antes da implantação dos corredores de BRT. Após a implantação dos corredores Transoeste, Transcarioca e Transolímpica, o percentual chegou a 52%.

“O BRT Trouxe uma série de benefícios, pois facilitou uma grande parcela da população a estar próxima desse sistema e se deslocar de maneira mais eficiente”, diz a Coordenadora de Transporte Público do ITDP Beatriz Rodrigues.

Porém, os números mostram que a população de mais alta renda foi a mais beneficiada. Quando separados por recortes socioeconômicos, os dados apontam que a parcela de pessoas com renda de até meio salário mínimo que estavam próximas a essa rede de transportes passou de 32% em 2010 para 46% em 2017. Já a cobertura para quem recebe três ou mais salários mínimos, foi de 45% em 2010 para 66% em 2017. “Ficou claro que a população de alta renda foi mais beneficiada, o que não significa que não tenha beneficiado a população de baixa renda”, diz Beatriz Rodrigues.

O ITDP também faz avaliação dos corredores de BRT de diferentes cidades do Brasil os classifica entre Ouro, Prata, Bronze e Básico. No Rio de Janeiro, os corredores Transoeste, Transcarioca e Transolímpica foram avaliados pelo instituto, respectivamente, em 2013, 2014 e 2017. O Transcarioca é Ouro e o Transolímpica é Prata.

O Transoeste é o único dos três que foi reavaliado, em 2014, e sua nota caiu de Ouro para Prata.

Algumas recomendações foram feitas pelo ITDP, como a repavimentação das pistas em concreto – o Transoeste foi feito com asfalto e, rapidamente, ficou com muitos buracos – a alocação mais eficiente da frota e ampliação de estações, como Santa Cruz, Magarça e Mato Alto, todas localizadas na Zona Oeste do Rio, visando minimizar a superlotação do corredor.

Hoje,  . Em especial, a superlotação: “Na Estação de Mato Alto, não se pode tirar o pé do chão, quando tentar colocar de volta, não se consegue”, diz Matheus. Além disso, ele diz que os ônibus são quase sempre degradados. “Os ônibus mais ‘capengas’ são usados lá. Já fiz uma viagem em que precisei mudar de ônibus três vezes e eu vim praticamente em cima do motorista de tão cheio”.

“O Transoeste é um grande erro da engenharia brasileira”

Em 2019, o prefeito Marcelo Crivella declarou intervenção no Sistema BRT. Por seis meses, o engenheiro Luiz Alfredo Salomão esteve à frente desse sistema de ônibus, como interventor. Dentre os problemas constatados na intervenção, destaca-se, a frota de ônibus constantemente quebrada, seja por falta de manutenção, superlotação ou pelas pistas com muitas ondulações, e erros de planejamento ao construir as estações. Questões contratuais também foram revistas, tanto com as prestadoras de serviços ao Consórcio BRT, tanto quanto à personalidade jurídica do próprio Consórcio Operacional BRT.

O relatório da Intervenção de 2019 avalia que “o Transoeste é um grande erro da engenharia brasileira”, referindo-se às pistas ruins, que foi feita sobre piso mole. “Precisaria ser reconstruído, com estaqueamento, substituição do solo mole por material duro ou com a mudança do traçado atual.”

Um acordo entre a Prefeitura do Rio e os operadores do BRT foi firmado para que a Intervenção fosse encerrada. Investimentos em segurança, reforma de estações e de 90 ônibus eram algumas das cláusulas.

Mas até hoje, quase um ano após o acordo, muitas medidas não foram cumpridas.

Em novembro de 2019, o Ministério Público Estadual ampliou o objeto de um Inquérito que apurava “suposta prática de ato de improbidade” na desativação de uma estação do BRT em Campo Grande, para incluir improbidade administrativa por má gestão de recursos públicos, violação à ordem econômica, omissão na regulação e fiscalização da operação do serviço.

Procurado, o Consórcio BRT reconhece que as pistas ruins e ajudam a destruir a frota. “Veículos que deveriam durar 20 anos, duram apenas 5 no Rio”, respondeu, por nota. Em 2018, o BRT entrou com uma ação na justiça contra a Prefeitura do Rio, e as más condições das pistas foram citadas.

Em maio de 2019 uma ação do PROCON-RJ conferiu que 131 ônibus que deveriam operar nos corredores de BRT estavam parados nas garagens. No mês passado, a SMTR – Secretaria Municipal de Transportes – visitou as garagens de algumas empresas que operam no BRT e vistoriou 238 veículos, dos quais apenas 149 entraram em operação (89 estavam parados, principalmente por problemas mecânicos).

Diante de problemas como as pistas ruins, estações fechadas, ônibus lotados, o prejuízo não é só dos passageiros, mas para os cofres públicos e os contribuintes. “As pessoas deixam de entender o transporte público como uma possibilidade do dia a dia”, observa Guilherme Braga . “Se empurrarmos essas pessoas para o transporte individual, no fim das contas, estamos criando uma cidade pior para todo mundo.”

Na vida de Ana Carolina, um legado Olímpico que nunca chegou

A construção de quatro corredores de BRT – Transoeste, Transcarioca, Transolímpica e Transbrasil – eram obras do chamado “Legado Olímpico”. A obra do Transbrasil, que ligaria o Centro do Rio a Deodoro cortando a Avenida Brasil, no entanto, já não era esperada para a Rio 2016. O prefeito que o sucedeu, Marcelo Crivella, do Republicanos, prometeu em sua campanha que o corredor ficaria pronto em 2017. Até hoje o corredor não foi concluído e, com a pandemia, não há previsão de conclusão.

Quando e se ficar pronto, será uma ligação entre os moradores do entorno da Avenida Brasil – como do Complexo da Maré, com seus 139 mil habitantes – com a Barra da Tijuca, o Recreio e o Centro do Rio.

Em Guadalupe, na comunidade da Palmeirinha, que fica às margens da Avenida Brasil, a estudante de Biomedicina Ana Carolina Dias, viu a construção do Transbrasil atravessar várias fases de sua vida: desde o ensino fundamental, ensino médio, pré-vestibular e até o ensino superior. A construção começou em 2014 e demorou tanto que os sonhos da jovem foram mudando mais rápido do que as etapas da obra. “Antigamente, eu queria estudar Medicina na Uerj e, por isso, não via muita utilidade no Transbrasil”, comenta. Hoje, com 19 anos, Ana Carolina passou para Biomedicina na UFRJ e vê que o Transbrasil poderia ser a solução para seu trajeto até o campus, que fica no Fundão. “Ia ser o quebra-galho da minha vida, pois eu iria direto de casa para a faculdade.”


“Ia ser o quebra-galho da minha vida, pois eu iria direto de casa para a faculdade”, conta Ana Carolina Dias sobre a promessa de construção de corredores de BRT onde morava / Arquivo pessoal

Por conta da demora – e da descrença em relação às promessas das autoridades – os pais de Ana nunca contaram com o corredor do BRT para que a filha chegasse à faculdade. Por isso, se mudaram no início de junho para um bairro da Ilha do Governador, que fica próximo à UFRJ, antes mesmo da inauguração do corredor.

O custo da construção do Transbrasil será de R$ 1.866.882.989,17, segundo a Secretaria Municipal de Infraestrutura, Habitação e Conservação. O trecho, de acordo com dados obtidos pela Agência Pública através da Lei de Acesso à Informação junto ao Tribunal de Contas do Município, contará com vinte estações, cada uma custando aproximadamente R$ 5,9 milhões. A última parada deverá ser na Rodoviária Novo Rio, na Zona Portuária.

Em 11 de junho, Alexandre Pinto, que foi secretário de Obras durante a gestão de Eduardo Paes, foi condenado a sete anos de prisão por crime de corrupção passiva. A decisão aponta para “vantagem indevida” de R$ 319,7 mil recebida de uma empresa envolvida na construção do BRT Transbrasil.

Para quem usa diariamente o BRT – a parte que já foi inaugurada – como Matheus Henrique, a sensação é de que essas obras foram só para impressionar os estrangeiros durante as Olimpíadas. “Não fizeram pensando no povo, pois já teriam terminado.”